19/04/2024 - Edição 540

Especial

Eles sentem, sofrem e amam

Publicado em 09/09/2014 12:00 -

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Há mais de 10 000 anos, o ser humano já era o que é hoje: um animal. Um animal diferenciado, mas um animal. Um predador com armas poderosas, capaz de criar e destruir como nenhum outro habitante do planeta. Aí o homem aprendeu que podia domesticar outros animais para seu próprio benefício e companhia. E estabeleceu uma relação de dominação.

Na medida em que evoluiu, a civilização humana passou a tratar mal os outros animais. Muito mal. O pensador René Descartes, no célebre ensaio Discurso do Método (1637), declarou que os animais eram como máquinas, mecanismos sem alma, nem dor. Já viramos o século 21 e essa lei absurda continua vigorando. Animais, em geral, ainda são considerados seres "inferiores", "irracionais", que devem existir apenas para nosso desfrute.

Esta visão justifica todo tipo de barbaridade cometida contra os animais. Desde seu uso em testes de cosméticos e remédios para nós, humanos, passando pela justificativa de seu uso em eventos como rodeios e circos, e culminando com agressões bárbaras e gratuitas como as que têm inundado as redes sociais nos últimos meses.

Se o homem quer ser respeitado, precisa aprender a tratar os animais com dignidade.

Recentemente, o vídeo de uma jovem atirando um gato pela janela de seu apartamento chamou a atenção para a banalização da violência. Outro vídeo mostra dois rapazes encharcando um filhote de gato com álcool e ateando fogo a ele. São apenas dois entre muitos casos. Vídeos de animais sendo torturados, atirados de prédios, afogados, pisoteados até a morte têm surgido diariamente em sites de redes sociais como o Facebook, provocando a revolta de milhares de pessoas.

Com a popularização das redes sociais, a impressão que se tem é de que o número de casos de agressões contra animais vem aumentando exponencialmente. Ativistas, no entanto, fazem outra avaliação. A advogada Suynara Marques Pinheiro discorda. "Não acredito em aumento no número de casos de maus- tratos, mas no aumento do reconhecimento do animal como um ser individual. E é justamente porque existem pessoas que comprovaram que o animal é um ser individual, e, portanto, sente fome, frio, dor e todos os sentimentos que antes eram reconhecidos somente em humanos, que conseguimos enxergar e nos escandalizar com os casos de crueldade", avalia Pinheiro, que integra a Subcomissão de Defesa dos Direitos dos Animais, da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção Ceará (OAB-CE).

Para a presidente da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais (SUIPA), Izabel Cristina Nascimento, as pessoas começaram a tomar conhecimento destas barbaridades por meio das redes sociais. “Esse era um assunto desconhecido para a maioria, mas muito comum e conhecido pelos protetores”, afirma.

Izabel vê com bons olhos a disseminação de vídeos com flagrantes de maus tratos como forma de conscientizar as pessoas para esse problema. Ela também não acredita que a postagem incentive a violência contra os animais. Segundo ela, a discussão desse tema nas redes é positiva porque a realidade diária conhecida pelos protetores precisa ser amplamente divulgada, para que as pessoas possam refletir sobre a violência praticada, aos ditos “irracionais”, pelos ditos “racionais”.

O que diz a lei

Alguns tipos de maus-tratos contra animais são evidentes e de amplo conhecimento público. Qualquer prática de violência que provoque lesões físicas em animais, por exemplo, são compreendidas pela população geral como maus-tratos. Mas este tema é muito mais amplo e há quem cometa crimes dessa natureza sem sequer saber ou entender a infração que está praticando.

O Artigo 32 da Lei Federal 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) atualmente é a única ferramenta punitiva contra pessoas que cometem crimes de maus-tratos contra os animais e contra a natureza. A legislação, porém, além de ampla – por tratar questões não somente específicas aos animais – define superficialmente o que são os maus-tratos, uma vez que sua função é mais focada na determinação de sanções penais e administrativas e não na conceituação do que é de fato considerado um comportamento ilícito.

Mesmo quando uma pessoa assume a guarda de um animal, ela é impedida de cometer maus-tratos e obrigada a tratá-lo adequadamente, estando sujeito a responder judicialmente, caso infrinja as normas. O mesmo vale para animais que não estejam sob a guarda daquela pessoa, como os animais domésticos de rua ou animais silvestres. Cabe à população denunciar crimes desta natureza às autoridades policiais, que têm obrigação legal de investigarem os fatos. Em última instância, cabe ao Ministério Público Estadual, através da Procuradoria do Meio Ambiente, intervir em defesa dos animais.

Mesmo quando uma pessoa assume a guarda de um animal, ela é impedida de cometer maus-tratos e obrigada a tratá-lo adequadamente, estando sujeito a responder judicialmente.

Vale ressaltar que, embora o Decreto especifique mais detalhadamente o que são os maus-tratos, trata-se de uma normativa muito obsoleta – datada de 1934. Outras legislações mais modernas, em diferentes esferas de governo, podem complementar essa definição, garantindo de forma mais eficiente a defesa dos animais.

A conceituação de maus-tratos vai bem além do conhecimento popular. A questão é relacionada não apenas às descrições propostas nas legislações vigentes, mas principalmente na educação da população e no respeito que a sociedade adquire em relação ao meio ambiente e aos seres vivos que coexistem na natureza. A conscientização parte de um exercício de ponderação.

Mas é importante que, além da educação ambiental, a população conheça as leis que protegem os animais. Dessa forma, além destes indivíduos aprenderem a respeitar todas as formas de vida, saberão também como agir nos casos em que presenciam casos de maus-tratos.

Como denunciar maus-tratos?

Em caso de flagrante de maus-tratos, o cidadão deve acionar a Polícia pelo 190, reportando a ocorrência do crime e pedindo para que um agente intervenha sobre a situação. Se possível, colete provas: filmagens, fotos e depoimentos de outras testemunhas. Cabe a policia conduzir o suspeito à delegacia para registro de boletim de ocorrência ou Termo Circunstanciado. O autor da denúncia pode optar pelo sigilo de identificação, caso tema represálias.

A coleta de evidências vale também para casos de maus-tratos não imediatos, ou seja, àqueles que não estejam ocorrendo no momento, mas sobre os quais há provas ou indícios de que ocorreram. Neste tipo de caso, recomenda-se que a pessoa registre um boletim de ocorrência na delegacia mais próxima à sua residência ou em uma delegacia especializada em proteção de animais e meio ambiente, caso a cidade tenha este setor. Recomenda-se também que o autor da denúncia leve consigo uma cópia do artigo 32 da Lei Federal 9.605/98, que criminaliza a prática de atos de abuso e maus-tratos a animais domésticos, domesticados, silvestres, nativos ou exóticos.

Exploração Econômica

Existe um limite entre transformar um animal em fonte de renda e tratá-lo como uma simples mercadoria? Em alguns lugares não. Os mais chocantes exemplos ocorrem no extremo Oriente. Em restaurantes do Japão, da China, da Coréia e de Taiwan, cães são lentamente torturados até a morte para que consumidores possam saborear suas carnes regadas a doses brutais de adrenalina. Peixes, polvos e crustáceos são consumidor ainda vivos, debatendo-se no prato em festivais grotescos de gastronomia. Em fazendas chinesas, ursos passam a totalidade de suas vidas – 40 anos de dor – deitados entre as grades de gaiolas apertadíssimas, com um tubo enfiado no fígado para a coleta de bílis – que os orientais consideram "medicinal". Tigres estão sendo exterminados para que seus pênis sejam transformados em "chá afrodisíaco". O ocidente também oferece sua porção de barbárie. Para fazer o foie gras (patê de fígado de ganso), por exemplo, as aves são forçadas a se alimentar com um cano enfiado pela goela até que seu fígado aumente desproporcionalmente devido ao acúmulo de gordura.

São exemplos dramáticos, mas que ilustram a que ponto os seres humanos levam essa ideia absurda de que são senhores absolutos da natureza. O pensamento de Descartes continua reinando em criadouros onde galinhas não podem dormir nem se mexer, apenas engordar até o abate em plena juventude. Bezerros são tirados das mães, trancados em cubículos de cimento e obrigados a passar seus poucos meses de existência no escuro, tendo leite em pó como única fonte de alimentação. Essa existência imóvel e sem sol termina com um choque na cabeça. O bezerro vira baby beef, artigo de luxo em açougues e churrascarias.

Hoje se sabe que a doença da vaca louca surgiu quando criadores europeus alimentaram seus bovinos com carcaças de animais, obrigando bois e vacas a romper com milênios de evolução para se tornarem canibais. É a consequência da busca de máxima rentabilidade sem o mínimo de ética.

Michelangelo já dizia, em pleno século 16, que, enquanto os homens não aprendessem a respeitar os animais, não saberiam respeitar a si próprios. Agora, um novo conceito de atuação política e pessoal se espalha pelo mundo: o Direito dos Animais. Ele se baseia no fato de que, se o homem quer ter seus direitos respeitados, deve ser coerente e tratar animais com dignidade e civilidade. Ou não poderemos nos chamar de civilizados.

“Coisas”

Hoje, no Brasil, a pena para os maus tratos contra animais domésticos varia de três meses a um ano de prisão, no máximo um ano e meio, se há a morte do animal. Os casos acabam convertidos em penas alternativas, com o pagamento de cestas básicas ou a realização de serviços comunitários.

Grupos defensores dos direitos dos animais sugerem a necessidade de penas mais rígidas para os agressores de animais. Izabel Cristina Nascimento, da SUIPA, defende ainda uma mudança na legislação que trata do tema como forma de endurecer a pena para quem pratica tais atos.

Ela explica que nas leis brasileiras, os animais “não humanos”, são chamados de “objetos de direito”, enquanto que os “animais humanos” são considerados “sujeitos de direito”. Enquanto os “animais não humanos” não forem incluídos na categoria de sujeitos, as penas continuarão muito brandas e, os agressores continuarão impunes, pagando, quando condenados, no máximo, uma cesta básica ou cumprindo alguma pena alternativa.

É o que defende o advogado norte-americano Steven Wise, cuja luta é elevar o status de animais como cães, gatos, chimpanzés, bonobos, gorilas, golfinhos, elefantes, porcos, papagaios e polvos – cuja consciência já está sabidamente comprovada em pesquisas – na cadeia de direitos. Wise faz isso há 30 anos nas cortes e nos bastidores, ao professar aulas nas faculdades de direito de Harvard, Vermont, Miami, John Marshall e Lewis & Clarck, e na medicina veterinária da Tufts, em Massachusetts.

Wise também pilota o projeto Direitos dos Não Humanos, uma organização baseada na Flórida, cuja missão é mudar a condição legal de pelo menos algumas espécies não humanas, tirando-as do limbo de meras “coisas”

“Um ser somente tem direitos se for humano. Isso é fruto de uma história repleta de ignorância. Quais foram as razões pelas quais nos demos tantos direitos?”, questiona.

Políticas públicas

O presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Animais, deputado federal Ricardo Izar Junior (PSD-SP), tem cerca de 50 projetos sobre políticas públicas para direito dos animais tramitando na Câmara dos Deputados. Ele afirma que, apesar das propostas existirem, as "políticas públicas de direitos para animais sempre foram tratadas como uma piada na Câmara dos Deputados".

Desde 2003, ele tenta aprovar projetos que vão desde a criação de um fundo nacional para proteger animais até penas mais severas para quem for pego maltratando animais. Além disso, o deputado sugere um ministério responsável por animais domésticos e uma lei que torne a zoofilia crime. 

O debate sobre o tema no legislativo federal voltou à tona depois da invasão do Instituto Royal, em São Paulo, por manifestantes contrários a testes com animais. Na ocasião, ativistas resgataram quase 200 cães da raça beagle sob a alegação de que eles eram maltratados enquanto serviam de "cobaias" para testes de medicamentos.

“A política pública no Brasil para animais é zero. É um dos países mais atrasados nesse assunto, tem muita coisa para ser feita. Não é só questão de testes em animais, tudo está errado. Não existe um ministério responsável por animais domésticos, não existe investimento do governo para controle populacional de cães e gatos. Tudo está errado e tudo está na Casa tramitando há muito tempo”, afirma Izar.

Em junho, no entanto, a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Animais conseguiu aprovar na Câmara, o Projeto de Lei 6602/2013, de autoria de Izar, que proíbe testes em animais para desenvolvimento de cosméticos, na forma do substitutivo. A lei, agora, aguarda retorno do Senado.

Código Federal de Bem-Estar Animal

O Projeto de Lei 215/2007, de autoria do deputado tucano Ricardo Tripoli (SP), é outra ação importante no âmbito do legislativo federal. Ela institui o chamado Código Federal de Bem-Estar Animal. A proposta é a mais abrangente sobre o tema.

 “O ideal seria o presidente Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) criar uma comissão (para apreciação do Código). O projeto é bom. Se a comissão for criada, todos os projetos apensados serão discutidos junto. Aí, teremos uma ampla discussão.”, opina Izar.

Tripoli diz que o Projeto de Lei 215/2007 é uma evolução ao Código Estadual de São Paulo, de autoria dele quando deputado estadual. “É uma proposta ampla, que trata de situação de animais de circo, rodeios, a questão do abate”, resume o deputado, que acusa a bancada ruralista de atrasar a tramitação do texto ao impor a apreciação do projeto em mais duas comissões inicialmente não previstas para avaliar a proposta. Ela deveria ser votada nas comissões de Meio Ambiente, de Agricultura e de Constituição e Justiça, mas deverá passar ainda por Educação e Ciência e Tecnologia.

O Projeto de Lei 215/2007 institui o chamado Código Federal de Bem-Estar Animal. A proposta é a mais abrangente sobre o tema.

O grande problema é que enquanto o Código Federal de Bem-Estar Animal está parado aguardando a formação de uma comissão específica para sua apreciação, ele tem um efeito de atração para outros temas. Toda proposta relacionada a animais acaba apensada ao Código Federal de Bem-Estar Animal.

A apensação é um instrumento regimental que faz com que propostas semelhantes tramitem em conjunto, sempre com o texto mais antigo encabeçando a lista. Assim, o código de Tripoli tem esse efeito de atração sobre os demais. Na prática, enquanto o código não for apreciado, dificilmente as propostas a ele apensadas tramitarão.

Esse impasse gera nova discórdia entre os defensores dos animais. Reservadamente, alguns deputados dizem que Tripoli deveria retirar o Código de pauta para possibilitar a tramitação dos demais projetos.

 “O que me trouxe para cá (Câmara) foi a causa ambiental. Tenho 30 anos de atuação na área e agora vou abrir mão de meu projeto?”, questiona o tucano, que diz que retirar de pauta o código é fazer o jogo dos ruralistas. “(A apensação) é uma questão regimental. A Mesa que trate de desapensar”, afirma Tripoli. Segundo ele, muitos projeto ruins, que atualmente estão apensados ao código teriam também tramitação liberada o que não ajudaria na defesa dos animais.


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