19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Como o cancelamento de peças, filmes e mostras deve opor artistas e governo na Justiça

Publicado em 07/11/2019 12:00 -

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Cinco minutos antes da segunda apresentação da peça infanto-juvenil Abrazo, no espaço Caixa Cultural do Recife, em setembro, a produção do espetáculo recebeu a notícia de que a apresentação tinha sido cancelada — sem aviso formal ou explicação do porquê.

As seções seguintes previstas para a montagem, sobre pessoas que vivem sob uma ditadura, também seriam todas suspensas.

"Quando nos avisaram, cinco minutos antes da apresentação, foi difícil até conseguir um registro escrito. Eles queriam que fosse apenas verbal", diz o diretor artístico da companhia de teatro, Fernando Yamamoto.

Yamamoto e o produtor Rafael Telles se recusaram a sair do teatro até obter uma declaração por escrito. "Eu insisti e mandaram um email, dizendo que infringimos uma cláusula contratual [entre a companhia e a Caixa], mas não dizia como."

Os dois são exemplos dos vários profissionais da área cultural que passaram por situações semelhantes nos últimos meses, quando foram suspensos diversos espetáculos, filmes e mostras que seriam apoiados por instituições de caráter público ou exibidos em espaços públicos.

Além da peça Abrazo, só a Caixa Econômica suspendeu mais duas peças, um ciclo de palestras e uma mostra de cinema sobre a cineasta Dorothy Arzner que aconteceriam em seus espaços culturais.

Os filmes Nosso Sagrado, Rebento e Mente Aberta tiveram a exibição cancelada no Centro Cultural da Justiça Federal no Rio. O espetáculo Caranguejo Overdrive foi retirado da programação do Centro Cultural do Banco do Brasil, também no Rio.

Um concurso inteiro da Ancine para financiamento de obras audiovisuais foi suspenso após algumas obras com temáticas LGBT que concorriam serem criticadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, nas redes sociais, em agosto. A peça Res Publica 2023 foi vetada de ocupar um espaço da Funarte.

Protestos

Houve outros casos como esses. Entre os assuntos tratados pelas obras afetadas, há desigualdade social, ditadura, preservação do ambiente, mulheres de destaque, intolerância religiosa contra religiões de matriz africana e questões LGBT.

Diretores, atores e produtores culturais dizem que houve motivação ideológica para os cancelamentos — seriam, segundo eles, tentativas de inviabilizar obras com conteúdo que desagrada ao governo Bolsonaro. "É muito grave, estamos vendo uma criminalização das artes e da cultura", afirma Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro (APTR).

As instituições responsáveis pelos cancelamentos negam que haja controle de conteúdo e, questionadas posteriormente sobre os casos, deram explicações variadas para os cortes.

As justificativas vão de motivos jurídicos (no caso da Caixa) a questões administrativas (no caso do Ministério da Cidadania, que determinou o cancelamento do concurso da Ancine). Em declarações, membros do governo também disseram que escolher projetos "não é censura". O diretor de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim, por exemplo, disse ao jornal O Globo que se tratou de uma "curadoria".

Enquanto isso, o meio cultural se organiza para combater os cancelamentos não apenas com protestos, mas levando as ações para a Justiça.

"[Entrar na Justiça] é a maneira que a gente tem para defender a democracia. É um dos caminhos que a gente está seguindo. Se a gente não levar para a Justiça, a gente não reafirma nosso lugar de cidadão", diz a empresária Paula Lavigne, que criou o movimento 342 Artes, uma campanha de artistas e produtores culturais contra censura e intolerância no mundo das artes.

A APTR tem feito encontros semanais, com grupos pequenos, para estudar o problema. "Estamos vendo quais as possibilidades de ação contra a censura e subsidiando os produtores com informações", diz ele, que tem participado de reuniões com a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados para falar do assunto. Para Barata, é uma briga tanto jurídica quanto política.

Mas afinal, como essa disputa está se dando na Justiça e quais os limites para atuação das instituições governamentais na escolha das obras?

Casos na Justiça

Alguns dos casos já estão em discussão no Judiciário. Neste mês, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) negou um recurso da União e manteve uma liminar obrigando a Ancine (Agência Nacional de Cinema) a retomar um edital de seleção de projetos audiovisuais para serem financiados com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual.

A mesma instituição, no entanto, no âmbito administrativo, foi responsável por um dos cancelamentos — três documentários, incluindo o filme Nosso Sagrado, sobre perseguição religiosa a religiões de matriz africana, foram vetados da programação de uma mostra no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), administrado pelo TRF-2.

Procurado pela BBC News Brasil, o TRF-2 afirma que "o CCJF tem como critério não veicular produções que atendam a interesses comerciais, ou que tenham cunho religioso ou político-partidário", por que tem competência para julgar "ações cujas partes ou interesses podem vir a relacionar-se a entes públicos e empresas que, eventualmente, sejam personagens ou objeto das referidas produções".

Já na decisão sobre a Ancine, o TRT-2, através do juiz Alfredo Jara Moura, decidiu que a União não apresentou razões válidas para a suspensão do edital.

O concurso fora cancelado por uma portaria do Ministério da Cidadania após quatro projetos audiovisuais que concorriam — todos com temática LGBT — terem sido publicamente criticados pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Em um vídeo nas redes sociais, Bolsonaro dizia que as obras Sexo Reverso, Transversais, Afronte e Religare Queer "iriam para o lixo".

O entendimento do MPF, que pediu a liminar contra o Ministério, foi de que, como não havia forma legal de retirar somente os quatro filmes da disputa, o ministério acabou cancelando o concurso todo.

"A discriminação contra pessoas LGBT promovida ou referendada por agentes públicos constitui grave ofensa aos princípios administrativos da honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições", diz o MPF-RJ na ação, que afirma que o ministro da Cidadania cometeu improbidade administrativa ao cancelar o concurso.

Além disso, diz o MPF, o cancelamento geraria prejuízo aos cofres públicos, já que a Ancine já havia gasto uma boa soma com o concurso, que estava em fase final.

José Henrique Pires, ex-secretário especial de cultura sob o ministro da Cidadania, Osmar Terra, disse ao Ministério Público que recebeu o pedido de analisar a minuta da portaria que cancelaria o concurso no dia seguinte ao vídeo de Bolsonaro.

Segundo seu depoimento, não havia uma justificativa para a portaria, que seria "mais uma tentativa de chancelar o que o presidente havia dito, isto é, não veicular conteúdos que não lhe agradem".

O Ministério da Cidadania entrou com um recurso, e argumentou que o cancelamento foi feito por motivos orçamentários. Mas isso não constava na portaria de cancelamento, e o TRF-2 negou o recurso do governo, dando a decisão liminar que obriga a Ancine a retomar o concurso. Procurado pela BBC News Brasil, o Ministério da Cidadania não se manifestou.

Após a suspensão do edital, Pires deixou o cargo e disse que não admitiria a imposição de "filtros" na cultura.

Em entrevista ao jornal O Globo em setembro, o ministro Osmar Terra disse que "não é censura, só queremos escolher o tema em que vamos gastar dinheiro público".

"Não é proibido fazer filme nenhum. Não existe censura, mas se vai usar dinheiro público é preciso ser de interesse público. Eu tenho direito de dar opinião. Eu represento quem foi eleito pelo público para fazer gestão", afirmou ao jornal.

Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro disse em uma videoconferência transmitida no 3º Simpósio Nacional Conservador, no interior de São Paulo, que "com o dinheiro público não veremos mais certo tipo de obra por aí". O presidente disse também que o veto "não é censura", mas é feito para "preservar os valores cristãos".

O que o governo pode ou não pode fazer?

Segundo o professor de Direito Constitucional Daniel Sarmento, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a Constituição deixa claro que o governo e suas instituições não podem usar dinheiro público e aparato estatal para discriminar obras ou ideias que o desagradem por motivos ideológicos.

"É preciso diferençar o que é governo do que é Estado", afirma o professor de Direito Constitucional. "O Estado tem o dever de garantir a liberdade de expressão, de não discriminar e o dever de impessoalidade."

Ele explica que o Estado tem que agir de forma impessoal independentemente da ideologia de quem rege o governo, garantindo a pluralidade — não pode beneficiar nem causar danos a pessoas ou grupos específicos. Ou seja, diz ele, de acordo com a Constituição Federal, o fato de certo grupo político ter sido eleito não o autoriza a usar o aparato do Estado para discriminar outros grupos ou favorecer sua própria ideologia.

"O Estado não pode censurar a manifestação de particulares, mas seu dever de garantir a liberdade de expressão também abarca quando ele age no campo do fomento", afirma Daniel Sarmento. "Órgãos públicos não podem dizer que não vão permitir que uma peça não seja exibida em um espaço público em razão de um critério discriminatório, é o mesmo princípio."

O MPF investiga se houve discriminação nos casos recentes de cancelamentos de atividades artísticas. Se concluir que houve discriminação ideológica e cerceamento à liberdade de expressão, pode apresentar denúncia à Justiça contra as entidades responsáveis. O MPF pode acusá-las de ferir a Constituição, de cometer improbidade administrativa ou desvio de finalidade, dependendo do caso.

Um dos inquéritos aberto pelo MPF é o cancelamento sem explicação da peça Caranguejo Overdrive, que estava programada para ser apresentada na mostra "CCBB — 30 Anos de Cias", no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro nos dias 9 e 10 de outubro.

A obra conta a história de um catador de caranguejos que volta ao Rio de Janeiro após ser convocado para a Guerra do Paraguai. A peça trata de temas como desigualdade social, urbanização das cidades e cita acontecimentos recentes do Brasil.

Duas semanas antes das apresentações, a produção do espetáculo recebeu a notícia de que elas não seriam mais parte da programação da mostra — sem explicação.

"A única resposta que a instituição deu veio em uma nota divulgada depois que organizamos uma ato na porta do CCBB na sexta-feira passada", diz à BBC News Brasil o diretor do espetáculo, Marco André Nunes.

Questionado sobre o assunto, o CCBB diz que "nega a existência de censura em sua programação", e que a peça fora retirada da programação após ser informado, em um "relato", sobre uma "possível alteração na peça". "Teriam sido acrescentados em seu roteiro posicionamentos político-partidários", o que "contrariaria critérios definidos no edital público para seleção de projetos e cláusulas contratuais do patrocínio".

"O CCBB falta com a verdade nesse posicionamento", diz Nunes. Segundo ele, a peça, que estava em cartaz no Espaço Sérgio Porto, não sofreu nenhum tipo de alteração e que não há nenhum tipo de propaganda partidária. "A apresentação sempre teve isso de ser relacionada com o momento. É uma crítica ao Brasil. Fizemos isso no governo Dilma, no governo Temer e também no governo Bolsonaro" — o espetáculo foi encenado pela primeira vez em 2015.

O diretor também afirma que não participou de um edital — a peça havia sido convidada para fazer parte da mostra.

Questionado pela BBC News Brasil sobre o que foi esse "relato" que teria sido recebido pelo CCBB — denúncia anônima? Análise encomendada pela instituição? — e se houve tentativa de confirmar a veracidade das informações, o centro cultural disse apenas que "reafirma o posicionamento" da nota já enviada.

O MPF também pediu questionamentos à Funarte sobre um veto da instituição à exibição da peça Res Pública 2023, que iria ocupar uma sala do Complexo Cultural Funarte SP. O espetáculo, sobre jovens que sofrem dificuldades financeiras e perseguição em um futuro próximo, chegou a ter a estreia agendada.

Ao jornal O Globo, o diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim, disse que o critério para o veto foi "puramente artístico". "A peça não foi aprovada porque me pareceu que não havia nela alusão estética, apenas um discurso político", disse ele ao jornal, em outubro. "Isso não se chama censura e sim curadoria. Nunca proibi que a peça fosse exibida em outros lugares e até acho ótimo que ela seja."

À BBC News Brasil, a Funarte disse que a peça não foi cancelada, porque "não chegou a existir na Funarte um termo de cessão ou documento compatível para o procedimento". Quanto ao veto de Alvim e outros questionamentos feitos pela reportagem, no entanto, a Funarte disse que "não vai comentar".

Censura velada?

E o que os artistas podem fazer na Justiça? Uma saída seria entrar com ações provando que as justificativas dadas posteriormente pelas instituições são formas de mascarar uma intenção de cercear a liberdade de expressão. Mas nem sempre provar essa segunda intenção é uma tarefa fácil.

"Muitas vezes a gente encontra censura velada, você não tem um papel ali. Mas eles estão cada vez mais nos dando provas que estão realmente cometendo a censura", afirma Paula Lavigne, do movimento 342 Artes.

O procurador da República Julio José Araujo Junior diz que, como instituições públicas são impedidas por lei de simplesmente censurar obras, "quem deseja fazer esse controle ilegal de conteúdo normal o faz através da burocracia".

"É comum você encontrar uma tentativa de utilizar algum tipo de subterfúgio para dizer que a obra não pode ser apresentada, usar da burocracia, fazer exigência meramente formal. Havendo evidências suficientes, é algo que pode ser desmascarado", explica.

O diretor de cinema Fernando Sousa, do filme Nosso Sagrado, diz que foi isso que aconteceu quando seu documentário foi vetado de ser exibido no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), no Rio de Janeiro, em agosto.

O documentário é um dos três filmes que seriam exibidos na 3ª Mostra do Filme Marginal que aconteceria no espaço e que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRT-2), que administra o espaço, disse que teriam que ser retirados da programação.

Nosso Sagrado fala da perseguição sofrida por religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. "É mais um caso de racismo institucional, exatamente como os retratados no documentário", afirma Sousa.

Procurado pela BBC News Brasil, o TRF-2 afirma que o critério de "não veicular produções que atendam a interesses comerciais, ou que tenham cunho religioso ou político-partidário" vale para "qualquer denominação religiosa e para qualquer linha político-ideológica".

O diretor do documentário, no entanto, diz que seu trabalho não se encaixa nessas categorias. "Não é um filme religioso, é um documentário que fala sobre religião. E o fato do documentário citar a [vereadora] Marielle [Franco, assassinada em 2017] e ter fala de uma pessoa com mandato não caracteriza propaganda partidária", diz Sousa.

No fim, em protesto contra a retirada dos três filmes da programação, a 3ª Mostra do Filme Marginal acabou migrando para outro espaço, onde todos os filmes puderam ser exibidos.

Dois caminhos

Quando há indícios de que alguém foi vítima de cerceamento por parte de instituições governamentais, explica Sarmento, da UERJ, é possível procurar a Justiça para duas coisas: garantir a liberdade de expressão (ou seja, a exibição da obra), por um lado, e para responsabilização de quem desrespeitou a lei, por outro.

O MPF em Pernambuco entrou com uma ação civil pública contra a Caixa Econômica pedindo ambos: a retomada do espetáculo Abrazo, que havia sido cancelado, e uma indenização por danos morais coletivos. Na ação, o MPF pede que o valor seja aplicado "em campanhas de conscientização do direito à liberdade de expressão e à liberdade artística."

Contratada para oito sessões, a peça Abrazo, da companhia Clowns de Shakespeare, havia sido cancelada após uma única apresentação, em 7 de setembro, sem nenhuma explicação.

"Não houve diálogo, não houve possibilidade de nos defendermos", afirma o diretor artístico da companhia de teatro, Fernando Yamamoto. O espetáculo fala sobre personagens que vivem sob uma ditadura, em que não é permitido se abraçar.

Ao MPF, a Caixa disse que o patrocínio foi cancelado por causa de uma conversa entre o elenco e a plateia, após a estreia, em que os artistas teriam infringido a cláusula contratual de "zelar pela boa imagem dos patrocinadores".

Na conversa, com menos de 20 pessoas, um dos atores respondeu a uma pergunta do público, sobre se ele sentiu resistência ao enviar o projeto para o edital. Ele respondeu que sim, em relação a essa e a outra peça que também falava de ditadura, e que tinha havido mudança na forma de lidar com os projetos.

"O espetáculo fala sobre repressão, então é natural que haja essas perguntas. Temos que responder com a verdade", diz Rafael Telles, produtor da peça. "Mas em nenhum momento falamos mal do patrocinador ou citamos a Caixa ou o governo."

Na ação contra a Caixa, o MPF argumenta que os atores têm direito ao livre exercício da manifestação de pensamento e crítica e que, ao cancelar o contrato com base nisso, a Caixa cerceou "o livre debate de ideias em torno dos contratos de patrocínio". Além disso, diz o MPF, o cancelamento das apresentações provocou uma repercussão negativa muito maior do que o comentário feito pelo ator a um grupo pequeno de pessoas.

O espetáculo Abrazo foi um de uma série de obras que haviam sido canceladas pela Caixa no segundo semestre desse ano, entre eles a peça Gritos, da Cia Dos à Deux, e uma mostra sobre a cineasta Dorothy Arzner, única mulher diretora de cinema a conseguir se consagrar em Hollywood nos EUA nos anos 1930.

O MPF divulgou a ação contra a Caixa no mesmo dia em que a Folha de S. Paulo publicou uma reportagem apontando que a instituição criou um sistema de censura prévia, implementando novas regras para aprovação de projetos, exigindo que fossem incluídas, entre as informações submetidas, detalhes como a opinião política dos artistas e atitudes deles nas redes sociais.

A Caixa afirma que "o contrato com o grupo Clowns de Shakespeare foi rescindido por descumprimento contratual, conforme já comunicado ao grupo" e que o evento sobre Dorothy Arzner "ainda não foi contratado e está em análise pelo banco".

Também diz que "não houve alteração no processo de seleção do Programa de Ocupação dos Espaços da Caixa Cultural". "A seleção dos projetos envolve etapas de avaliação por consultores externos com reconhecimento no meio cultural e por empregados da Caixa Cultural", diz a instituição em nota.

Enquanto juntam provas para os processos e esperam decisões da Justiça, os artistas estão se mobilizado também no campo político — e artístico. "Vamos continuar produzindo peças e obras, fazendo esse protesto no campo artístico. Porque a arte pode ser uma pressão também", afirma Eduardo Barata, da APTR.

Reação

“Censura não se debate, censura se combate”, afirmou a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), logo no início de audiência pública, no último dia 4, sobre decreto do governo que alterou a estrutura do Conselho Superior do Cinema. O STF analisa a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 614, da Rede, que vê uma tentativa de esvaziamento – e de censura – no Decreto 9.919, de 18 de julho, que transferiu o Conselho do Ministério da Cidadania para a Secretaria da Casa Civil e reduziu o número de membros do colegiado. “Há uma Constituição democrática em vigor, e é responsabilidade de todos impedir que a liberdade seja de novo restringida, cerceada ou cassada”, disse a ministra, que é a relatora da ação. “A cultura é a expressão da cultura de cada povo.”

Durante a semana, vários artistas se manifestaram com críticas ao governo. O ator Caio Blat, por exemplo, “encenou” trecho de Grande Sertão: Veredas em que o personagem Riobaldo fala de seu amor por Diadorim. “Guimarães Rosa seria censurado por este governo se dependesse de edital para publicar sua obra-prima”, declarou Blat, para quem o cinema é principal meio por onde os jovens podem conhecer a sua própria história.

“A gente está vivendo uma espécie de morte por asfixiamento”, disse a cineasta Marina Person. “A Ancine (Agência Nacional de Cinema) está paralisada, de mãos atadas.” Ela observou que há 9 mil produtoras pelo país que dependem do funcionamento da Ancine e defendeu políticas públicas de incentivo à cultura e à produção audiovisual.

Para o ator e diretor Caco Ciocler, a classe artística está sofrendo “acuamentos” públicos e privados. “A gente só veio para cá porque em algum lugar a gente está sentido a censura na pele. É uma questão prática, não é uma questão de discurso”, declarou.

Morreu “por uma piadinha”

Gregório Duvivier contou sobre São Lourenço, padroeiro dos humoristas, condenado à morte por causa de “uma piadinha”, que, sendo queimado em uma grelha, ainda teria feito um último pedido, para mudar de lado, para ser assado por igual. Comparou os censores a um “sujeito pudico que passa o dia à procura de sacanagem”. E ironizou a gestão Bolsonaro: “Este governo é uma espécie de manancial, é um pré-sal da estupidez”.

“Toda arte que se preza na história foi considerada nefasta”, disse ainda Duvivier. Ao citar texto que remete às missões do STF, destacou o trecho que fala sobre “repelir condutas governamentais abusivas”. E afirmou esperar “que a gente não tenha o mesmo fim de São Lourenço”.

O cantor e compositor Caetano Veloso lembrou de quando foi preso, duas semanas após a edição do AI-5, em dezembro de 1968, e permaneceu dois meses na cadeia e, em seguida, dois anos e meio no exílio. Na volta, às vésperas de um show em Salvador, foi convocado pela censura, e o responsável queria saber se a palavra “reggae” tinha conteúdo obsceno ou subversivo. Caetano tentou explicar que era um termo recente, para designar um ritmo musical, mas aparentemente não convenceu seu interlocutor, que manteve a desconfiança.

“Essas coisas têm a ver com o aspecto ridículo da figura do censor”, afirmou, lembrando de outro episódio, relativo à música Negros do Tempos, que contém versos como “grandes olhos de vaca triste”. Foi chamado novamente pela censura, que implicou com o uso do termo “vaca”, que poderia depreciar a mulher. “São coisas meramente ridículas, mas de amargura para a nossa vida”, disse o compositor. “Essa potência não pode ser castrada”, acrescentou, referindo-se a poetas, escritores, roteiristas, desenhistas, criadores em geral.

Pelo governo, o secretário do Audiovisual da Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania, Ricardo Fadel Rihan, disse que o governo “busca restituir a governança”. E negou cerceamento da liberdade de expressão.

Em entrevista para Mídia NINJA e prestes a embarcar para Inglaterra pela primeira vez, Ney Matogrosso refletIU sobre a ditadura e como resistiu às tentativas de censura à sua arte, detalhes do início da sua carreira artística e como resiste ao autoritarismo dos dias atuais, além de citar os recentes acontecimentos que impactaram a região Amazônica e os direitos indígenas do Brasil.

Passos para trás

Jair Bolsonaro decidiu indicar Roberto Alvim para chefiar a Secretaria Especial de Cultura. Em setembro, o dramaturgo causou enorme polêmica, ao ofender abertamente Fernanda Montenegro.

De forma absolutamente grosseira, ele chamou a atriz de “sórdida” em suas redes sociais. O ataque veio depois que Fernanda posou para a revista literária “Quatro cinco um”, vestida como uma bruxa prestes a ser queimada em uma fogueira com livros.

Alvim chama atenção por suas polêmicas. Antes disso, ele havia lançado em suas redes sociais uma convocação para “artistas conservadores” criarem uma “máquina de guerra cultural”. Ele dizia na época ser perseguido por apoiar Bolsonaro.

Além disso, Bolsonaro enfiou a Secretaria da Cultura no Ministério do Turismo. Com isso, consolidou a certeza de que, no seu governo, a Cultura serve apenas para dimensionar a ignorância do presidente da República.


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