20/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Primeira advogada trans negra do MS

Publicado em 06/09/2019 12:00 -

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Alanys Matheusa é uma exceção. A jovem de 22 anos será a primeira mulher trans negra a se formar em Direito, no Mato Grosso do Sul, o quarto estado do Brasil com mais casos de violência contra pessoas trans. A média de assassinatos alcança cinco em cada 100 mil habitantes, mais do que o dobro do conjunto do país, que teve dois casos por 100 mil. Falta um semestre para Alanys terminar o curso, graças a uma bolsa de 100% do Prouni em uma universidade da capital Campo Grande. Ela já passou na prova da OAB.

Para os LGBTs, concluir o ensino médio é, por si só, um desafio. De acordo com a Pesquisa Nacional Sobre o Ambiente Educacional no Brasil, de 2016, da ABGLT, dos 1.016 estudantes que participaram da pesquisa, 73% alegaram ter sido agredidos verbalmente na escola. Agressões físicas ocorreram com um a cada quatro desses alunos. Mais da metade deles já ouviram comentários negativos a pessoas trans no ambiente escolar, e 45% afirmaram se sentir inseguros em sua escola devido à sua identidade de gênero. Alanys passou por isso.

Essas situações ocorrem porque as escolas ou promovem a violência ou são coniventes com ela, me disse Sammy Larrat, presidenta da ABGLT. “Ignora-se piadas de alunos e professores, imputam a culpa à pessoa”, explica. Diante disso, diz Larrat, restam duas opções: ou as pessoas saem da escola ou aprendem a conviver com o silenciamento e a violência, negando até mesmo a própria identidade de gênero.

Além das situações de violência, as políticas para a população LGBT estão minguando no governo Bolsonaro. Recentemente, o governo federal suspendeu o edital de vestibular da Unilabpara pessoas trans. “As vagas disponíveis eram remanescentes. Quer dizer, a gente estava falando do acesso às pessoas trans a vagas que sobraram. É a confirmação de que só nos é possível uma política de morte, e não de cidadania”, afirma.

Alanys conseguiu uma vaga quando ainda havia cotas e financiamento à educação. Ela também atribui a sua conquista ao apoio e esforço da mãe, Ruth Maria, empregada doméstica que batalhou sozinha para cuidar dela e das três irmãs. Alanys me contou a sua história enquanto caminhávamos pelas ruas do bairro Guanandi, onde ela cresceu, localizado a 7 km do centro da cidade.

Desde criança eu sentia que havia algo de diferente em mim. Aos cinco anos, já me interessava por roupas de mulher. Conforme fui crescendo, comecei a experimentar escondida as roupas da minha mãe e da minhas irmãs. Usava calcinha, vestido, lenços para fingir que tinha cabelo comprido, sapato de salto alto.

Minhas irmãs sempre me respeitaram. Minha mãe sempre me apoiou, embora no início ela tenha tido dificuldade de expressar alguma reação diante das minhas performances. Ela não tinha informação sobre transgêneros. Se soubesse, com certeza eu teria entendido meu corpo trans mais cedo. Com meu pai, posso dizer que minha relação é tranquila. Nossa única conversa mais dura foi para que ele me chamasse de Alanys. No mais, convivemos bem. Frequento a sua casa e visito os meus irmãos, frutos de outros relacionamentos dele.

Meus horários quase nunca convergiam com os da minha mãe. Ela sempre trabalhou muito como doméstica. Mãe solo, se esforçava como podia para dar o melhor para mim e minhas irmãs. Ainda assim, sempre encontrávamos uma brecha para conversar, mas dificilmente falávamos sobre gênero ou sexualidade. De qualquer forma, as coisas sempre aconteceram com naturalidade dentro de casa. Nunca houve uma conversa para dizer quem eu era – todos já sabiam.

Boa parte do meu tempo eu passava com a minha irmã mais velha, de 29 anos, a Dani. Ela que cuidava de mim enquanto minha mãe trabalhava. Foi com ela que eu aprendi a estudar. Revisávamos a matéria da escola juntas, todos os dias. Embora ela não tenha conseguido se graduar, sua determinação em aprender me influenciou muito. Creio que foi daí que veio meu interesse pela vida acadêmica.

Até os meus 13 anos, eu expressava minha feminilidade de forma muito clara, mas isso mudou quando entrei na igreja. Embora muito feminina, até os meus 19 anos, período em que eu frequentava os cultos, costumo dizer que a minha transexualidade ficou em coma. Deixei de usar as roupas e me expressar como eu gostaria. Apesar disso, gostei desse tempo. Creio que a igreja na periferia acaba fazendo, hora ou outra, o papel do estado. Muita gente se beneficia, mas, no caso de corpos trans, a igreja não consegue suprir e entender a nossa realidade. Por isso, saí.

Nesse processo de compreender minha identidade e meu corpo, sofri algumas violências na escola. Uma situação que me marcou muito foi quando fui agredida durante um evento. Eu tinha 11 anos, e um garoto me deu um chute nas costas. Não era a primeira vez que ele me batia. Falei para o diretor o que houve e, como eu já havia procurado ele outras vezes, ouvi: “Você tem vindo muito aqui, talvez o problema não seja ele, mas você”. Na ocasião, pensei em parar de estudar. Minha mãe me disse que eu tinha que me manter firme, porque haveria muitos outros momentos assim na vida. Ouvir seu conselho me levou à universidade.

Escolhi o Direito por acreditar que ele é um instrumento de mudança social. A minoria não faz leis no Brasil, então, o mínimo que podemos fazer, é ter pessoas da gente para interpretá-las para defender nossos direitos no judiciário. Por isso eu quero ser juíza ou defensora pública. Acredito que ao ocupar uma dessas profissões, vou conseguir mudar a realidade de muitas pessoas que tiveram as mesmas vivências que eu, uma transexual.

Mesmo convicta do que quero, permanecer na graduação é difícil. Embora eu tenha conquistado uma bolsa de 100% no Prouni, na Universidade Católica Dom Bosco, há muitos desafios financeiros: cópias, livros, transporte, lanche. É tudo muito caro. Além disso, tem todo um esforço para manter o equilíbrio entre a minha saúde mental e a universidade. O impacto do choque cultural e econômico é forte e cansativo. O desânimo bateu diversas vezes. As realidades se destoam. Na minha sala, além de mim havia mais uma negra e um indígena, ambos abandonaram o curso. Bolsas garantem a nossa entrada, mas é necessário mais políticas públicas para a nossa permanência.

Estou terminando na condição de única negra da turma. É isso: a filha da doméstica convivendo com a filha do cirurgião, do procurador, um lugar que tentaram me convencer que não era pra mim. Ainda assim, foi na universidade que tudo mudou. Quando entrei na graduação, eu ainda estava na igreja. Apesar disso, se olhassem pra mim já sabiam que eu não era hétero. Ser reconhecida como um menino gay não era o que me deixava feliz.

No decorrer do curso comecei a estudar e pesquisar sobre gênero. Foi quando compreendi melhor o termo trans não binário. Uma amiga e a cantora Liniker eram as minhas referências sobre a não binariedade de gênero. No meio do curso, essa foi a maneira que encontrei de assumir e demonstrar meu corpo trans naquele momento. Comecei a fazer terapia em meio a esse processo e passei a me compreender como mulher trans, a me expressar como travesti e cheguei ao final da graduação já com meu nome social, Alanys, e em processo de terapia hormonal.

“Mulher trans é um termo gourmet para travesti”

Sou uma mulher trans, mas também me apresento como travesti. É uma forma de se apropriar de um termo que é marginalizado. Para mim, mulher trans é um termo gourmet para travesti, porque a mulher trans é a pessoa que teve a possibilidade de fazer procedimentos. No imaginário do brasileiro, a travesti é aquela que está na prostituição, é aquela que é ridicularizada. Quando me aproprio do termo como acadêmica, advogada, eu estou falando que existem corpos travestis que conseguem transcender essa realidade.

A quebrada valoriza o fato de eu ser a primeira trans negra prestes a se formar em advocacia no Mato Grosso do Sul, mas ela não compreende a minha transexualidade. Por mais que ela reconheça essa conquista, parece que esse é o limite da aceitação. Posso ser aquela lacradora, deusa, rainha, a que ‘closa’ demais, mas ser boa o suficiente para ter um relacionamento, um trabalho digno já é outra coisa. Eu sempre questiono: qual é o conceito de trans que a periferia tem? O valor de uma trans não pode estar atrelado somente ao seu trabalho e sucesso.

Todas as minhas experiências de trabalho foram em órgãos governamentais. Na adolescência, trabalhei como jovem aprendiz. Agora estou indo para o meu terceiro estágio. O primeiro foi no Tribunal de Justiça do estado. Depois, estagiei no Ministério Público Federal. Agora, estou aguardando a Procuradoria Geral do Estado me chamar. Optei pelo funcionalismo público porque não é qualquer um que contrata uma trans, ainda mais preta e periférica.

Dependendo do lugar, a primeira coisa que te pedem é para cortar o cabelo ou alisar. Eu sempre soube que a única possibilidade que eu tinha de ter uma ascensão social, não por uma questão de poder aquisitivo, mas sim por representação, era através de concurso público. Por isso sempre me empenhei em ter as melhores notas para disputar as melhores vagas de estágio.

Desde a minha adolescência, tive que lidar com a descrença das pessoas. Sempre duvidaram que eu chegaria à universidade. Quando se é trans ou travesti, é comum as pessoas deduzirem que seu futuro é a prostituição. Todo mundo gosta de ver travesti, de noite, na esquina. Agora, ver uma travesti de manhã, na universidade, no setor público, incomoda muito.

“Ter conquistado a OAB, pra mim, ainda é pouco”

Já andei com canivete na cintura para garantir minha segurança. Já fiz o motorista do ônibus parar para eu descer e denunciar a transfobia que sofri no transporte público. Já discuti em bares devido a olhares e risadas direcionadas a mim. Meu segundo nome é uma homenagem à Matheusa, assassinada no Rio de Janeiro. A violência que tirou a sua vida é a mesma que corta os dias de qualquer trans no Brasil. Carregar esse nome, pra mim, é resistência. É uma forma de dizer que se tombam uma, outras resistirão. Se eu uso esse nome é porque ela está aqui, hoje, resistindo junto comigo. A morte dela ali foi física, mas ela vai ser lembrada sempre.

Ter conquistado a OAB, para mim, ainda é pouco. Quero novas conquistas, ocupar cargos de comando. Quero chegar, quem sabe, à ONU. E, quando eu estiver lá, seja pelo meu nome, pela minha história, ou de outras que farei questão de contar, saberão do que uma trans é capaz para tentar sobreviver no Brasil.


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