28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Torturas em supermercados Ricoy acontecem há mais de 8 anos, diz ex-funcionária

Publicado em 05/09/2019 12:00 -

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Uma ex-funcionária terceirizada da rede de supermercados Ricoy, localizada em São Paulo (SP), contou que presenciou pelo menos dois casos de torturas em lojas diferentes da rede em 2011, época em que começou a trabalhar para a empresa. Foram inúmeras as vezes, no entanto, que ela alegou ter ouvido de outros funcionários histórias similares das mesmas sessões de tortura. A prática era frequente e conhecida, mas muito encoberta.

Segundo o relato da fonte ouvida pela reportagem, era fim de tarde de um feriado prolongado nos últimos meses de 2011. O pequeno supermercado Ricoy do Capão Redondo, bairro da extrema Zona Sul de São Paulo, estava lotado. Funcionários monitoravam o movimento da loja por câmeras de segurança, instruídos a sempre contatarem os seguranças caso presenciassem algum movimento estranho, ou se alguma pessoa “mal vestida” e com aparência suspeita adentrasse no estabelecimento. Em determinado momento, um rapaz negro, adolescente, é avistado nas câmeras tentando furtar produtos da prateleira.

Imediatamente, os seguranças foram contatados via rádio. Discretamente e para que nenhum cliente percebesse, aproximaram-se do menino e o obrigam a acompanhá-los até um espaço vazio e silencioso, dentro da loja. Então, começaram as sessões de tortura. Em determinado momento, depois das agressões, o garoto é arremessado pela janela do primeiro andar, caindo no barranco que ficava aos fundos da propriedade. A ex-funcionária conta que o jovem se machucou muito e que o caso ficou falado no bairro, mas a própria direção da rede preferiu apenas “abafar” o caso, remanejando os seguranças responsáveis para outras lojas.

“Os bandidos da região ameaçaram botar fogo no mercado e os seguranças que trabalhavam lá foram remanejados. A polícia ia pra lá direto… Eu só lembro de pensar: Não vou para aquela loja, não vou arriscar minha vida”, disse.

A ex-funcionária também conta que diversas vezes ouviu de outras pessoas da equipe para não passar perto das salas do fundo das lojas, para não ir ao estoque ou à sala de material de limpeza. Todas esses conselhos seriam para evitar que ela presenciasse os gritos e pedidos de ajuda que escapavam por conta das agressões. “Teve uma hora que eu precisei pegar a etiqueta de preço de um produto e ninguém deixava passar perto, me falavam que tinham pegado um rapaz e que ‘estavam esculachando’”.

“Os seguranças faziam chacotas, espancavam e ainda ameaçavam. Eu ficava horrorizada, só queria sair daquele lugar. Esses fiscais de loja, na sua grande maioria, eram muito violentos”, completou.

Em outro caso de tortura que lembra ter presenciado, a ex-funcionária contou que começou a ouvir tapas, socos e barulhos estranhos vindos do estoque de uma das lojas Ricoy. Ao questionar outros colegas sobre os barulhos, contaram que os seguranças estavam batendo com garrafa d’água para que ninguém conseguisse ouvir e para que não formassem hematomas nas vítimas. A ex-funcionária descobriu, mais tarde, que as garrafas já ficavam estrategicamente nas salas dos fundos, esperando a próxima pessoa a sofrer as agressões. Nesse caso em específico se tratava de outro jovem negro, de cerca de 20 anos, que havia furtado leite em pó e fralda.

“Dificilmente chamavam a polícia. Era sempre os próprios funcionários e fiscais que precisavam resolver. Costumavam a falar para os adolescentes que se voltassem à loja ou se mandassem alguém aprontar algo, que iam chamar a polícia e que a casa ia cair”, disse.

De acordo com ela, todos os funcionários das lojas sabiam da prática, inclusive os gerentes. “Tudo era passado via rádio para os gerentes e subgerentes. Quando tinha correria na loja, a gente sabia que tinham pegado alguém”, contou. Questionada se ela lembra de ter visto alguém se posicionar contra as torturas, a ex-funcionária se lembra que um dos funcionários não ficou nem três meses no emprego novo. Pediu demissão assim que ficou sabendo da política da loja.

Casos recentes

Uma unidade do Ricoy Supermercados, na cidade de São Paulo (SP), foi palco de outra bárbara sessão de tortura. Em imagens obtidas pelo site Brasil de Fato, um homem aparece amarrado e com diversas marcas de chicotadas. O expediente é o mesmo utilizado pelos seguranças do comércio para martirizar um jovem negro de 17 anos, caso que viralizou no último dia 2 (veja abaixo).

Em uma das imagens, os seguranças empilharam produtos que a vítima teria tentado roubar no Ricoy, embalagens de linguiça e frango congelados, chicletes, desodorante e um shampoo. Em outro registro, é possível ver a mesma vítima, com o rosto machucado, encostado em uma estrutura com o logotipo do Ricoy.

Com as imagens, o Brasil de Fato também recebeu um vídeo em que um funcionário do supermercado tortura psicologicamente uma criança. “Você vai ficar em uma cela cheio de moleques da sua idade, ou mais velho, tem uns lá que gostam de abusar de outro moleque. Olha que legal. Tem uns que vão te dar uma surra bem dada. Olha que legal”, diz o funcionário do comércio ao garoto que supostamente havia tentado praticar roubo.

Para o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo (Condepe-SP), Dimitri Sales, com a reincidência, o supermercado deve ser responsabilizado e ter seu alvará cassado.

“As dependências do estabelecimento estão sendo utilizadas para a prática de tortura. Logo, esse caso tem que ser levado muito mais sério, a responsabilização cai para além dos funcionários, é uma responsabilização contra o estabelecimento”, afirma Dimitri.

Ainda de acordo com o presidente do Condepe, as novas imagens apontam para mais “uma violação inaceitável de direitos humanos, eles estão praticando tortura, cárcere privado e maus tratos. As medidas agora devem severas. O que sugere é que não é mais a prática de um funcionário isolado, é uma prática corriqueira do estabelecimento”.

Ex-policial militar

O Ricoy contrata os serviços da KRP Zeladoria Valente Patrimonial para o setor de segurança. A empresa tem entre seus sócios Alfredo Geromim Valente, Orlando Geromim Valente e o ex-tenente coronel Claudio Geromim Valente.

O último, esteve envolvido na morte de uma jovem de 19 anos em 1995, quando era policial. Claudio Valente respondeu a um processo por homicídio doloso, quando há intenção de matar, acusado de ter disparado contra a jovem, enquanto ele espancava um adolescente abordado durante uma operação policial. O processo foi arquivado em março de 2009.

Seguranças identificados

No último dia 3, a Polícia Civil identificou os seguranças que chicotearam o adolescente de 17 anos no mês de agosto no Ricoy Supermercado. São Waldir Bispo dos Santos e Davi de Oliveira Fernandes, ambos funcionários da KRP Zeladoria Valente Patrimonial.

Em nota, o Ricoy afirmou que “está chocado com a tortura sem sentido” e que os “seguranças não prestam mais serviços para o supermercado”. Nossa reportagem não conseguiu contato com KRP Zeladoria Valente Patrimonial, nenhum dos telefones disponíveis da empresa foi atendido.

Chicotear negro pobre é permitido no país que celebra o racismo e a tortura

Essa história, que poderia relatar o violento cotidiano do século 17, na verdade refere-se ao violento cotidiano do século 21. Não é novidade diante do genocídio da juventude negra em curso. Mas o chicote é cinismo puro.

Isso ocorreu em julho, mas por ter sido ameaçado de morte, a vítima ficou com medo de revelar o caso. Acabou prestando depoimento ao 80º Distrito Policial, na Vila Joaniza, apenas no último dia 2. Estava acompanhado do advogado Ariel de Castro Alves, que faz parte do Conselho Estadual de Direitos Humanos. O delegado Pedro Luís de Sousa, estarrecido, abriu um inquérito para investigar. O mercado disse que repudia o fato e que os seguranças eram de uma empresa terceirizada, o que não ameniza em nada o ocorrido.

O caso ganhou as redes sociais após os próprios algozes gravarem imagens da sessão de tortura. Copiaram, dessa forma, o que fizeram os militares norte-americanos durante sessões de tortura conduzidas por eles na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, em 2004. Naquela ocasião, "cidadãos de bem" norte-americanos vibraram com as cenas. Por aqui, "cidadãos de bem" brasileiros não deixaram por menos: parte das postagens e mensagens comemorava que o jovem estava sendo punido. No vídeo tupiniquim, um dos que estão chicoteando o rapaz diz: "tô fazendo isso para não atrasar pro seu lado, pra não ter que te matar". 

Essa história me lembra de outra: Em julho de 2015, um homem negro de 29 anos foi linchado por moradores do Jardim São Cristóvão, em São Luís (MA). Segundo a Polícia Civil, ele havia tentado assaltar um bar, quando foi rendido, amarrado nu em um poste e agredido até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas. O rapaz poderia ser entregue à polícia para ser devidamente processado e pagar pelo seu crime. Mas o pelourinho, que canta alto na alma de muitos brasileiros, falou mais alto.

Essa história também me lembra outra história: No dia 14 fevereiro deste ano, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, 19 anos, foi morto por Davi Ricardo Moreira Amâncio, segurança do supermercado Extra, do Grupo Pão de Açúcar, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ao "conter" o jovem negro, ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre ele. No vídeo, que circulou pelas redes sociais, testemunhas alertaram que Pedro estava "sufocando" e ficando "roxo", mas a sessão de tortura continuou. Com parada cardiorrespiratória, foi socorrido pelos bombeiros e não resistiu. A mãe do rapaz presenciou a cena. Pedia para o segurança parar.

E mais outra: Januário Alves de Santana foi acusado de estar roubando um automóvel em uma loja do Carrefour, em Osasco (SP), em agosto de 2009. Por isso, foi submetido a uma sessão de tortura de cerca de 20 minutos. "O que você fazia dentro do EcoSport, ladrão?", perguntaram, enquanto cinco pessoas davam chutes, murros, coronhadas, na sua cabeça, na sua boca. O carro era dele, comprado em suadas 72 vezes de R$ 789,44. Na cabeça dos seguranças do supermercado, um negro não poderia ter carro de bacana branco.

E mais outra: Domingos Conceição dos Santos foi baleado ao tentar entrar em uma agência do Bradesco em São Paulo, em maio de 2010. Ele usava um marca-passo e apresentou um documento comprovando isso, o que explicaria porque o detector de metais da porta giratória apitaria quando passasse por ela. Após uma discussão com o cliente, o segurança sacou a arma e atirou na cabeça do aposentado. Ele entrou em coma e teve morte cerebral constatada quatro dias depois. O funcionário do banco foi preso. Na época, a família afirmou que Santos foi vítima de racismo por ser negro.

E tantas outras histórias de violência semelhantes que é impossível contar neste espaço. É racismo estrutural. E é violência e tortura como resposta básica. 

As histórias poderiam ser diferentes se a cor da pele também fosse. Mas preferimos dizer que não, até para dormirmos mais tranquilos à noite, negando o preconceito que nos impregna da epiderme até os ossos. Daí, quando professores decidem discutir, na sala de aula, a razão pela qual jovens negros são as principais vítimas entre milhares de mortes violentas anuais, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, defensores de uma Escola Sem Tutano ameaçam processar e morder, dizendo qie isso é ser "ideológico". Na opinião de uma parte considerável do Brasil, não há racismo por aqui. Apenas "coincidência" e "azar".

A redução de negros a instrumentos descartáveis de trabalho e a negação de sua cidadania está na fundação de nosso país, portanto, essa violência não é de agora. Não é novidade para quem nasce negro e pobre. Mas a sensação de impunidade dos capatazes é potencializada toda vez que governantes dizem ao Brasil que ele não precisa se preocupar com as consequências de seu passado. Em julho de 2018, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, por exemplo, o então pré-candidato Jair Bolsonaro, questionado sobre a forma que pretendia reparar a dívida histórica da escravidão, respondeu: "que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida".

Temos lidado com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não entendermos, refletirmos, discutirmos e resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia com o país aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

A celebração do golpe militar e tudo o que ele representa não ocorre apenas a cada 31 de março por gente inconsequente, mas retorna toda vez que se mata e se agride, não como um infeliz efeito colateral da proteção da população, mas como execução de uma política de limpeza e contenção social. Ou quando uma parcela da sociedade pensa "bem feito" ou "quem mandou se meter com a coisa errada" diante de imagens de corpos de jovens, ligados ao crime ou não, sangrando, aqui e ali, em uma comunidade após a "justiça" ser feita. Ou o corpo de um jovem negro sendo chicoteado, uma, duas, três, várias vezes. E a cada chicotada, curvar-se de dor pela mão de seguranças que se autopromoveram a promotores, juízes e carrascos ao mesmo tempo.

Como o supermercado indenizará o rapaz que foi chicoteado em suas dependências? Como as outras empresas citadas acima agiram para que isso não voltasse a acontecer? Como um país quer ser decente se uma barra de chocolate vale mais que a dignidade? Como querer ter um futuro se milhares de pessoas celebram, nas redes sociais, a tortura de um jovem que cometeu um erro? Perguntas difíceis. A única certeza é que chicotear negro pobre é permitido no país que tornou a execução de jovens negros uma tarefa do cotidiano.


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