26/04/2024 - Edição 540

Mundo

Os extremistas que atacam Greta Thunberg são os mesmos que me perseguem há 9 anos

Publicado em 01/10/2019 12:00 -

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Nestes últimos dias, a jovem ativista Greta Thunberg tem sido xingada, difamada, ameaçada por homens da extrema direita. Eu sei como é, já que sou alvo dessa gente desde no mínimo 2011. Não sou uma ativista climática, mas sou feminista. Acontece que a grande parte dos negacionistas climáticos (que querem convencer o mundo que está tudo bem com a terra plana e que não precisamos nos preocupar com a poluição e a destruição do meio ambiente) é de direita, e todos eles são ferrenhos anti-feministas. Logo, por mais que eu e Greta sejamos bem diferentes, quem nos ataca é muito parecido.

A ativista sueca de 16 anos é chamada de “fantoche adolescente”, “Justin Bieber da ecologia”, “profetisa do apocalipse”. E, como não poderia deixar de ser, “idiota útil”. Por essas e outras barbaridades, principalmente barbaridades machistas, a hashtag #DesculpaGreta chegou nos trending topics do Twitter e lá ficou por muitas horas, com a gente pedindo perdão pelas maldades proferidas pelos “cidadãos de bem”.

Em agosto do ano passado, Greta sentou-se na frente do parlamento sueco com um simples cartaz escrito à mão “Greve escolar pelo clima”. Ela tinha 15 anos. Em um panfleto que ela distribuía, dizia: “Estou fazendo isso porque vocês adultos estão cagando no meu futuro”. Inspirados por Greta, outros jovens passaram a fazer protestos parecidos em combate ao aquecimento global, e a onda foi crescendo.

Em agosto deste ano, Greta foi de veleiro movido a energia solar de Plymouth, Inglaterra, a Nova York. Ela evita viajar de avião pelo seu rastro poluente (285 gramas de dióxido de carbono por passageiro por hora), o que é conhecido como pegada de carbono. Na segunda-feira, 23, Greta disse aos líderes mundiais na abertura do Encontro de Ação Climática, organizado pela ONU: “Eu não deveria estar aqui, deveria estar na escola”. E prosseguiu, num discurso que viralizou: “Como vocês ousam? Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias”. Além do seu discurso, o olhar que Greta disparou para Trump também se tornou icônico.

Por conta do seu ativismo, a sueca se tornou um dos símbolos em defesa do clima e da natureza, que gerou imensas manifestações pelo mundo. Antes mesmo de Nova York, uma deputada conservadora francesa resmungou: “Não é uma garota que abandonou a escola que vai dar lições aos adultos”.

Com o sucesso promovido pela #GreveGlobalpeloClima, Greta se tornou alvo de novas críticas. Por exemplo, Eduardo Jorge, que foi candidato a presidente pelo Partido Verde em 2014, lamentou que Greta trocou paixão por raiva em seu discurso. Ele pediu mais compaixão e menos ressentimento, baseando-se num tuíte de Augusto de Franco, um palestrante que não gostou das expressões faciais e do tom de voz de Greta. A linguista Jana Viscardi descreveu bem esse desconforto do ex-candidato a presidente, ao lembrar como as meninas têm que ser sempre dóceis, sorridentes e simpáticas. Ser “durona” vai contra a nossa feminilidade. Logo, Greta não pode se dar ao luxo de ficar zangada.

A direita se encarregou de criar e espalhar montes de fake news contra Greta, assim como já fez contra mim diversas vezes. Na Páscoa de 2015, por exemplo, o exército reaça inventou um tuíte em que “eu” comemorava a morte do filho de Geraldo Alckmin num acidente de helicóptero. No mesmo ano, essa mesma organização criminosa criou um site falso no meu nome, com meu endereço residencial em cada post, em que “eu” vendia remédios abortivos e descrevia como realizava abortos em alunas minhas na UFC. Este site, aliás, só viralizou depois que reaças famosos como Olavo de Carvalho e Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, o divulgaram em suas redes sociais. Nos anos seguintes, um rapaz que eu nunca vi na vida gravou um vídeo dizendo que eu havia abusado sexualmente dele num banheiro de um congresso escolar. Outro total desconhecido fez um vídeo jurando ser meu filho, que eu teria abandonado para seguir este “demônio do feminismo”.

Outra montagem, esta distribuída pelo filho do presidente, o fritador de hambúrguer que quer ser embaixador nos EUA, é de Greta comendo num trem. Na janela, crianças pobres observam. Mas minhas fake news preferidas são que Greta vive com um terrorista do Estado Islâmico, que ela foi abandonada pelo pai, que seria um cientista social gay, e que sua mãe é uma “lésbica satanista” que ensina aborto para adolescentes. Greta, portanto, é apenas um “fruto do desajuste psicomoral causado por essa extrema esquerda vagabunda na família ocidental”.

Nenhuma novidade no front. A direita é sórdida e não se acanha de espalhar mentiras contra qualquer mulher ou menina que seja ouvida. E sempre usando uma de suas principais armas, o machismo. Já fez e continua fazendo isso comigo. Talvez seja importante não levar para o lado pessoal: não me atacam por eu ser a Lola, mas por eu ser feminista. Não atacam Greta por ser Greta, mas por ser uma ativista climática. Lógico que, ao definirem o alvo, partem para ataques a características pessoais, como o autismo de Greta, suas trancinhas, seu gênero. Uma colunista do Estadão criticou Greta por seus “olhos duros” e “rosto sem empatia” – um texto discriminatório que foi denunciado por associações de autistas, que tiraram o blog do ar.

O medo do feminismo

Como escreveu Juliana Aguilera num ótimo artigo publicado no começo do mês, uma universidade sueca começou o primeiro centro de pesquisa acadêmica do mundo dedicado a estudar o negacionismo da crise ambiental. Esse centro viu ligações inequívocas entre os negacionistas e a extrema direita, sempre anti-feminista, e concluiu que “os temas comuns não eram sobre a ameaça do meio ambiente, e sim sobre uma certa sociedade industrial moderna construída e dominada por sua forma de masculinidade”. Ou seja, qualquer coisa que se opõe ao estilo de vida do homem branco e à manutenção dos seus privilégios precisa ser combatida.

Lembram de uma pesquisa sobre estereótipos de gênero que apontou que muitos entrevistados viam colocar as compras do supermercado numa sacola de pano era algo não masculino? Então. Ser másculo é usar sacola de plástico. É não pensar duas vezes antes de destruir a natureza.

A gente pode observar essa raiva dos homens brancos no discurso do jornalista Gustavo Negreiros. Visivelmente alterado, o sujeito de Natal disse na Rádio 96 FM, do Rio Grande do Norte, que Greta é uma histérica. “Sabe do que ela está precisando? Ela está precisando de um homem. É mal amada. Se não gostar de homem, que pegue uma mulher. Ela está precisando de sexo. Vá fumar seu baseado na Suécia”.

O discurso de Gustavo é asqueroso não apenas por Greta ter 16 anos e ser autista, mas por ser um discurso misógino que é sempre usado contra mulheres. É aquilo de “falta de rola”, que usam contra qualquer mulher que tenha voz. No meu caso, chegaram até a fazer uma camiseta em que o personagem dos quadrinhos Cebolinha dizia “É falta de Lola”.

Além do mais, usar o termo “histérica” para se referir às mulheres é bastante ultrapassado. O termo vem da palavra grega que quer dizer “útero”. Ou seja, histeria foi durante milênios um distúrbio associado a mulheres. E muitas foram queimadas e mortas por esse “distúrbio” que, curiosamente, só acomete quem tem útero. Porque homens nunca ficam nervosinhos ou entram em escolas para cometerem massacres, né? É coisa de mulher, essas histéricas com TPM.

Gustavo também é comentarista da TV Tropical, que retransmite a TV Record. Num programa, com a conivência do apresentador, ele disse as mesmas coisas que no rádio: Greta é “uma menina que tá afetada psicologicamente, você vê que ela tem algum problema que não é em relação ao clima mundial”. Gustavo também a chamou de “vagabunda” por não ir às aulas e concluiu que, se ela fosse filha dele, ele “aquecia as nádegas” dela. “Não tem problema não, da cintura pra baixo pode pegar havaiana e pode meter: pá! Faz bem, esquenta o couro, educa”.

Felizmente, a repercussão aos comentários de Gustavo foi rápida. Em menos de 24 horas, três das quatro empresas que patrocinavam o programa no rádio, incluindo a Unimed, suspenderam os contratos. Como não existe ninguém mais vitimista que um reaça, o jornalista escreveu em seu blog: “Arrependido de ter atirado uma pedra em quem não merecia, através de uma piada boba, pedi desculpas […] Os danos foram mais meus que da pessoa citada. À turma do mimimi que endossa o coro das críticas nas redes sociais informo que não merece qualquer respeito. Que meus ex, atuais e futuros patrocinadores, não temam a patota vermelha sanguessuga […]. Se tiverem que deixar de patrocinar o blog que seja pela falta de qualidade, mas nunca pelo furor das redes sociais. Errei em algumas palavras por segundos, e isso me custou caro.” Ele se disse perseguido pela esquerda por falar mal diariamente do governo de Fátima Bezerra.

Gustavo foi demitido da rádio. Só foi chamado ao ar para pedir desculpas, que foram francamente ridículas. Disse que fez um “comentário infeliz”, que antes de ir falar na rádio estuda os assuntos, e pediu consideração por ter a “hombridade de reconhecer o erro”. Para ele, o erro foi não saber que “a garota lá tem um problema de saúde”. Primeiro que ser autista não é um “problema de saúde”. Depois que, se Greta não tivesse Asperger, aí tudo bem dizer que ela é uma vagabunda histérica que deveria fazer sexo em vez de ativismo?

A TV Tropical demorou um pouco mais para se manifestar, mas finalmente desligou o jornalista que espalha discurso de ódio ao chamar uma jovem ativista de vagabundinha histérica que precisa de sexo?

Gustavo não foi o único a atacar Greta, lógico. Um outro jornalista, Luis Ernesto Lacombe, que um dia antes havia defendido a polícia no caso Ágatha, falou sobre Greta na Band: “Eu não compro essa menina. Acho que essa menina tem um discurso alarmista, com frases de efeito. […] Eu acho que a gente tem que ter um debate pesado sobre clima e de quanto o homem influencia na mudança climática”. E compartilhou a fake news de que ela é financiada por George Soros. Não me pareceu um ato falho o jornalista ter usado a palavra “homem”, não “humano” ou “pessoa”, na frase “quanto o homem influencia na mudança climática”. Indica que seu incômodo é com a influência que uma mulher, uma menina, possa ter nesse debate.

O jornalista australiano Andrew Bolt escreveu que nunca viu “uma garota tão jovem com tantos problemas mentais ser tratada como guru pelos adultos”. Na Jovem Pan, apelidada de Jovem Klan por suas posições conservadoras, Rodrigo Constantino chamou Greta várias vezes de “retardada” que “tem síndrome do autismo”.

Outro reaça de marca maior, meu velho conhecido Roger, do Ultraje a Rigor, divulgou no seu Twitter uma imagem que diz “Isso sim é destruir sonhos”. Embaixo, está escrito “A sueca da minha juventude” (uma loira vestida de enfermeira, como nos filmes pornôs), e “A sueca de hoje” (Greta). É muito baixo, até para os padrões do músico mascote do Gentili. Além de sexualizar uma profissão nobre e imprescindível, a de enfermeira, sexualizam uma menina de 16 anos, que não parece nem ter 13. E óbvio ululante que o emprego de Roger não corre risco, pois seu patrão Silvio Santos está promovendo concurso de miss para avaliar as pernas mais bonitas de meninas de dez anos.

Teve também um jornalista francês veterano, um pouco mais velho que Roger (o francês tem 84 anos), que reclamou que, na sua geração, os homens procuravam meninas suecas menos rígidas que as francesas. “Imagino nosso terror se tivéssemos abordado uma Greta Thunberg”.

A raiva do jornalista parece ser a impossibilidade de sexualizar Greta. Ela é uma menina de 16 anos, logo, deve ser colocada no papel que se espera de uma mocinha dessa idade (que é ser meiga e inocente ou atriz pornô disfarçada de enfermeira ou líder de torcida, como sugere Roger).

Gostei muito da nota de repúdio da Associação de Juristas Potiguares pela Democracia e Cidadania, que chamaram o discurso de Gustavo de “fala misógina disfarçada de opinião”. “Não é mais tolerável que um comunicador que ocupe espaço em rádio e televisão de rede aberta por concessão pública se comporte de forma vil, classificando de ‘vagabunda’ e ‘histérica’ a ativista Greta […]. Tratar o ativismo e a movimentação social como ‘vagabundagem’ é demonstrar a verdadeira face do autoritarismo. Não há outra forma de buscar a regulamentação dos direitos que não seja através da luta social e política”. A Associação também classificou o ataque contra Greta de “violência de gênero”.

Um outro apoio interessante veio do satirista Mark Humphries, que fez um vídeo criando a linha de apoio Greta Thunberg, para a qual homens brancos furiosos podem ligar para contar suas angústias. “Se você é um homem adulto precisando gritar com uma menina, a helpline está aqui para te tolerar”. Outras frases bacanas incluem: “Entendemos que crianças agindo como adultos fazem adultos agirem como crianças” e “Porque quando falamos de mudanças climáticas, todos sabemos que Greta é o verdadeiro problema”.

Não vou negar que vi também algumas pessoas de esquerda lançando teorias conspiratórias absurdas, como a que os ataques a Greta e ao cacique Raoni seriam tentativas de impedir que Lula leve o Nobel da Paz. Mas é indiscutível que os maiores ataques a Greta são feitos pela direita, e não qualquer direita, mas uma extrema direita organizada, machista, negacionista de problemas ambientais, principalmente do colapso climático. Uma direita que eu, infelizmente, vim a conhecer tão bem, porque ela me ataca há anos. E por que essa mesma direita ataca Greta? Porque Greta diz com todas as letras que o capitalismo global falhou. Ela expõe a masculinidade frágil. E são eles, não nós, que precisam pedir desculpas.


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