29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Pode chegar a hora em que Bolsonaro não aceite largar o poder, diz filósofo

Publicado em 10/09/2019 12:00 -

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"Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!" A declaração do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, postada em seu Twitter, na noite do último dia 9, foi prontamente rechaçada por políticos de vários matizes ideológicos e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Não causaria tanto arrepio se o governo de seu pai não tivesse comportamentos autoritários e manifestasse desprezo por instituições democráticas.

Antes da polêmica postagem, Paulo Arantes, um dos mais importantes pensadores brasileiros, que formou décadas de filósofos na Universidade de São Paulo, conversou com este blog sobre o governo Bolsonaro. Coincidentemente, entre os assuntos abordados com o professor aposentado do Departamento de Filosofia, a presença de um componente revolucionário no bolsonarismo e como o presidente está comendo instituições – Ministério Público, Receita Federal, Coaf, Polícia Federal – em nome de seu projeto de poder.

"Pode chegar o momento, daqui a três anos, em que Bolsonaro vai dizer 'não admito nenhuma alternativa que não seja minha reeleição'. Como já disse 'não admito qualquer coisa que não seja minha vitória', na eleição do ano passado", analisa Arantes.

Ele faz uma comparação com o bolivarianismo do nosso vizinho ao Norte. "No sentido mais exagerado, o espelho simétrico de um bolsonarismo consolidado e triunfante, com uma reeleição em 2022 e uma outra eleição, possivelmente com o filho, em 2026, é a Venezuela", afirma.

Para Paulo Arantes, a direita liberal não sabe o que fazer. Pois, se há desgosto diante de temas de costumes e comportamentos, para os quais ela torce o nariz, por outro lado, Bolsonaro está realizando o programa econômico dela junto com o Congresso. "E ele sabe que o cacife dele é o único capaz de conter uma volta daqueles que eles consideram a esquerda, a oposição – que, também na visão deles, voltará com sangue nos olhos. Então, ele vai ser assim todo o dia, um ultraje por semana."

Questionado se o presidente odeia a democracia, afirmou: "Odiar a democracia pressupõe que ele tem um conhecimento a respeito da natureza intrínseca daquilo que está enfrentando. Ele não está nem aí, isso não existe para ele. Para ele, isso é alguma idiossincrasia vocabular de jornalista, mais nada".

Leia trechos da conversa com o professor Paulo Arantes:

 

Desde que assumiu o governo, Bolsonaro tem atacado não apenas adversários, mas também aliados, como o próprio ministro Sérgio Moro, como se quisesse evitar concorrência ou que outras pessoas façam sombra a ele e a seu poder. É possível traçar uma comparação em nossa história?

É uma coisa inédita na tradição brasileira. É um experimento que nós não conhecemos até agora, que é um governo de extrema-direita. Governos conservadores são sempre corriqueiros, governos de direita também. Governo de extrema-direita é uma coisa nova.

A única coisa que estranho nisso que ele está fazendo é a velocidade e a precocidade do processo. Isto sim é novo e tenho impressão que a direita clássica, que fechou acordo com ele, também está surpreendida. Acho que tem uma estratégia aí, que nós não estamos conseguindo decifrar. No limite, ele já está em campanha, limpando o terreno e sacrificando aliados. Por exemplo, sacrificar o lavajatismo, o Moro, pode ser uma estratégia suicida ou pode ser um lance de audácia. Ele é boçal, primitivo, tudo o que nos choca. Mas de idiota ele não tem absolutamente nada. Isso é o espantoso.

O que parece idiotice, na verdade, é tática?

O fato dele estar ultrajando a política estabelecida na América Latina, insultando o candidato que deve ganhar as eleições da Argentina, à primeira vista pode ser chocante, à segunda vista, suicida, e à terceira vista, acho que é uma grande manobra. Ele tem o apoio total de militares, que estão quietos e alinhados com ele. O generalato, que era a esperança da direita clássica brasileira, que aprontou tudo isso desde 2015, está enquadrado. Ele está comendo bem as instituições internas – Ministério Público, Receita Federal, Coaf, Polícia Federal. É arriscado, ele pode cair do cavalo a qualquer momento. Mas, enquanto não cair, está se fortalecendo.

É um movimento global, há um eixo – não sei se dá para chamar de "Eixo do Mal" porque o termo foi desgastado pelo Bush – mas há um eixo Trump [presidente dos Estados Unidos], Netanyahu [primeiro-ministro de Israel], Bolsonaro que é exemplar. E o modelito dele é Órban, primeiro-ministro da Hungria. Uma das coisas prioritárias que deveríamos estudar é o Órban. Que é um modelo de montagem de um Estado mafioso, que é para onde nós vamos, uma tirania miliciana.

Na Hungria, o Viktor Órban teve um trabalho forte no desmonte de estruturas culturais e educacionais.

A gente está indo aqui do mesmo jeito. E veja que ele também está desmontando um por um os organismos de controle e fiscalização. Se ele ganha a parada com Ministério Público, ganha com a Polícia Federal, vai avançar bastante. Pode chegar o momento, daqui a três anos, em que ele vai dizer "não admito nenhuma alternativa que não seja minha reeleição". Como já disse "não admito qualquer coisa que não seja minha vitória", na eleição do ano passado.

A direita está perplexa, não sabe o que fazer. Porque, por outro lado, junto com o Congresso, ele está realizando o programa dela. E ele sabe que o cacife dele é o único capaz de conter uma volta daqueles que eles consideram a esquerda, a oposição – que, também na visão deles, voltará com sangue nos olhos. Então, ele vai ser assim todo o dia, um ultraje por semana. E a tropa dele é irredutível. Ele está fazendo coisas que nem nos sonhos de apoteose mental de Brasil Potência do lulismo jamais se pensou: está mexendo no Itamaraty. Jamais passou pela cabeça do PT colocar um sindicalista como embaixador na França, por exemplo. Um pessoal que estava fora, absolutamente fora, agora está entrando e não vai largar o osso.

Existe um componente revolucionário no bolsonarismo?

Exatamente. A comparação é esdrúxula – eu não gosto desse tipo de comparação. Mas para você ter uma ideia: todo mundo sabia que o aparato do movimento do nacional-socialismo de Hitler era composto por gângsters e um proletariado desmoralizado. Juntar as pontas é inspirador, apesar de eu ser contra esse tipo de analogia.

Para nós, parece apenas burlesca ou grotesca a nomeação do novo presidente do BNDES. Ele dá um pé na bunda do representante do assim chamado mercado, tira o cara pela mídia, humilhando, xingando. E nomeia um dos garotos do condomínio, que era amigo da juventude dos filhos. Ninguém chia, apenas tenta se acomodar. Ele faz isso não porque é tresloucado, mas porque tem um grande projeto que não sofre resistência e vai avançando aos poucos. Quando a direita tradicional perceber, vai ser muito tarde para um impeachment – que é o único recurso que eles têm.

Podem esperar para ganhar as eleições daqui a três anos, que é o que estão fazendo. Atraindo Sérgio Moro para ser o vice do Luciano Huck. Mas pode ser que os jogos já estejam feitos e vão ter que se adaptar. Porque ele vai dizer "ou sou eu, do jeito que estou fazendo, e defendendo estrategicamente o interesse de vocês ou volta aqueles que vocês tentaram defenestrar por 15 anos e não conseguiram porque o homem de vocês teve 4%".

Movimentos revolucionários contam com conexão direta com as massas, excluem mediadores, inclusive os institucionais, excluem a mídia – que, historicamente, organiza a agenda pública em estados democráticos. Se assim for, Bolsonaro vai tentar tornar irrelevante as instituições?

No limite, ele não vai tornar irrelevante, vai tornar as instituições flexíveis às necessidades de acúmulo de poder dele em circunstâncias precisas. Enquanto elas servirem, ele vai usando. Não é um processo violento, de imediato. Mas está indo rápido, para ganhar logo à reeleição. Como o Órban, na Hungria. A direita clássica quer fazer o programa tresloucado deles, com as privatizações. Ele diz: "eu vou privatizar como vocês querem, vende-se tudo". Imagina como vão ser as privatizações à la Bolsonaro… A privataria dos tucanos vai parecer coisa do colégio Sion [o Nossa Senhora de Sion é um dos colégios mais tradicionais da elite paulistana].

A direita está assistindo isso e aplaudindo. Você vê pela esquizofrenia da mídia. Quando abre os jornais e acessa as grandes mídias convencionais, sempre começa por aquele grito de horror diante do ultraje moral, do que ele está inflingindo à nação. Você vira a página, começa a normalização e positivação das reformas, da tributação, da Previdência, disso, daquilo. E todo mundo acrescentando seu pontinho positivo para melhorar, para aperfeiçoar. E ele vai indo. Ele vai se tornando imprescindível.

A história é banal, mas também inovadora em um certo sentido. Por exemplo, a ousadia de rifar o Moro. Você pode pegar os 13 anos de lulopetismo, não há um momento de audácia comparável. As pautas clássicas, de reforma urbana, de reforma agrária, nada, nada, nada. Tudo alinhado dentro dos programas compensatórios recomendados pelo Banco Mundial. Por isso, Lula era o cara, a menina dos olhos do establishment mundial. Agora, esse cara, não. Ele enquadrou generais de quatro estrelas veteranos do Minustah [a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti].

Diante disso, é possível dizer que o presidente odeia a democracia?

Odiar a democracia pressupõe que ele tem um conhecimento a respeito da natureza intrínseca daquilo que está enfrentando. Ele não está nem aí, isso não existe para ele. Para ele, isso é alguma idiossincrasia vocabular de jornalista,  mais nada.

Ele tem uma coisa vulnerável, que os generais detectaram.  Ele alardeia intimidade com os "serviços" da ditadura, como se diz no jargão militar, com o porão da ditadura, com a repressão. Intimidade que ele não tem. Nesse sentido, pode aparecer como charlatão, usurpador, e pode ser desmentido. Ele inventou um passado de que colaborou com a repressão e a luta armada desde sua juventude. Todo mundo sabe que isso é um mito.

Ele nutriu uma grande empatia pelo chavismo. Foi o primeiro a compreender a natureza do Chávez. Se você pensar bem, no sentido mais exagerado, o espelho simétrico de um bolsonarismo consolidado e triunfante, daqui a três anos, com uma reeleição em 2022 e uma outra eleição, possivelmente com o filho, em 2026, é a Venezuela. Ao invés de quadros militares clássicos, como no caso de Chávez, quadros militares recrutados de uma outra maneira.

O bolsonarismo como pacote segue passos do bolivarianismo da Venezuela?

Mas com sinal trocado. Esse sinal trocado é que o negócio do Chávez era mobilização popular no sentido de atender demandas reais, moradia, alimentação, aquelas missões. No caso do Bolsonaro, não tem "mobilização social", mas uma mobilização permanente de combate a um adversário. E esse adversário tem todas as configurações que imaginamos – do meio ambiente aos direitos humanos para "vagabundos" e "comunistas". Ele está mobilizando uma espécie de crueldade social que emana diretamente da guerra social que é o mundo do trabalho atualmente.

Nesse cenário, de um bolsonarismo revolucionário, que vai avançando, qual a alternativa da democracia?

[Risos] Eu sou encurralado por essa pergunta em todos os lugares em que vou falar. Vou te dar uma resposta abstrata. Quando começarem a emergir iniciativas que não estejam enquadradas às redes de controle de programas partidários. De gente que está fora do sistema. Não sei dizer que tipo de iniciativa. Quando começou essa avalanche em 2015, 2016, todo mundo falava imediatamente de resistência. Resistência ao que exatamente? Você tem um campo democrático progressista que é puramente restaurativo, que quer restaurar. Mas há uma ruptura importante, decisiva, histórica, inédita na história do Brasil. Mesmo o governo dos militares, foi violento, mas não dá pra dizer que foi um governo de extrema-direita. E a única resposta é restaurar o que havia antes deste governo? O que havia antes é que engendrou essa ruptura.


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