16/04/2024 - Edição 540

Especial

Machucados pela fé

Publicado em 16/09/2019 12:00 -

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Luís (nome fictício) tinha 14 anos quando foi tirado à força do armário. "Não tive tempo de me assumir", diz. Sua mãe havia confiscado o celular e passou a madrugada observando as mensagens que ele trocava com o namorado. Ele já tomava banho de cueca por medo de alguém entrar no banheiro enquanto estava nu –achava que todo o tempo era observado.

"Quando a minha mãe descobriu, eu fugi de casa. Falou que eu iria para o Inferno, que aquilo ali não era certo. Eu tinha lido que, se eu bebesse muita água, eu poderia me matar. Aí, nesse dia, eu tomei muita, muita, muita, muita água. Eu não queria estar ali. Eu me senti uma pessoa perdida e que aquilo ali realmente era uma doença."

O personagem que abre esta reportagem, é homem cis, branco, gay e tem 19 anos. Enquanto afirmava sua sexualidade, ouvia de uma tia que o acolheu: "Você pode ser gay, mas você não precisa ser aquele gay que tem o cabelo grande, que corta o cabelo de lado. Eu quero que você seja comportado". Nos tratamentos, os psicólogos que o acompanhavam davam o diagnóstico de que se tratava de uma doença. Eram psicólogos, mas só falavam de Deus.

Liberto das tentativas de reversão da orientação sexual, se viu mais perdido do que no dia em que suas mensagens com o namorado foram vistas. "O pós afetou mais do que o durante, quando eu comecei realmente a tomar medicamentos tentando me matar."

O Conselho Federal de Psicologia intensificou a denúncia de práticas como a sofrida por Luís desde março de 2017. Na época, um grupo de psicólogos acionou a Justiça Federal do Distrito Federal para que a Resolução 01/1999 do CFP fosse suspensa –e conseguiu. A norma estabelecia métodos de atuação em relação à questão da orientação sexual e impedia tentativas de "reversão" ou "cura gay" –uma prática que já foi comum nos sanatórios nas décadas de 1930 e 1940. A decisão da Justiça Federal só foi suspensa em 24 de abril de 2019 pela ministra Cármen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal).

O CFP já havia recebido denúncia de que uma pessoa havia sido submetida a uma tentativa de "reversão" naquele mesmo ano. À época, a Comissão de Direitos Humanos da entidade tomou conhecimento de outras práticas que tentavam aniquilar expressões e comportamentos que não fossem heteronormativos.

"As comunidades terapêuticas têm sido uma nova estratégia de manicomização e de uma pretensa forma de cuidado das pessoas", afirma Rodrigo Toledo, conselheiro do CRP/SP e presidente da Comissão de Ética da entidade. A homossexualidade não é classificada como doença desde 1989 pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que deixou de admitir a transexualidade como patologia em 2018.

Diante da ameaça judicial e de grupos organizados de psicólogos, a Comissão de Direitos Humanos do CFP começou a ouvir em dezembro de 2017 narrativas de pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais) que haviam sido submetidas a procedimentos e programas de tentativas de mudanças de orientação sexual e identidade ou expressões de gênero. Foram 32 entrevistas como a de Luís: 31% no Nordeste, 28% no Sudeste, 22% no Norte, 13% no Centro-Oeste e 6% no Sul.

Dessas pessoas, 19 eram homens cisgênero, seis mulheres cisgênero, dois homens transexuais, dois não bináries (sem orientação sexual definida) intersexual, uma travesti, uma mulher transexual e uma mulher intersexual. A maior parte se autodeclara gay (56%) e é branca, com 53% com pelo menos um curso superior concluído (desses, metade tem pós-graduação), com idade inferior a 29 anos.

O resultado foi o livro "Tentativas de Aniquilamento e Subjetividade LBGTIs", organizado pelo Conselho Federal de Psicologia e pelos Conselhos Regionais, publicado em julho. Os depoimentos são catalogados em nove seções. Elas passam pela identificação da orientação de gênero, o encaminhamento das famílias e as práticas às quais foram submetidas as vítimas.

"Demos voz às pessoas que passaram por esse procedimento", afirma o psicólogo Héder Lemos Bello, assessor da Comissão de Direitos Humanos do CFP. "Nossa maior surpresa é a variedade de quem pratica esse tipo de processo de 'cura gay', como um professor de ioga que tentava fazer a 'reversão' em um paciente."

Todos os relatos a seguir têm a mesma roupagem: "intervenções psicológicas" travestidas de processos religiosos de cura. Eram supostos profissionais que exerciam a função a mando de igrejas de matizes diversas –católicas, evangélicas e espíritas.

"São pessoas pressionadas por viver em um ambiente LGBTfóbico", diz Bello. "Todas as vezes que um LGBTI passa por um procedimento como esse, há um aumento do sentimento de culpa, de depressão, de muitos sintomas. Precisamos de argumentos para enfrentar ética e profissionalmente essas tentativas de aniquilamento [de identidades de gênero]."

"Fui agredida por ter gestos femininos"

Mulher trans, branca, 66 anos (orientação sexual não informada)

Uma psiquiatra (…) me chocou bastante. Ela colocou na minha cabeça que eu tinha que ser homem, que eu era homem e tinha que continuar sendo homem porque senão eu ia sofrer muito, que eu não era uma mulher. Eu falava para ela que não, que eu era como eu estava me sentindo, uma mulher, e não homem. Eu nunca me senti dessa forma. Essa psiquiatra, eu entrei em choque com ela justamente por isso, porque ela ia contra as minhas ideias. (…)

Ela passava para mim –eu era muito estressada por causa desse problema todo– alguns remédios tranquilizantes, ansiolíticos, antidepressivos. Ela queria modificar os meus hábitos, modificar a minha maneira de ser.

Ela queria que eu me tornasse um menino com gestos masculinos. Eu estava sendo agredida por ter gestos femininos.

"Dirigente de célula na igreja se nomeava ex-gay"

Homem cis, gay, branco, 46 anos

A estrutura da igreja funcionava da seguinte maneira: a gente participava de uma célula, que é uma reunião pequena, que acontecia nas casas. A célula que eu fazia parte, o dirigente dela se nomeava "ex-gay". E ele era uma pessoa que acompanhava os integrantes, os novatos nessa célula, e era uma pessoa que frequentava a minha casa, via que eu tinha um relacionamento já com o meu marido.

Morávamos eu, meu marido e a minha sogra, já há 7 anos nessa época. Lógico que isso disseminava ali entre eles. Da célula a gente participava de um outro encontro chamado "Encontro com Deus", e era dividido em: encontro com homens e encontro com mulheres.

Nesse encontro, havia sensibilização da questão da sexualidade. Não só em relação à homossexualidade. Eles colocavam tudo um saco só: pedofilia, estupro, sexo antes do casamento, e por aí vai.

Por exemplo, nesse encontro, já tinha um processo em que a gente recebia uma lista e fazia um "X" nos nossos pecados. Depois de cinco horas de música tocando, eu fiquei tão angustiado que eu marquei a lista inteira, para eu ficar livre daquilo logo.

Em outro encontro, uma das palestras iniciou com uma mãe dando um testemunho –sempre era assim, tinha um testemunho– de que ela estava muito feliz, porque o filho dela agora passou no vestibular e ela deu um carro para ele, e ele está namorando uma menina, mas que antes não era assim, antes a vida deles era um inferno. Não sei se ele era trans, ou travesti, ou gay.

Eu me lembro de uma fala dela, ela disse uma passagem da Bíblia que está em Apocalipse: "Seja quente, ou seja frio, porque, se fores morno, te vomitarei".

Ela falava que disse isso para o filho dela: ou ele virava hétero, ou, se ele ficasse no meio-termo, Deus vomitava ele.

Eu sei que o menino se vestia de mulher e ela disse que, depois que ele resolveu ser quente e não frio e morno, a vida dele mudou.

Lembro que ele falava assim: "Hoje eu estou em processo. Eu sou 80% hétero e 20% gay".

Eu não sei como ele dividia, mas dizia assim: "Eu ainda vou chegar a 100%". Eu descobri que o pessoal era psicólogo porque eu pesquisei, porque, como eu vivenciei essa questão do psicodrama e eu sou da área de saúde, eu falei assim: "Tem alguma coisa aqui".

Essas reuniões em grupo, essa maneira como as coisas estão acontecendo, parece que tem uma condução por trás. Primeiro dá um testemunho, elenca as coisas, depois te dá um tempo para você ficar interiorizando, buscando quando você foi abusado, ou onde aconteceu alguma coisa, para a partir dali fazer o teatrinho e depois as sessões. Tem um método na realidade.

"Sou crente desde sempre e tentei dois suicídios"

Homem cis, branco, gay, 25 anos

Minha mãe me colocou em um encontro com Deus. É o retiro espiritual feito pelas igrejas evangélicas. Teve um negócio de uma fogueira à noite, com um monte de pedido, e, por fim, queimava nessa fogueira.

Eu sei que nesse dia me deu insônia, eu não consegui dormir e fiquei do lado de fora do quarto. Aí, um rapaz, que sempre me observava, veio até mim, um dos líderes lá, e aí começou a conversar comigo para saber por que eu estava ali, por que eu era o mais recatado, não sei o quê.

De tanto ele insistir, eu acho que ele percebeu que eu era gay.

Eu falei: "Olha, eu estou aqui porque eu sou gay. Eu sou viado desde sempre e mainha não quer que eu seja, e eu estou aqui por isso". Esse cara chegou para mim e pegou e disse assim: "Na sua idade, eu também já fui gay".

Eu me assustei: "Como assim já foi gay?". "Eu tinha troca-troca com os amigos." Ele falou de uma forma tão vulgar que eu fiquei horrorizado. "Mas Jesus cura essas coisas, você tem que se entregar a Deus e tal." E eu falava: "É, moço, mas não está gerando, não. Eu sou crente desde sempre e, inclusive, tentei dois suicídios, um aos 11 e outro aos 17, 18 anos".

"Sacudiam minha cabeça para sair um demônio"

Mulher cis, amarela, lésbica, 34 anos

Eu fui uma vez só (na igreja).

Eles começaram a sacudir a minha cabeça para lá e para cá para sair o tal de um demônio, me perguntando se já tinha ido embora. Eu pensava: "Se eu não disser que foi, vou ficar aqui com a minha cabeça chacoalhando até o final".

Daí, eu não fui mais. Falei para a minha amiga que ela ia com o marido dela, que estudava comigo, e nunca mais fui. Deus me livre! Deixa eu ficar indo nas palestras do centro espírita mesmo, mas a preocupação deles era para ver se era algum encosto, algum espírito ruim, mas na minha cabeça eu estava vendo que era mais uma coisa que eu precisava me descobrir e compartilhar, para sair dessa angústia.

"Fiquei em jejum e me vi uma cobaia"

Homem cis, pardo, gay, 43 anos

Nós (ele e a ex-noiva) fomos para um retiro chamado Encontro com Deus, que é um absurdo, é uma lavagem cerebral que ocorre entre sexta, sábado e domingo. Acontece no Brasil inteiro, onde eles escolhem a dedo pessoas que estão fragilizadas, psicologicamente e psiquiatricamente, com os mais variados problemas.

Lá nesse encontro de três dias, eu tive a certeza de que iria ser curado (do desejo por homens). No processo de noivado, cheguei, inclusive, a me sujeitar a sessões de exorcismo, onde tinha uma pastora da Igreja Quadrangular. Ela foi uma pastora que era do candomblé e se converteu. Ela era muito conhecida na cidade por ser uma exímia exorcista.

Então, era essa a minha rotina. Eu ficava, eu era noivo, eu estava sem relações, estava me purificando para o casamento, e passando por sessões de exorcismo com essa pastora, que basicamente era em uma sala fechada, só nós dois, muito grito.

Não chegou a ter agressão física, mas teve muito grito, muito choro.

A gente acredita mesmo naquilo, a gente sente, a gente é induzido, a gente sente cheiros, a gente vê coisa, a gente entra realmente em um processo. Eu não entendo, até hoje, o que acontece nesses procedimentos porque foram muito fortes e muito vívidos.

Geralmente, a gente fica em jejum nesses lugares. Descobri que, sem alimento, a gente fica mais propenso ao que ali acontece.

Eu me vi como "cobaia". Ao final, as "cobaias" passavam por esse processo todo de observação absurda dos "treinandos a libertadores" de doenças espirituais. Um verdadeiro absurdo, uma coisa que eu acredito que tem que vir à tona. Eu não vi nenhuma notícia sair sobre isso. Está em um site que eles estão capacitando psicólogos.

"Vieram dois enfermeiros e o psiquiatra falou: 'Interna'"

Mulher cis, branca, bissexual, 26 anos

Eu conversei com uma psicóloga e ela me encaminhou para um psiquiatra. Aí, no outro dia, eu já estava arrumando as malas (para ir embora para outro estado) e falei: "Vou nesse psiquiatra, vou conversar com ele".

Só que, quando eu cheguei nesse psiquiatra, ele era muito agressivo e muito contestador. Ele foi muito irônico: "É, eu acho que você vai passar o seu Ano-Novo aqui nessa cidade mesmo". Ele fez um sinal, vieram dois enfermeiros, e falou: "Interna".

E, aí, no que ele falou isso, os dois enfermeiros me jogaram em uma maca e parecia uma cena de filme.

Eu tentava desviar de um e de outro. Eu lembro que eu rasguei o colchão, rasguei o lençol e chutei um monte de coisa. A minha mãe e o meu pai, na porta, chorando, e eu falava assim: "Se vocês me amam, por que estão fazendo isso comigo". E, aí, levei uma injeção, acordei depois do Ano-Novo em uma clínica.

Quando acordei lá, eu estava tão doida de remédio que eu não conseguia atravessar uma porta. Literalmente, eu batia a minha cabeça assim nos cantos, porque eu via tudo duplicado. Eu não podia sair, eu não podia fazer nada, eu não sabia direito por que que eu estava lá.

O meu psiquiatra era militar, ele é bem rigoroso, e tive uma outra psicóloga, ela era bem crente, bem da igreja e queria me batizar nas águas. Aí, enfim, dentro desse contexto, eu falei: "O que eu estou fazendo aqui?". Deu uns 15 dias, e era uma coisa assim que eu não sabia o tempo que eu ia ficar lá, tinha gente que estava lá há anos, e eu falava: "Será que eu vou apodrecer nessa clínica? O que eu devo fazer?".

Aí, eu meio que dei uma surtada, porque eu não podia nem almoçar fora, nem fazer nada. Eu tinha que ficar trancada lá. Imagina, eu tinha 18 anos de idade. Aí, eu fugi da clínica, pulei o muro da clínica, tocou sirene, correu o cachorro atrás de mim e eu pulei o prédio para a rua. Então, veio uma legião de enfermeiras com guarda e me capturaram. Aí, eu voltei para a clínica e eu ficava assim: "O que eu tenho que fazer aqui?".

E aí eu comecei a tentar virar amiga de todo mundo, entender a história de todo mundo e as pessoas começaram a se apaixonar por mim. O doutor falou: "Você está atrapalhando o processo dos outros pacientes. Então, eu já recomendei para a sua família um novo tratamento". E, aí, ele me mandou para a igreja. Eu só não ia no dia do culto dos homens; ou seja, eu ia seis vezes por semana na igreja. Eu ia todos os dias.

Minha mãe contratou dois seguranças que eram militares enfermeiros. Eles ficavam comigo o dia inteiro, revezando, um dia cada um, e à noite eu ia na igreja, era essa a minha vida. E eu falava: "Cara, eu não aguento mais tomar remédio".

Aí, eu surtei, eu não queria mais tomar remédio, eu não queria essa vida. (…) Teve uma vez que eu briguei com a minha mãe. A primeira coisa que ela fez foi chamar a ambulância da clínica, eles vieram e me deram uma injeção e eu voltei para a clínica. Só que eu saí no outro dia.

Você nunca tentou se livrar dessa 'sapatonagem'. Você foi para a igreja e você só fingiu.

E eu tinha feito tudo, eu tentei mesmo ser a crente perfeita. E, aí, minha mãe falou assim: "Eu te peço uma coisa. Eu quero que você faça um último tratamento. Uma amiga minha (psicóloga) faz um tratamento que ela diz que é perfeito, porque ele vai te reconectar com a sua essência, e eu acho que você nunca tentou de verdade. Então, eu quero que você tente dessa vez".

E, aí, minha mãe me levou para outro tratamento, que chama "neurotron", que é um tratamento de regressão. Eles colocam eletrodos, dois eletrodos atrás da orelha e um no meio.

Aí, você fica deitado em uma cama com uns fones de ouvido e fica tomando um choque. Só que eu acho que deu algum problema porque queimou a minha testa, eu tenho até uma cicatriz do choque.

Depois eu fui para uma maca que vibrava e tinha um médico que ficava fazendo uns exercícios de hipnose e regressão. Ele orientava: "Entre nas portas". Cada porta que eu entrava, tinha um número que representava uma cena da minha idade. Fui entrando em várias portas e vendo vários números. Ai, eu vi uns "vídeos" meus de quando eu era bebê, criança, só que tudo dentro da minha cabeça.

Eu cheguei ao quarto e último estágio, o estágio do "neurotron", que era feito com uma psicologa conversando. Você ia entrando, já mais naturalmente, naquele estado e ela ia fazendo anotações disso que eu ia vivendo. Chegou em um ponto que eu era um bebê de oito meses e ela ficava assim: "Fala o que o bebê está sentindo, o que o bebê quer dizer".

Sabe quando você não entende mais por que você está fazendo? Você não quer mais fazer, mas você tem que fazer, sei lá, e eu fui fazendo. Chegou a um ponto que eu desisti e falei: "Eu não quero mais fazer isso, porque eu estou ficando irritada com esse processo".

"Milhares rezavam pela 'cura' da minha homossexualidade"

Homem cis, pardo, gay, 43 anos

Foram 30 dias de imersão em mim mesmo. Muitas palestras, muitas conversas, convivência com pessoas aparentemente doentes como eu, doentes espirituais, assim eles diziam.

Nós tínhamos pessoas com problemas de pedofilia, cleptomania, ou seja, pastor que tinha mau hábito de roubar o dinheiro da igreja, e foi diagnosticado como cleptomania.

Tinha pessoas com problemas, dependentes químicos. Eu fui colocado ali, em uma espécie de retiro-internação, com um grupo de pessoas com esse tipo de doença, que eu acabei de falar agora.

Foi muito pior. Sem grito, sem exorcismo, porque é um processo muito mais insidioso e muito mais perigoso do que o grito. O grito você esquece. Eu acredito que é como se fosse um corte. Esses exorcismos, essa gritaria, é como se fosse um arranhão.

Esses 30 dias foram como um corte cirúrgico, mais profundo. Tanto é que, na finalização dele, a gente ia para os cultos em Curitiba, e no final a gente ia para uma igreja tão grande quanto essas igrejas, esses templos com milhares de pessoas dentro. Catalogaram por doença, ou problema espiritual.

Então, na hora de chamarem pelo demônio, ou pela libertação da doença da homossexualidade, eu, na inocência, subi. Quando olhei para trás, eu vi que os outros não tiveram a mesma coragem que eu tive. E, aí, eu subi naquele palco e olhei para aquelas milhares de pessoas olhando para mim, rezando, para me ajudar no processo de cura da homossexualidade.

"A igreja, quando ela quer ser cruel, ela sabe ser cruel"

Homem cis, branco, gay, 46 anos

Contei para a psicóloga o que tinha acontecido. Ela disse: "É porque ela realmente não quis ser curada, porque, quando a gente quer, realmente, a gente consegue".

Você fica se martirizando, achando que você não é curado porque não quer. Eu sei que muita gente passa por isso. É terrível para quem passa, porque a religião ela é muito forte. Hoje eu sei que me prejudicou muito.

Eles colocam uma culpa tão grande na gente, a gente fica se culpando o tempo todo, a gente passa a vida inteira se culpando, a gente faz aquilo que eles falam para a gente fazer e a gente não é curado e a culpa é nossa. E você tem que ter uma cabeça muito boa, senão você acaba se matando mesmo.

Na época, eu estava com 31 anos. Tinha 31 anos quando eu me submeti a essa intervenção.

É um processo doloroso, a igreja é um processo doloroso para as pessoas que são LGBTIs. Não mexe com o seu físico, mexe com o seu emocional, que eu acho que é pior.

É terrível porque a gente o tempo todo achando que aquele Deus que a gente serve não ama a gente. Então, assim, a gente não entende o porquê, o que a gente está fazendo de errado. Por que todo mundo é feliz, por que todo mundo tem uma vida boa e a gente não tem?

Era isso que eu imaginava. E eu ficava imaginado assim, por que todo mundo consegue, por que aquelas pessoas conseguiam e eu não consigo? A igreja, quando ela quer ser cruel, ela sabe ser cruel. Até hoje eu tenho um irmão que não fala comigo de jeito nenhum. Nem um "oi", nem "boa tarde".


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