23/04/2024 - Edição 540

Brasil

Conluio entre governo brasileiro e o agronegócio intensifica desmatamento e incêndios, afirma Cimi na ONU

Publicado em 18/09/2019 12:00 -

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O crescente e criminoso aumento dos incêndios no Brasil foi tema da denúncia do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no último dia 18 durante a 42ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça. Na nota lida durante Debate Geral sobre ITEM 4 – temas que exigem atenção do conselho, Cimi chamou atenção para a postura do Governo Bolsonaro em responsabilizar organizações pelos crimes ambientais. “O presidente, sem provas, responsabiliza ONGs que trabalham na região ao invés de tomar medidas urgentes”.

A denúncia apontou o aumento de 88% em focos de incêndio nas terras indígenas do Brasil entre janeiro e agosto deste ano. Cimi responsabilizou a atual política ambiental e o discurso do atual Governo de direcionar as ações de que colocam em risco as florestas brasileiras. “A regulamentação da mineração em Terras Indígenas, o congelamento das demarcações dos territórios indígenas, quilombolas e tradicionais, o conluio do governo e o agronegócio, os cortes no orçamento e a diminuição do controle ambiental e o discurso de ódio legitimam o desmatamento”.

“Os povos originários no Brasil e suas terras contribuem significativamente para o equilíbrio ambiental na região e no mundo. Estamos monitorando este grave quadro [de incêndios] que afeta não somente os povos, mas toda a casa comum”.

Foram registrados, entre janeiro e agosto de 2019, 9078 focos de incêndio em 274 terras indígenas. No mesmo período de 2018, os focos de calor registrados em terras indígenas chegaram a 4827. Além do aumento no número total de focos, o número de terras afetadas também aumentou, passando de 231 terras indígenas, em 2018, para 274, em 2019 – um aumento de 18,6%.

Em réplica a fala do Cimi, Governo brasileiro afirma que “incêndios são fenômenos estacionais” e que “dados indicam que se correspondem com as medidas das últimas duas décadas”.  Contudo, dados do Instituto de Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra uma comparação de agosto de 2018 com o atual ano:  em agosto daquele ano, foram 2036 focos de incêndio em terras indígenas – ou seja, houve um aumento de 133,5% nos focos deste mês de um ano para o outro.

A delegação de indígenas fará novas declarações na tarde de hoje, durante a sessão de Dialogo Intertativo. No último dia 17, em evento paralelo grupo de indígenas Guarani relataram as violações de direitos sofridas pelo povo na América do Sul. Na ocasião, a relatora especial para Direitos dos Povos Indígenas da ONU fez memória da sua visita aos povos Guarani: “Quando estive em visita ao povo Guarani no Brasil, fomos vigiados por pistoleiros”, lembrou Victoria Tauli Corpuz. “O povo Guarani vive com o medo constante de ser retirado de suas terras tradicionais. É um contexto onde Governo protege o agronegócio e descuida dos direitos dos povos”, sustentou a relatora especial.

“É o tempo mais difícil para o acesso a nossos direitos e nossas terras”, afirma indígena na ONU

Saturnina Urupe Chue, indígena do povo Chiquitano, deixou seu território tradicional no extremo oeste do Mato Grosso, Brasil, e desembarcou na 42ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas, em Genebra, Suíça. A liderança firma a análise: “Hoje somos ameaçados abertamente pelo presidente da República [do Brasil]”. Saturnina levou às esferas internacionais o discurso de ódio do representante máximo da República do Brasil. Jair Bolsonaro, “coloca em risco nossas vidas e a vida do nosso planeta”, afirma ao fazer referência aos constantes ataques verbais do presidente contra os povos indígenas.

Com um discurso descolado da realidade, o governo brasileiro apresentou na ONU, durante sua manifestação, um cenário de suposto “cuidado aos direitos indígenas”. Na manhã de hoje, afirmou cumprir a Constituição Federal no que tange aos direitos originários das populações tradicionais. Contudo, o que denunciou Saturnina Chiquitano indica um Brasil que regride na política indigenista. “O governo brasileiro deve ser responsabilizado por toda violência praticada com os povos indígenas”, pontua.

A indígena de 30 anos iniciou sua caminhada aos 16 ao acompanhar seu pai, na época cacique do povo. Hoje ocupa o espaço de fala na ONU dedicado aos povos indígenas para ajudar a visibilizar os tristes sintomas que assolam o Brasil: “É o tempo mais difícil para os direitos indígenas e para o acesso às nossas terras”, lamenta em pronunciamento na sessão de Diálogos Interativos.

“Meu povo tem sido atacado e violentado gravemente. O governo do Brasil insiste em não reconhecer nossos Direitos Constitucionais sobre nossas terras”, disse Saturnina.

A violência orquestrada contra os povos indígenas afeta há décadas os Chiquitano, que têm sua identidade historicamente negada. Com um discurso antidemarcação, o governo federal atua para intensificar as violações de direitos humanos perpetrados há séculos. Com território ainda sem nenhum procedimento para que seja iniciada sua demarcação, Saturnina exemplifica o que ocorre com aproximadamente 400 outras terras indígenas no país que também sem nenhuma providência para seu reconhecimento pelo Estado.

“Meu povo tem sido atacado e violentado gravemente. O governo do Brasil insiste em não reconhecer nossos Direitos Constitucionais sobre nossas terras”, pontua. “Muitos Chiquitanos já estão deslocados do território. São obrigados a viver fora, nas cidades não indígenas e abaixo de extrema vulnerabilidade”, expressou como consequência da não demarcação.

No fim do pronunciamento, Saturnina reafirmou a histórica resistência dos povos indígenas: “Que todos saibam, vamos defender nossos direitos e nossas terras até o último indígena. A Mãe Terra merece cada gota de sangue derramado pela vida de todos os seus filhos”.

Delegação Guarani da América do Sul reclama omissão dos Estados na garantia dos direitos tradicionais

Durante o evento, um grupo de indígenas Guarani relatou as violações de direitos sofridos pelo povo na América do Sul. A população Guarani abrange atualmente parte dos países da Argentina, da Bolívia, do Brasil e do Paraguai e reúne 280.000 pessoas, distribuídas em 1.416 comunidades, aldeias, bairros urbanos ou núcleos familiares, desde o litoral do Atlântico até a região pré-andina.

“Quando estive em visita ao povo Guarani no Brasil, fomos vigiados por pistoleiros”, lembrou Victoria Tauli Corpuz. “O povo Guarani vive com o medo constante de ser retirado de suas terras tradicionais. É um contexto onde Governo protege o agronegócio e descuida dos direitos dos povos”, sustentou a relatora especial para Direitos dos Povos Indígenas da ONU. Além da relatora, compôs a mesa Jachuka Rete Guarani Mbya e Alberto Guarani Nhandeva, além da participação por teleconferência de Modesta Bacilio, Guarani da Bolívia.

“Pensam que não existimos ou que não há problema com os povos indígenas Guarani da Argentina. Somente nos descobrem quando nos assassinam ou quando temos problemas com petroleiras”, lembrou Jachuka Rete Guarani Mbya, indígena da Argentina.

“Os povos não são ouvidos por nossos Governos. O discurso político dos candidatos nesse momento está o entram o tema econômico, unicamente. Não se fala sobre direitos humanos ou povos indígenas. A Lei Nacional de Demarcação Territorial foi uma lei de emergência que surgiu porque vivíamos perseguidos por madeireiras e agronegócio. Contudo, estamos a beira de terminar a vigência da lei e não sabemos como estaremos em 2021”, relata a indígena. Na Argentina soma-se 55 mil Guarani em 120 comunidades.

“A sociedade ocidental nos vê como atrapalho ao desenvolvimento. Não sabem respeitar nosso modo de vida. Querem continuar nos colonizando”, disse Rete.

Em diálogo com os mecanismos de incidência internacionais, os líderes exigem dos Governos o respeito a protocolos de consulta para atividade em Terras Indígenas. “Se ratificou a Convenção 169 mas pouco se há avançado na prática. Se vê muitas falências na consulta dos povos, não existe um protocolo para a consulta livre previa e informada. São os protocolo de consulta que construirão alternativas para assegurar os direitos específicos as populações tradicionais”, completa Jachuka Rete ao recordar que a convenção da OIT é vigente em seu país desde 2001.

Em 2006 na Argentina foi promulgada a Lei Nacional 26.160 conhecida como “Lei de Emergência Territorial Indígena” com o objetivo de regularizar os territórios e suspender a retirada forçada dos povos tradicionais de seus territórios. Contudo, até o ano de 2016, por exemplo, na província de Missiones, do total de 120 comunidades, ocorreram o levantamento de apenas 45 delas (37,5%). Os dados são do Mapa Guarani Continental.

União e Fim das Fronteiras

Victória Tauli Corpuz ressaltou a importância da articulação dos Guarani e da formação do Conselho Continental da Nação Guarani (Guarani). A relatora foi seguida pelo Guarani Nhandeva, Alberto Vazquez Ayla. O indígena do Paraguai pontou a importância da organização comum para a incidência junto aos Estados no desejo que respeitem o livre transito dos povos Guarani. “O livre trânsito é um direito tradicional porque todos os Guarani são transfronteiriços. Na cosmovisão do povo Guarani não existe fronteira. Queremos ser livre em nosso grande território como eram livres nossos antepassados”, afirma Alberto.

O Paraguai conta com 62 mil Guaranis. A vida dos povos Guarani desse país foi afetado consideravelmente após a construção da hidrelétrica binacional Itaipú, que afetou o modo de vida dos Tekohá.

Direito a terras indígenas independe de marco temporal preestabelecido, defende PGR em parecer enviado ao STF

A proteção e posse permanente dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional não se sujeita a um marco temporal preestabelecido. Essa é a tese defendida pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em parecer no Recurso Extraordinário 1017365/SC, enviado nessa quinta-feira (12) ao Supremo Tribunal Federal (STF). O caso discute a demarcação de terras indígenas da etnia Xokleng, em Santa Catarina, e tem repercussão geral reconhecida. Para Dodge, o STF deve consolidar o entendimento de que o marco temporal não é aplicável em casos de demarcação de terras indígenas, orientando nesse sentido todas as decisões judiciais de instâncias inferiores em situações semelhantes.

Raquel Dodge também defende que os direitos dos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas são originários, conforme prevê o artigo 231 da Constituição, e que o procedimento de demarcação é apenas declaratório. Por isso, a proteção do direito dos índios sobre suas terras independe da conclusão de procedimento administrativo demarcatório. A delimitação da terra deve ser feita por estudo antropológico, que é capaz de atestar o caráter tradicional da ocupação por si só e de evidenciar a nulidade de qualquer ato que tenha por objeto a ocupação, domínio e posse dessas áreas. Segundo a PGR, esses aspectos devem constar também da tese a ser fixada pelo Supremo em caráter de repercussão geral.

Marco temporal

A tese do marco temporal foi mencionada pelo STF no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (PET 3.388/RR). Pelo entendimento, a condição para a demarcação da terra é que os indígenas estivessem ocupando o local na época da promulgação da Constituição de 1988 ou que ficasse comprovado o “esbulho renitente” (remoção forçada da área, com resistência persistente dos indígenas). A partir desse julgamento, inúmeras ações foram propostas na Justiça para invalidar processos de demarcação de terras, com base na aplicação automática dessas condicionantes, o que “tem gerado grande instabilidade jurídica e social”. Daí a importância de se fixar nova tese em caráter de repercussão geral, defende a PGR.

O marco temporal foi um dos argumentos levantados pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma) de Santa Catarina no caso concreto em discussão no recurso. O órgão alega propriedade sobre área de ocupação tradicional ainda não demarcada de indígenas da etnia Xokleng, apresentando títulos registrados em cartório. A área alvo de disputa é uma reserva biológica. Tanto a Justiça Federal de primeira instância quanto o TRF4 deram ganho de causa à Fatma, determinando a reintegração de posse da área e a retirada de cerca de 100 indígenas que ocupavam o local desde 2009.

No parecer, Dodge lembra que, segundo o próprio Supremo, o marco temporal se aplica somente ao caso Raposa Serra do Sol, e não pode ser automaticamente adotado em todos os processos de demarcação de terras indígenas. Ela diz que “inexiste consolidação jurisprudencial acerca da tese do marco temporal, e que não houve intenção da Corte Suprema de atribuir às condicionantes do caso Raposa Serra do Sol caráter obrigatório e vinculante”.

Segundo a PGR, a Constituição reconheceu que a relação entre terra e indígena é “congênita e, por conseguinte, originária, não dependendo de título ou reconhecimento formal”. O reconhecimento dos direitos originários foi previsto inicialmente na Constituição de 1934. Em 1988, o artigo 231 estabeleceu que o direito à terra de ocupação tradicional tem o objetivo de recuperar, conservar e acautelar os direitos indígenas dessas e das próximas gerações, para garantir a sobrevivência cultural e material do grupo.

Raquel Dodge defende que, ao falar em áreas de ocupação tradicional, a Constituição afasta a necessidade de presença física dos índios em determinado local ou determinada data, o que torna o marco temporal inconstitucional. As terras de ocupação tradicional, segundo a Constituição, são aquelas nas quais os índios se encontram, aquelas utilizadas para suas atividades produtivas e as imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários para a sobrevivência material e cultural do grupo.

Esbulho

Sobre o “esbulho renitente”, a PGR defende que esse termo deve ser entendido como a persistência da intenção de ocupar a terra tradicional, e não como resistência física propriamente dita. Ela sustenta que, em muitos casos, os indígenas não tinham meios de resistir fisicamente à ocupação de suas terras e à expulsão. “Não é aceitável que o Estado imponha, como condição para proteção de direitos, o exercício da autotutela e do estado de violência (resistência física), que, em muitos casos, levaram à extinção de inúmeros grupos indígenas”, diz o texto.

O parecer cita ainda decisões internacionais da Corte Interamericana de Direitos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, para lembrar do dever do Estado de proteger os indígenas e os povos tradicionais. O documento lembra que não há oposição entre o direito de preservação de áreas protegidas e a presença de indígenas ou comunidades tradicionais. A prática demonstra que os espaços mais preservados estão justamente em locais de ocupação por índios ou povos tradicionais, segundo o texto.

O parecer já traz a sugestão de tese de repercussão geral, para tornar inválida a aplicação automática da tese do marco temporal.

Íntegra da manifestação


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