18/04/2024 - Edição 540

Brasil

Bolsonaro e Salles inflam teorias da conspiração sobre vazamento de óleo no Nordeste

Publicado em 24/10/2019 12:00 -

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O mais recente balanço do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) sobre o vazamento de óleo no Nordeste indica a ocorrência de manchas e vestígios em 204 praias, distribuídas em 78 municípios de nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Um crime ambiental sem precedentes untou de óleo praias, rios, mangues e barreiras de corais de toda a região. Mas ao invés de sobrevoar o local, prestar solidariedade pessoalmente às comunidades atingidas e executar um plano efetivo de contenção de impactos e remediação de danos, Jair Bolsonaro apenas repete que tem certeza que o vazamento foi criminoso. Pior: infla teorias conspiratórias (como a de que isso poderia ser um ato para atrapalhar leilão do Pré-sal), sem apresentar provas.

O petróleo pode ter sido deliberadamente jogado ao mar, bem como ter sido um vazamento não-intencional. Em ambos os casos, estamos diante de um crime, com um responsável. As investigações – em curso por pesquisadores e pela Marinha – precisam apontar quem é (para a sua punição legal, o que inclui o pagamento pelos prejuízos), quanto onde ocorreu (a fim de ajudar a fechar a torneira). Essa é a parte óbvia da história. Mas, enquanto isso, há um rosário de ações pessoais que um presidente preparado para o cargo que ocupa poderia estar tomando ao invés de fazer conjecturas. Deixa as ações para sua equipe e se envolve apenas para dizer que a culpa é de terceiros.

Pressionado pelo Ministério Público Federal e por integrantes do governo, como o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, que criticou a falta de comunicação das ações públicas contra o desastre ambiental, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fez um pronunciamento nesta noite de quarta (23) para falar do assunto. Entre vários temas, ele falou que, a pedido do presidente Jair Bolsonaro, vai acionar a Organização dos Estados Americanos (OEA) para que o órgão mobilize a Venezuela. O óleo tóxico tem procedência venezuelana. O governo do presidente Nicolás Maduro afirma não ter qualquer relação com o acidente ambiental.

“Amostras do material coletado foram analisadas em laboratórios especializados, que identificaram que esse material não foi extraído em território nacional, mas provem conforme demonstrado por analise técnica de poços e misturas de origem venezuelana (…) Desse modo, o presidente da República determinou que fosse encaminhada solicitação formal à OEA para que a Venezuela se manifeste sobre o material coletado”, declarou.

Na quinta-feira (25) Salles atacou o Greenpeace, uma das principais ONGs ambientais do mundo. Sem apresentar qualquer prova, ele insinuou, em mensagem no Twitter, que a organização pode estar por trás das manchas de óleo.

Junto ao texto, o ministro ainda publicou uma foto do navio Esperanza, que pertence à ONG, dando a entender que a foto é atual. Porém, a imagem é de 2016 e foi tirada no Oceano Índico.

Foi a segunda vez em três dias que o ministro usa as redes sociais para fazer insinuações – sem provas – contra o Greenpeace. Na terça-feira (22), ele já havia publicado a versão editada de um vídeo originalmente publicado pelo Greenpeace Brasil, insinuando que o grupo não estava atuando nos esforços de combate ao óleo.

O vídeo publicado por Salles, porém, era mais curto que o original e suprimia um trecho em que um porta-voz falava claramente que voluntários do Greenpeace estavam atuando na limpeza das praias.

Na quarta-feira (23), Salles também chamou os membros da ONG de "ecoterroristas" após o grupo organizar um protesto em frente ao Palácio do Planalto.

O Greenpeace, assim como outras ONGs e governos estaduais do Nordeste, vem criticando o governo Bolsonaro pela demora e falta de ações efetivas para conter o desastre ambiental no Nordeste.

Ao insinuar que o Greenpeace teria alguma relação com as manchas de óleo, Salles adotou uma tática similar à do presidente Jair Bolsonaro, que em agosto insinuou – também sem provas – que ONGs estariam por trás das queimadas que castigavam a Amazônia. À época, Bolsonaro também estava sendo alvo de críticas pela falta de ação para conter o desmatamento e o fogo.

Em nota, o Greenpeace afirmou que pretende tomar "medidas legais cabíveis" contra o ministro. "As autoridades têm que assumir responsabilidade e responder pelo Estado de direito pelos seus atos", disse a ONG.

O Greenpeace ainda apontou que o navio Esperanza "faz parte de uma campanha internacional chamada ‘Proteja os Oceanos', que saiu do Ártico e vai até a Antártida ao longo de um ano, denunciando as ameaças aos mares. A ONG ainda afirmou que a embarcação passou pela Guiana Francesa, entre agosto e setembro, onde realizou uma expedição de documentação e pesquisa do sistema de recifes da Amazônia.

Segundo o Greenpeace, a embarcação não tem capacidade para armazenar e transportar uma carga de centenas de toneladas de petróleo. Segundo a Marinha, na última segunda-feira já haviam sido retiradas no litoral nordestino 900 toneladas de óleo cru. 

"Enquanto o óleo continua atingindo as praias do Nordeste, o ministro Ricardo Salles nos ataca fazendo insinuações sobre o desastre ecológico. Trata-se, mais uma vez, de criar uma cortina de fumaça na tentativa de esconder a incapacidade de Salles em lidar com a situação. É bom lembrar que isso vem de alguém conhecido por mentir que estudava em Yale e ser condenado na Justiça por fraude ambiental", disse.

A insinuação de Salles ainda rendeu uma reprimenda do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em uma mensagem no Twitter, Maia escreveu ao ministro: "Estamos esperando uma posição oficial do Ministério do Meio Ambiente". Pouco depois, Salles respondeu, baixando um pouco o tom da sua insinuação, desta vez afirmando, novamente sem provas, que o navio do Greenpeace "não (sic) se prontificou a ajudar" na passagem pelo litoral do Nordeste quando apareceram as primeiras manchas.

Maia agradeceu pela resposta, mas disse que o tuíte do ministro fez "uma ilação desnecessária".

Mas não foi apenas Salles a adotar um tom irresponsável no jogo de fake news que o Governo estabeleceu como defesa a sua própria inoperância em relação ao caso. O presidente Jair Bolsonaro também associou a ONG ao vazamento. Questionado sobre os comentários de seu ministro, Bolsonaro usou o termo terrorismo e criticou enfaticamente a organização internacional. "Para mim isso é um ato terrorista. Para mim, esse Greenpeace só nos atrapalha", afirmou.  O presidente disse que vai conversar com seu ministro para entender detalhes sobre o tema. Ao fim da entrevista, o presidente repetiu: "O Greenpeace não nos ajuda em nada."

Teoria da Conspiração

No último dia 18, em uma live pelas redes sociais, Bolsonaro afirmou: "Coincidência ou não, nós temos um leilão da cessão onerosa [de petróleo excedente de uma área do Pré-sal]. Eu me pergunto, a gente tem que ter muita responsabilidade no que fala: poderia ser uma ação criminosa para prejudicar esse leilão? É uma pergunta que está no ar". Apesar de afirmar que é necessário ter responsabilidade no que fala, a própria formulação da pergunta já é irresponsável.

No dia 10 de outubro, ele já havia dito a investidores: "O último problema que tivemos: derramamento criminoso, com toda certeza, quase certeza que seja criminoso, na região costeira do Nordeste".

No dia 8 de outubro, afirmou: "É um volume que não está sendo constante. Se fosse de um navio afundado estaria saindo ainda óleo. Parece que o mais fácil, o que parece, é que criminosamente algo foi despejado lá".

E aproveitando o momento para ser ainda mais beligerante, chegou a questionar o suposto "silêncio" das organizações não-governamentais diante da catástrofe. Se ele tivesse visitado as praias, veria que a sociedade civil vem fazendo mais do que ele nos esforços de combate à tragédia.

Não só não ajuda, como joga contra. Reportagem de Phillippe Watanabe e Nicola Pamplona, na Folha de S.Paulo, aponta que o governo federal extinguiu, em abril, dois comitês que integravam o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água (PNC), instituído em 2013. Isso pode ajudar a explicar a demora e a desorganização no combate ao óleo.

Ao mesmo tempo, reportagem de Juliana Gragnani, da BBC Brasil, mostra que o governo não acionou o PNC, apesar de dizer que acionou, mesmo tendo se passado mais de 50 dias após a primeira vez que as manchas de petróleo foram avistadas. O plano, de 2013, estabelece a estrutura técnica e financeira de resposta do poder público ao acidente, atribuindo responsabilidades.

Na última quinta (17), o Ministério Público Federal entrou com uma ação contra o governo federal por omissão diante do caso.

O vice-presidente Hamilton Mourão também assumiu em entrevistas que o governo federal falhou nessa comunicação sobre o que o governo federal já fez para mitigar os efeitos da contaminação.

Tempo pessoal para se envolver verdadeiramente no caso, Bolsonaro não teve até agora. Mas para brigar com o seu partido político, buscando formas de levar seus parlamentares apoiadores (junto com os milhões em cotas de fundos partidário e eleitoral que eles representam) para uma nova agremiação, ele parece ter de sobra.

Tanto que as gravações que circulam não são de Bolsonaro conversando com governadores do Nordeste para uma solução integrada visando estancar a sangria de óleo, salvar a pesca e populações tradicionais, proteger o turismo, reduzir impactos ao meio ambiente, mas dele tentando articular a derrubada do Delegado Waldir e colocar seu filho, Eduardo Bolsonaro, como líder do PSL na Câmara dos Deputados.

Inépcia do Governo

Quando a mancha de óleo chegou à Pernambuco, no último dia 4, o ministro do Meio Ambiente estava ocupado — “gravação do Hino Nacional”, segundo a própria agenda. Cavalgando correntezas, a goma negra e contaminante invadiu 43 praias do Rio Grande do Norte nas três semanas seguintes. O ministro Ricardo Salles viajava por São Paulo, Bonito (MS), Cartagena, Washington, Nova York, Paris e Berlim. Foi mostrar que o desmatamento da Amazônia é coisa de comunistas.

Declarou guerra na redes sociais a quem “viaja ao exterior para ficar falando mal do seu próprio país”. De Washington, escreveu: “O Brasil está se modernizando”. De Nova York, registrou: “O Brasil é exemplo de sustentabilidade!” Enquanto isso, a mancha negra se espraiava por Sergipe, levando o estado à emergência.

Quando setembro terminou, estava em Berlim. O petróleo cru já vazara em 72 municípios dos nove estados do Nordeste. Oleara dois mil quilômetros de praias, provocando inquietude na região que é um terço do país. Na volta ao Brasil, ele emitiu um autoelogio: “Estamos a serviço das boas causas em benefício dos brasileiros e do meio ambiente!”

Havia um mês de escória enlutando a costa do Maranhão à Bahia, quando anunciou: “O Pres. @jairbolsonaro determinou urgência na apuração de responsabilidades (…) Faremos vistoria in loco.” Era sábado, 5 de outubro. Ao meio-dia da segunda-feira foi a Aracaju. Lá ficou por 125 minutos— com fotos. Às 18h20 desceu em Brasília. Na Câmara, lamentou a “enorme dificuldade” (com o óleo).

Voltou a São Paulo, “com nosso querido Pres. @jairbolsonaro”, quando o petróleo já ondeava na Baía de Todos os Santos e decretava-se emergência em oito municípios.

Quarta-feira passada (23) fez outra “vistoria nas áreas atingidas”. Novas fotos em Salvador, Maceió e Aracaju. Às 19h30, retornou a Brasília.  Passaram-se 50 dias. No rastro da inépcia, a Justiça mandou o governo federal tomar providências. O ministro Salles, agora, tem ordem judicial para trabalhar.

Inépcia dos militares

O Governo Bolsonaro não considerava necessária a entrada de homens do Exército nos trabalhos de limpeza das praias do Nordeste atingidas por manchas de petróleo, até que o produto começou a aparecer em maior quantidade e em mais localidades, disse o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, na terça-feira (22).

Em coletiva de imprensa ao lado do governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), em Recife, o ministro disse que a Marinha vinha atuando desde o início da tragédia ambiental, mas que o governo só entendeu necessário empregar o Exército quando as manchas se tornaram maiores.

“Nós não julgávamos ser necessário empregar o Exército. Quando precisou, nós empregamos o Exército. Quando as manchas saíram de Salvador, recrudesceu, chegaram em Pernambuco nesses dias, aí sim”, disse Azevedo e Silva, que discordou da avaliação de que o governo federal demorou a responder à catástrofe.

“Desde o início de setembro a Marinha está debruçada nisso com o efetivo possível, com os navios possíveis, com a parte técnica possível fazendo uma investigação em relação a isso, atuando em relação a isso”, disse ele.

Em seguida, destacou o ministro, foi lançado o Plano Nacional de Contingência, “que está sendo seguido”.

″É lógico que no início de setembro, o aparecimento das manchas era pequeno, mas no início de outubro elas aumentaram, e providências estão sendo tomadas”, afirmou.

Segundo o governo federal, a operação já retirou 600 toneladas de óleo misturado com areia das praias. Esses resíduos estão sendo armazenadas e podem ter como destinação fabricantes de cimento que podem reutilizar esse material.

O emprego de entre 4 mil a 5 mil homens da 10ª Brigada de Infantaria Motorizada nos trabalhos de limpeza foi anunciado na véspera pelo presidente em exercício Hamilton Mourão.

O ministro da Defesa garantiu que Bolsonaro tem acompanhado os trabalhos de limpeza, assim como os esforços de investigação, que ainda não foram capazes de determinar a origem do petróleo que tem aparecido nas praias nordestinas.

“A autorização de empregar o Exército se possível fosse, se fosse necessário, foi dele (Bolsonaro), ratificada pelo presidente (em exercício) Mourão ontem. Então ele tem acompanhado, tem me passado mensagens sempre. Ele acompanha, me perguntou se o Exército já estava sendo empregado hoje. Hoje cinco da manhã significa cinco da tarde lá (no Japão)”, disse o ministro.

Navio irregular

O comandante da Marinha do Brasil, almirante Ilques Barbosa Júnior, disse que as investigações sobre a origem do óleo miram cerca de 30 navios regulares, de dez países diferentes, que passaram perto da costa brasileira. 

A investigação inicial lidava com cerca de mil embarcações. "Nós saímos de mil navios para 30 navios", afirmou Barbosa, após reunião com o presidente em exercício, Hamilton Mourão, no Palácio do Planalto.

Mas, segundo o comandante, a maior probabilidade é que o vazamento tenha partido de um navio irregular, um "dark ship". "O mais provável é um dark ship ou um navio que teve um incidente e, infelizmente, não progrediu a informação como deveria", disse, explicando que, por convenção internacional, todo incidente de navegação deve ser informado pelo comandante responsável.

Um dark ship é um navio que transporta uma carga que não pode ser comercializada, muitas vezes por causa de sanções contra algum país. Ao navegar, ele busca linhas de comunicação marítimas pouco frequentadas para evitar ser interceptado e não alimenta seu sistema de identificação, muitas vezes desligando o transponder. "Ele procura as sombras. E essa navegação às sombras produz essa dificuldade de detecção", disse o almirante Barbosa.

Ainda segundo o comandante, a quantidade de óleo que já chegou à costa brasileira é muito menor do que a capacidade dos navios investigados, em torno de 300 mil toneladas. Até esta segunda-feira, haviam sido recolhidas 900 toneladas de resíduos de óleo cru nas praias do Nordeste.

Para Barbosa, é muito pouco provável que o vazamento tenha acontecido durante uma transferência de óleo em alto mar.

"A transferência é uma atividade marinheira de extremo risco. Isso, fazer em mar aberto, onde o mar pode estar em situação adversa, ou pode ficar em situação adversa ao longo do trabalho, não é uma atividade que os armadores, proprietários de navios, recomendariam. Não seria uma atitude de comandante responsável, muito menos dos armadores", explicou.

O comandante da Marinha informou que as apurações correm em sigilo e que não há data para a conclusão dos trabalhos. "As investigações prosseguem e só terminarão no dia em que nós localizarmos quem agrediu a nossa pátria. Isso é importante deixar sublinhado. Se demorar 200 anos, vamos fixar 200 anos nisso, até achar [os responsáveis]", afirmou Barbosa.

Por fim, o almirante disse que não há indícios de que as manchas de óleo que atingem o Nordeste tenham sido provocadas pelo governo ou pela indústria venezuelana. "O que se sabe pelos cientistas é que o petróleo é de origem venezuelana. Não quer dizer que houve, em algum momento, envolvimento de qualquer setor responsável, tanto privado quanto público, da Venezuela nesse assunto."

Custo caro

Para especialistas, a resposta do governo tem sido precária. Uma evidência disso seria a falta de condições básicas para dar suporte aos mutirões voluntários da população local nas praias do Nordeste. Na quarta-feira (23), a Polícia Federal solicitou ao governo 50 mil luvas e 10 mil botas.

Embora critiquem a inação do governo atual ante o desastre, os analistas apontam que o problema central é a falta de preparo no longo prazo para lidar com situações desse tipo, especialmente em um país que explora, produz e transporta petróleo em alto mar.

Na última década, os estados produtores foram inundados com royalties referentes a essa atividade, mas pouco ou nenhum recurso foi investido na prevenção de acidentes – real finalidade dessa contrapartida financeira.

"As soluções que buscam mitigar os efeitos de eventos trágicos como este devem sair de iniciativas com pró-atividade, e não reatividade", avalia o meteorologista Luiz Paulo Assad, coordenador do Núcleo de Modelagem Ambiental na Coppe/UFRJ, o Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com uma simulação de computador.

"Está mais do que na hora de podermos desenvolver efetivamente um sistema nacional integrado de identificação e monitoramento de óleo no mar, para que estejamos preparados para dar respostas à sociedade em eventos como este. Temos expertise e conhecimento de métodos para isso", assegura.

A pedido da Marinha, Assad e o pesquisador Luiz Landau, coordenador do Laboratório de Métodos Computacionais em Engenharia, cruzaram dados meteoceanográficos com o mapa de manchas de óleo encontradas na costa nordestina.

Pela inversão do sentido temporal do modelo rodado em computador, a partir dos pontos de destino do óleo fragmentado, os pesquisadores chegaram a uma estimativa sobre a origem do material poluente: uma área entre 600 quilômetros e 700 quilômetros da costa brasileira, numa faixa de latitude com centro entre Sergipe e Alagoas. Agora, os cientistas se dedicam a analisar os prováveis destinos do óleo.

Berçários do mar ameaçados

Enquanto isso, as manchas continuam a se espalhar. Mais do que prejudicar a economia da região, por afetar o turismo e a atividade pesqueira, o dano à vida marinha deverá ser trágico.

O oceanógrafo David Zee, professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), explica que a área afetada até aqui compreende uma extensão de aproximadamente 2.355 quilômetros de costa. Dessa porção, cerca de 1.200 quilômetros abrigam manguezais e recifes de corais, biomas extremamente sensíveis.

"Temos um dilema. Se essa borra de óleo encosta no recife e gruda, a melhor alternativa é deixar como está. O produto dispersante é muito mais venenoso para a vida marinha do que o próprio óleo cru. É como um chiclete grudar no cabelo, a única forma de tirar é arrancar. Como queremos preservar o ecossistema, o melhor é deixar como está", expõe o pesquisador.

Nesse caso, o óleo poderia permanecer nos recifes e manguezais por um período de 20 a 40 anos, tempo que leva para se decompor. Como os ecossistemas marinhos são muito integrados, o impacto se estende à toda a cadeia desses biomas. "Os recifes são os berçários do mar. É onde a vida tem proteção, abrigo e alimento para a procriação", comenta Zee.

A principal medida para evitar o avanço do óleo e proteger esses pontos sensíveis tem sido a utilização de barreiras de contenção. Governadores do Nordeste têm cobrado do governo federal a compra de novas estruturas.

Em nota técnica recente, no entanto, o Ibama afirma que as barreiras podem ter um efeito reverso em áreas que já estão contaminadas, impedindo a depuração natural do ambiente.

Anna Carolina Lobo, gerente do Programa Marinho da organização internacional WWF, explica que há protocolos internacionais a serem seguidos em desastres desse tipo, extraídos de acordos dos quais o Brasil é signatário.

"É fundamental a identificação do óleo, para identificar de onde vem e acionar o responsável para arcar com recursos financeiros para a mitigação emergencial dos impactos. Além disso, tem que haver o treinamento das comunidades e pessoas que vivem na costa para lidar com um problema desse tipo, bem como a compra de equipamentos de proteção individual para as pessoas que atuam nos mutirões", detalha.

Os procedimentos descritos já foram adotados em outros episódios de vazamento de óleo no mar, como o do poço de Macondo, no Golfo do México, em 2010, e o do navio Exxon Valdez, no Alasca, em 1989. No entanto, nestes e em outros casos, a fonte do vazamento era conhecida.

Criticando a inação do governo brasileiro, a porta-voz do WWF acrescenta que também seria fundamental uma ação coordenada entre Marinha, Ibama, Ministério do Meio Ambiente e Agência Nacional do Petróleo, para lidar com o caso na urgência requerida. "É um cenário caótico. A gente nunca ouviu falar de algo semelhante ocorrido em outro país que passou por isso", afirma.

Décadas

"A contaminação química dura muito mais tempo do que aquilo que a poluição visual pode sugerir."  Essa não é uma afirmação boa de ouvir, mas é a realidade expressada pela oceanógrafa Mariana Thevenin, uma das articuladoras do grupo de voluntários Guardiões do Litoral, que se formou em Salvador para limpar praias, estuários e manguezais desde que a contaminação chegou à costa da Bahia.

Em um cenário ideal, aponta Thevenin, o derivado de petróleo deveria ter sido barrado antes de chegar à areia e entrar pelos rios. Entretanto, se o óleo já chegou à costa, a limpeza deve ser feita na maior velocidade possível, na tentativa de evitar que ele volte para o mar com o movimento das marés ou que as substâncias tóxicas ali contidas se entranhem nos variados sedimentos costeiros.

Ainda assim, não se pode criar ilusões. Mesmo quando, para os olhos, parece limpo, o risco pode seguir oculto por muitos anos. "Essas substâncias contaminam todos os organismos do ambiente e isso facilmente cai na cadeia alimentar. Um pequeno peixe, por exemplo, pode comer algo que esteja contaminado. Isso entra na cadeia até chegar no peixe que consumimos", alerta Thevenin, criadora do perfil Oceano para Leigos, no Instagram.

O petróleo cru, ainda que seja altamente tóxico, é uma substância orgânica. Dessa forma, ele pode ser degradado através de fatores naturais, como a rebentação das ondas (que dispersam o material), a irradiação solar (que evapora determinados componentes) e até mesmo bactérias que se alimentam do carbono contido no material. O problema, nesse caso, é o tempo.

"A degradação natural é extremamente lenta. A depender do ambiente, leva décadas. Em áreas onde já ocorreram derrames, temos análises feitas anos depois do episódio e ainda assim é detectada a toxicidade. Por isso seria importante evitar que esse óleo chegasse na costa", diz Carine Santana Silva, que é oceanógrafa, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em petróleo e meio ambiente.

Além do risco na cadeia alimentar, as pessoas também estão sujeitas a entrar em contato direto com os contaminantes que permanecerem no ambiente. Isso pode acontecer em uma simples caminhada pela areia da praia ou no banho de mar, tocando involuntariamente em resíduos de óleo ou inalando os gases liberados por eles.

"O monitoramento das regiões atingidas precisa ser feito por anos, com análises constantes, para garantir que as pessoas não estão frequentando zonas intoxicadas", adverte Carine Silva.

A Bahia Pesca, órgão governamental responsável pelo fomento da atividade no Estado, produziu um relatório preliminar após monitoramento em áreas pesqueiras já atingidas pelo óleo.

"Neste ambiente vivem animais que estarão em contato direto com o poluente e têm grande importância econômica, como caranguejos, aratus, sururu, lambretas. A mariscagem será afetada diretamente nesses locais, visto que, com a presença de óleo, a recomendação é a paralisação da pesca. O comércio de organismos aquáticos dessas áreas ficará comprometido. A pesca como um todo deverá ser impactada, tendo em vista que os consumidores foram alertados para não adquirirem produtos pesqueiros", indica o documento.

De acordo com a estatal, o monitoramento seguirá sendo feito durante e após a crise, inclusive com análise química de potenciais contaminantes em peixes e mariscos a serem coletados.

Sem medição

No petróleo, estão contidos compostos orgânicos voláteis (COVs) e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), ambos altamente tóxicos e cancerígenos.

Os COVs evaporam com relativa rapidez, mas os hidrocarbonetos se mantêm íntegros por muito tempo. Para o mais famoso deles, o benzeno, a resolução 357 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina um limite que vai de 0,051 mg a 0,7 mg por litro de água salgada. Passando disso, já impacta a biota marinha e a saúde humana — ainda não existe resultado de medição na Bahia após a chegada do óleo.

"Os governos não querem fazer alarde porque um caso como esse afeta o turismo, mas existe a questão da saúde, tanto de quem frequenta praias como de quem trabalha nessas zonas, mariscando, pescando, vendendo", observa a química Sarah Rocha, que atua no laboratório da pós-graduação em Petróleo, Energia e Meio Ambiente da UFBA.

"Essas pessoas vão ficar em contato com esses resíduos por muito tempo, porque há também uma sustentação financeira em jogo. É muito difícil, por exemplo, que esses mariscos deixem de ser recolhidos para venda e é certo que muita gente vai ingerir alimentos contaminados", acrescenta ela.

Sarah Rocha integra a equipe que vem fazendo análises de amostras do óleo que tem chegado à Bahia, verificando sua origem e seu estado físico-químico. Segundo ela, o material que toca as praias já chega bem degradado, tendo passado por seguidas intempéries, e resta somente a fase da degradação bacteriana — justamente a mais demorada.

"Notamos que essas amostras têm pouca solubilidade em água. Então, o que não for retirado, ainda vai parar no fundo do mar, sem ninguém ver, contaminando mais esse ambiente."


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