26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

“Buscar equidade de gênero é questão de saúde pública”

Publicado em 04/11/2019 12:00 -

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Um dos pioneiros do trabalho de grupos reflexivos de gênero com homens denunciados por agressão, Alan Bronz aponta que a iniciativa ajuda a diminuir os casos de reincidência — mas para ele, conversar sobre os papéis de gênero deveria ser uma prática comum em escolas e outros espaços. Psicólogo especialista em terapia de casal e família, com mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ele trabalhou entre 1999 e 2016 com esses grupos promovidos pelo Instituto Noos. “Muitos homens estão absolutamente satisfeitos com o seu modus operandi na configuração hegemônica de masculinidade. Eles não veem necessidade de mudar nada”, analisa. Alan conversou com Radis em seu consultório no centro do Rio sobre temas como machismo, masculinidade tóxica, violência de gênero, o respeito pelos diferentes modos de ser homem e as dificuldades em dialogar sobre esses assuntos. “No fundo estamos falando de machismo, de uma sociedade que estabelece a supremacia de uma configuração de gênero específica e a partir daí cria relações de poder que são opressoras”, constata.

 

Como você se envolveu com o debate sobre gênero e masculinidade?

De 1999 até 2016, eu trabalhei desenvolvendo uma metodologia de trabalho em grupo com homens com o objetivo de prevenir e interromper o ciclo de violência intrafamiliar e de gênero, que a gente chamou de grupos reflexivos de gênero. Esse trabalho começou no Instituto Noos [no Rio de Janeiro]. Ao longo desses anos, continuei trabalhando no instituto, não de forma direta, mas sempre presente. Trabalhei com essa temática em diferentes contextos, na sociedade civil, em governos e até em empresas. Portanto, estou falando do lugar de alguém que teve muito contato com homens que eram identificados, com justeza ou não, nesse lugar de agressor. A minha perspectiva é clínica, eu não falo como alguém que faz pesquisa na área de gênero ou que milita nesse campo. Eu gosto de me identificar como alguém que tem um olhar clínico para essas questões. Eu sempre gostei de pensar as questões metodológicas mesmo.

Como surgiram os grupos reflexivos de gênero?

Eu estava fazendo minha especialização no Instituto de Terapia de Família e Casal do Rio de Janeiro. Os quatro professores dessa instituição foram fundadores do Instituto Noos. Concomitante a isso, estava ocorrendo uma pesquisa realizada pela ESNP [Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz] e pelo Núcleo de Saúde Coletiva da UFRJ, chamada “Homens, saúde e vida cotidiana”, em que um dos objetivos era fazer uma correlação entre masculinidade e saúde. O método de pesquisa era pesquisa-ação. Eles criaram grupos de homens de diferentes perfis em várias áreas da cidade e o Noos foi um dos campos da pesquisa. Um professor meu, o Carlos Eduardo Zuma, me chamou para participar do grupo e eu aceitei. Esse grupo durou seis meses, coordenado pelo Fernando Acosta, psicólogo e terapeuta corporal, que integrava a equipe da pesquisa. Era um grupo de reflexão, onde diversos temas eram propostos para serem debatidos. Esse grupo foi uma experiência muito impactante, porque apesar de sermos psicólogos, a gente nunca tinha parado para responder perguntas do tipo: “O que é ser homem?” Uma pergunta aparentemente básica, mas que homem nenhum se faz. Foi uma experiência extraordinária, mexeu muito com a gente, a ponto de que, quando a pesquisa terminou, não queríamos deixar de conversar sobre isso.

E quando se iniciaram os grupos com homens que cometeram violência familiar e de gênero?

A gente escolheu o tema que mais nos mobilizou, que foi a violência dos homens contra as mulheres, sobretudo uma discussão que tinha a ver com a questão de a violência ser intrínseca à biologia do homem ou se é culturalmente construída. Chegou uma hora em que queríamos nos aprofundar nesse tema e decidimos trabalhar com esses homens identificados em situação de violência intrafamiliar e de gênero. Mal havia uma política de segurança pública para mulheres, não tinha Lei Maria da Penha [Lei 11.340, de 2006]. No início, a participação era voluntária. O primeiro grupo ocorreu no Conselho Estadual de Direitos da Mulher, incentivado pela Ligia Doutel, que era a presidente do conselho [entre 1999 e 2002]. Ela cedeu o espaço para a gente fazer o primeiro grupo e os homens foram encaminhados pelos juizados especiais. Antes da Lei Maria da Penha, a questão de violência na relação era tratada nesses fóruns. Não era um encaminhamento compulsório. Pode-se dizer que os primeiros homens chegaram por uma demanda espontânea relativa.

Quais as contribuições que os grupos tiveram para enfrentar a violência de gênero?

A nossa experiência ao longo dos anos é que se você tem um trabalho voltado para discutir uma relação conflituada, dando ênfase na questão da violência, é muito difícil ter homens que veem por demanda espontânea pura. Eles não pensam: “A situação está muito ruim e acho que isso tem a ver com a forma como eu estou me comportando, então eu vou lá nesse grupo”. Por outro lado, se a vinda do homem é compulsória [por decisão judicial], isso injeta uma complexidade muito grande ao trabalho. A pessoa chega muito contrariada. O processo na Justiça é sempre muito complicado para a pessoa e eles identificam como se a gente fosse um braço da Justiça. O trabalho de grupos reflexivos de gênero com homens encaminhados pela Justiça é de prevenção terciária. É um trabalho profilático, porque é uma situação de violência que já aconteceu. O que a gente deve fazer é tentar evitar reincidência e mudar um padrão de comportamento e interação para que isso não volte a ocorrer no futuro.

Como fortalecer as estratégias de prevenção?

A gente tem que investir mesmo é no trabalho de prevenção primária. Os grupos reflexivos de gênero devem ser pensados como um recurso não para um grupo específico de homens, que são aqueles em situação de violência de gênero, mas para a população em geral e que possam ser aplicados em diferentes contextos, sobretudo em escolas, e não só com homens, mas com mulheres também. Não que eles não sejam eficazes com homens agressores, mas é mais eficaz se a gente conseguir evitar o primeiro conflito na relação.

Recentemente, o conceito de “masculinidade tóxica” teve um “boom” no debate público, tanto na luta pela equidade de gênero quanto em seu uso na publicidade de grandes marcas (como foi o caso da Gillete). Na sua visão, o que esse conceito significa?

Se seu objetivo é promover transformações nos padrões relacionais, não podemos de cara ter uma postura acusatória. Se você aponta o dedo logo no início para a pessoa, acusando-a disso ou daquilo, você fecha a possibilidade de estabelecer um diálogo. Eu entendo o que essa expressão “masculinidade tóxica” significa, ela faz sentido para mim, mas eu fico pensando qual sua serventia quando buscamos transformar as relações de gênero na sociedade. Muitos homens estão absolutamente satisfeitos com o seu modus operandi na configuração hegemônica de masculinidade. Eles não veem necessidade de mudar nada. E mais do que isso, o papel que eles representam como homens dentro dessa configuração hegemônica é algo intrinsecamente ligado à sua identidade. Eu fico imaginando qual é o impacto nessas pessoas quando elas escutam a expressão masculinidade tóxica. Não que esse não seja um termo que tenha lá a sua utilidade. Mas se eu quiser, enquanto clínico, trabalhar com uma pessoa a sua identidade de gênero e as relações que ela estabelece a partir da sua identidade de gênero, eu não vou usar a expressão “masculinidade tóxica”. Isso não vai ser produtivo. Há um trabalho a ser feito antes de integrar esse tema na nossa conversa. Entende? Eu tenho essa visão, mas estou falando do lugar de quem trabalhou diretamente com um perfil de população que, digamos assim, sofre de masculinidade tóxica.

“Masculinidade tóxica” diz alguma coisa diferente de “machismo”?

Eu fico pensando também porque substituir “machismo” por “masculinidade tóxica”. Eu não tenho uma resposta pronta para isso. Na verdade, acho que no fundo estamos falando de machismo, de uma sociedade que estabelece a supremacia de uma configuração de gênero específica e a partir daí cria relações de poder que são opressoras, que é o que a gente vive há aproximadamente 7 mil anos. Por que de repente, em vez de falar de machismo, falamos de masculinidade tóxica? O machismo é tóxico sim, não tenho dúvida. Mas se a gente mal começou a fazer uma crítica à sociedade patriarcal, já criamos um novo nome para uma coisa que já existe há 7 mil anos? A gente não resolveu o machismo, já vai trocar um nome por outro? Mas é uma expressão do ponto de vista de marketing muito interessante. Ela pode pegar, mas para quem está preparado para entender o que ela significa. Ela pode também ser muito ameaçadora para muita gente, inclusive para mulheres. O gênero é construído coletivamente. Os papeis de gênero são produto de um esforço coletivo, incluindo aí homens e mulheres. É só a gente ver o que está ocorrendo agora no país. Há uma onda conservadora, um refluxo do conservadorismo, que entendo como uma reação a essas mudanças que vêm acontecendo ao longo dos anos. É um povo que diz que não quer essas mudanças de padrão e paradigma, “eu quero do jeito que era antes”, e nessa onda estão incluídas mulheres também.

Como padrões dominantes de masculinidade são construídos desde a infância, na adolescência e na fase adulta dos homens?

Existe um modelo pré-determinado que todos os homens precisam seguir para se sentirem “homens normais” (entre aspas). Esse modelo de homem tem características bem definidas. O homem padrão tem que ser um cara que vai enfrentar os problemas e as pressões da vida com uma altivez quase sobre-humana e em nenhum momento pode expressar qualquer tipo de sofrimento. Não pode em hipótese alguma demonstrar fragilidade nem confusão, insegurança ou não saber o que fazer. Tem que ter uma objetividade muito concreta. Isso é um imperativo de um homem dito padrão ou “normal”. Também não pode em hipótese alguma levar desaforo para casa. Ele tem que defender sua honra a qualquer custo e, se possível, reafirmar sua bravura mesmo se essa prova não for solicitada. Para ser considerado homem normal ou padrão, ele tem que ser heterossexual e precisa o tempo todo reafirmar isso diante dos outros, daí os comportamentos sexistas. É uma série de atitudes e de formas de sentir e pensar pré-determinadas que devem ser seguidas para que o homem se sinta homem. Isso é o que se chama masculinidade hegemônica.

E o que ocorre quando este modelo não é alcançado ou não é seguido?

O grau de sucesso que cada homem atinge em seguir esse modelo é muito variado. Não seguir pode ser um processo muito desgastante. E ele pode ser marginalizado por isso. Mas muitos homens seguem “o roteiro direitinho”. Eu pessoalmente, desde pequeno, sempre tive problemas com esse modelo de masculinidade hegemônica. Por exemplo, uma coisa meio mundana, mas que hoje eu vejo que fez uma diferença no meu processo de socialização: eu sempre fui péssimo em futebol. Era para mim uma experiência absolutamente pavorosa quando meus amigos se reuniam para jogar bola, na hora de formar os times. Eu sempre era o último a ser escolhido, quando eu era escolhido. Eu fico me perguntando às vezes o que seria de mim, como homem, se eu jogasse bem bola. Aquela situação em si já impingia uma diferença em mim em relação aos meus colegas. Eu tenho certeza que aquilo teve um impacto em mim e na minha evolução como homem. Futebol, pelo menos no Brasil, sempre foi um esporte muito associado à masculinidade. Qual homem não joga bola? Eu não gostava de futebol. Não só não sabia jogar, como não gostava. E via todos meus amigos homens que adoravam futebol. Eu me perguntava: Será que tem alguma coisa errada comigo? Eu sou o único homem que não gosta de futebol. Por isso, tive problemas com esse processo de socialização do homem considerado “normal”, por conta dessa história do futebol.

Pensando em masculinidade e saúde, que tipo de impactos existem para a saúde do homem?

Uma coisa que os homens que participavam dos grupos reflexivos se ressentiam muito era que não participavam mais da educação dos filhos. É claro que de imediato eles não faziam uma associação com o fato de isso ter a ver com gênero. Mas era uma reclamação que surgia com uma certa frequência. Pelo menos a partir da nossa experiência com os grupos reflexivos de gênero, a gente vê que um dos impactos é esse. Como nessa divisão de tarefas da sociedade patriarcal, a criação dos filhos fica mais sob a responsabilidade das mulheres, os homens se colocam meio apartados do processo de criação e acompanham o crescimento dos filhos à distância. E eles se ressentem por isso, apesar de não fazerem a associação com a questão de gênero. Esse é um efeito deletério da socialização baseada no modelo hegemônico de masculinidade. Os homens cuidam menos da saúde e isso tem a ver também com gênero. Tem um pouco a ver com a questão que o homem tem pavor de perder autonomia, de se mostrar frágil. Ele evita ir no médico como uma forma meio fantasiosa de tentar encobrir algo que possa expor sua vulnerabilidade. A população de homens encarcerados é muito maior do que a das mulheres. O número de homens que morrem por mortes violentas é muito maior do que o das mulheres. Isso tem a ver também com a questão de gênero, porque o homem tem que defender sua honra, mostrar que é forte, mostrar que ele é capaz de ser agressivo. Isso gera essas consequências nefastas para os próprios homens.

No período da adolescência, provar a masculinidade ou a virilidade se torna uma pressão muito forte — da família e dos colegas, por exemplo. Como isso pode afetar os garotos em relação à saúde mental e a lidar com o “sensível”?

Eu acho que [isso ocorre] desde pequeno. O garoto cai no chão e vem a mãe e diz: “Homem não chora, para de chorar”. Quando para o homem é dado uma bola de futebol e para a mulher, uma boneca. Por que não é dada uma boneca para o menino? Por que homens têm que vestir azul e mulheres, rosa? Essa pressão que a sociedade coloca para que o homem assuma um papel determinado de gênero vem desde pequeno.

Os padrões de masculinidade também estão associados à violência e à dominação. Como ocorre a passagem de fato para a violência de gênero?

Isso pode ocorrer quando, de alguma maneira, o homem se sente ameaçado. Essa ameaça pode atacar em várias frentes. Pode ser das coisas mais simples às mais sérias. O cara chega em casa à noite e a mulher não preparou a comida dele. Diz que trabalhou o dia inteiro, cuidou dos filhos e não deu tempo. Ele pode ficar violento nessa hora porque ele entende que fez seu papel, mas o papel da mulher, que era cuidar dos afazeres domésticos, não foi cumprido. Isso ameaça uma determinada ordem das coisas e ameaça a ele como homem também. Então ele pode partir para a ofensiva para tentar reestabelecer a ordem padrão que ele acha que é a correta. É sempre quando ele se sente ameaçado, acuado. Alguma coisa se subverte naquela ordem estabelecida padrão.

Que saídas podemos pensar para a violência de gênero, tanto em relação ao agressor quanto à vítima?

É preciso trabalhar isso massivamente pelo viés da educação. É preciso discutir essas questões das relações de gênero, dos papeis de gênero, na escola, desde pequeno. Não vejo uma maneira mais eficaz do que essa. Precisa-se fazer um trabalho de educação. É por onde a gente tem que começar. Mas é preciso vontade política para isso. Tem que trabalhar essa questão com os professores primeiro, inclusive trabalhar em nível pessoal.

Como é possível romper com esse tipo de comportamento no cotidiano?

Infelizmente a gente não pode dizer que o trabalho dos grupos reflexivos de gênero promoveu uma mudança interna, profunda, em como os homens se pensam homens. Esse tipo de resultado a gente não obteve a maior parte das vezes. O principal resultado foi que os homens adquiriram um maior controle sobre sua própria agressividade. Eles conseguem dimensionar o impacto que a violência tem em suas vidas e criam condições para ter um maior controle sobre sua agressividade. O índice de reincidência enquanto os homens estavam participando dos grupos caiu drasticamente. Pelo menos como um dispositivo de contenção de violência, os grupos reflexivos funcionam muito bem. A probabilidade de eles reincidirem cai drasticamente enquanto estão fazendo os grupos.

Em que medida os padrões de masculinidade reagem ao empoderamento feminino?

Não sou um adepto de querer difundir de forma absoluta um novo padrão de relacionamento. Tem pessoas que não querem, que não estão preparadas, que estão satisfeitas com os padrões antigos. Quem sou eu para dizer que ela está errada, que sua masculinidade é tóxica? Mas a gente sabe que essa masculinidade hegemônica é uma realidade e para onde esse tipo de coisa pode levar as pessoas. Como a gente concilia a necessidade de termos uma sociedade mais equitativa com esse povo que não quer saber disso? É preciso buscar relações mais equitativas na sociedade. Isso é uma questão de saúde pública e deve ser inclusive uma política de Estado. O refluxo conservador tem um pouco a ver com a reação do homem que chega em casa e a mulher não preparou sua comida. Nenhuma das campanhas que procuram promover a igualdade de gênero impõem mudanças de modo compulsório. São campanhas de esclarecimento. Mas eles [os conservadores] se sentem ameaçados no mundinho que acham que é o ideal para eles. Abre-se todo um campo desconhecido e ameaçador sobre aquela forma com a qual estão acostumados e foram ensinados a apreciar. Pensam: “Eu passei a vida inteira agindo de uma maneira. Quem é você para dizer que devo agir de modo diferente?” Mas no fundo é medo também.


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