25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Precisamos falar sobre suicídio entre policiais

Publicado em 02/09/2019 12:00 -

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Um relatório do Gepesp (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção), divulgado no último dia 27, apontou que o registro de suicídios de policiais em 2018 praticamente dobrou na comparação com o ano anterior. Os dados englobam 19 estados brasileiros.

Desde 2016, a entidade vem buscando chamar a atenção para o suicídio entre as polícias do Brasil por meio da publicação de relatórios sobre o tema. O grupo destaca, no entanto, que os números divulgados são incompletos – a maior parte das forças policiais do país não publica dados oficiais sobre o assunto.

O Gepesp foi criado em 2013 e estabeleceu uma rede de profissionais do campo da segurança pública que coletam, por meio de informantes, dados sobre suicídios nas polícias militares e civis, nos corpos de bombeiros, na Polícia Federal e na Polícia Rodoviária Federal.

A coordenadora Dayse Miranda ressalta a importância de haver esforço institucional dedicado a coletar os números e abordar o tema. A Ouvidoria da Polícia de São Paulo faz essa contabilidade e apontou, em fevereiro de 2019, que mais policiais do estado morreram por suicídios ao longo de 2018 do que durante confrontos em serviço.

Mas este relatório traz poucas informações sobre o perfil dos suicidas, e as circunstâncias dos suicídios.

Como a pesquisa foi realizada

A coleta ocorreu em fontes como registros de ocorrências, notificações por WhatsApp e páginas de veículos de imprensa.

As informações são verificadas e organizadas em um banco de dados com nome da vítima, idade, estado civil, vínculo institucional e patente. Também são registradas as circunstâncias do suicídio, a forma como ele foi realizado e o que se sabe sobre os motivos, além de narrativas de amigos e colegas. Os casos são organizados nas seguintes categorias:

Suicídio consumado; tentativa de suicídio; homicídio seguido de suicídio; e mortes por causa indeterminada, quando há suspeita não confirmada de que se tratou de um suicídio.

Como o gênero aparece nos casos

O trabalho ressalta que pesquisas nacionais e internacionais indicam que homens morrem mais por suicídios do que mulheres, o que corresponde aos dados coletados. Uma exceção foi o estado de Alagoas, em que houve registro de três mortes por suicídio de policiais militares do sexo feminino, e apenas um suicídio de homem.

Além disso, em 99% dos casos de suicídios seguidos de homicídios, os autores eram homens. Em todos os casos de autoria masculina, as vítimas eram mulheres e filhos. Praticamente todas as ocorrências são associadas a conflitos com parceiras amorosas.

Isso, diz o estudo, está de acordo com pesquisas da área de criminologia realizadas nos Estados Unidos, que sugerem que “a probabilidade de suicídio em seguida ao homicídio tende a aumentar com os vínculos pessoais com a vítima”.

As pesquisas americanas também indicam que esse comportamento segue o mesmo padrão de gênero observado no relatório entre profissionais de segurança: em mais de 90% das pesquisas, autores de homicídios seguidos de suicídios são homens, e entre 75% e 90% das vítimas eram mulheres.

Apenas um caso de homicídio seguido de suicídio reportado pelo Gepesp foi de uma mulher, que assassinou sua filha e depois se matou.

Conversamos com a coordenadora do Gepesp, Dayse Miranda, sobre os resultados do estudo e o que mudou na relação das polícias com o assunto.

 

O que a pesquisa indica?

Identificamos uma nova tendência que não havíamos percebido em 2017 ou 2016. Em 2018, identificamos vários casos de homicídio seguido de suicídio. É um fenômeno muito estudado nos Estados Unidos. No Brasil não há estudos sobre o tema, o que não significa que o problema não exista.

Normalmente esse tipo de morte não tem a ver só com homicídio ou suicídio, é fundamentado em conflitos de gênero, do homem que mata a namorada e depois se mata. Ou da mulher mata os filhos e depois se mata.

Como a Polícia Militar é tradicionalista, machista, seria de esperar que fosse comum ouvir falar desse tipo de problema ligado a gênero. Mas eu nunca tinha visto essas questões na força de segurança pública.

O crescimento das mortes de mulheres no Alagoas é um dilema que se destacou. As equipes de lá estão se desdobrando para entender. Esse crescimento continua em 2019, por isso eles estão preocupados.

Outra coisa interessante é que nas pesquisas anteriores que fizemos, os motivos mais citados estavam ligados a questões amorosas e do trabalho, de abuso de poder, violência verbal e humilhações.

Nesta pesquisa, os motivos que mais encontramos estão ligados a problemas de saúde mental, seguidos de conflitos conjugais.

Quais são as limitações dos dados coletados?

Os profissionais têm medo de colaborar por medo de retaliações. Mas [os dados] são de interesse público, porque segurança pública é do interesse de todos. Mesmo assim, temos sido mais procurados, e a contabilização de 2019 já é maior do que a de 2018 inteiro.

O número é muito baixo em proporção ao que é na realidade. Eu falo disso com base nos dados da Ouvidoria de São Paulo, que contabilizam só no estado quase o que conseguimos em 19 estados [em 2017 e 2018, 71 policiais morreram por suicídio em São Paulo, segundo a entidade paulista].

Isso mostra que é um levantamento com muitas lacunas. Mas assumimos esse risco justamente para fazer um boletim que dê visibilidade a elas. As instituições não têm a cultura de coleta de dados, e queremos dizer que elas podem produzir seus próprios boletins para facilitar a produção de políticas institucionais de prevenção.

Mesmo o relatório da Ouvidoria de São Paulo não tem dados sobre o perfil de quem se suicida. Eu quero saber mais sobre a vida desse policial, se ele morreu passando por algum tratamento, se ele tinha um bom relacionamento na instituição, seu desempenho. Isso pode ser organizado com a integração de bases de dados por departamentos de recursos humanos. O Gepesp acompanha e dá subsídio às instituições que querem fazer isso.

O que mudou na forma como o suicídio é abordado nas polícias?

Tive o primeiro contato com o tema em 2005, quando eu ainda era estudante de doutorado na USP [Universidade de São Paulo], e fui convidada pela polícia do estado a conhecer esse problema. Mas, infelizmente, eu não tive a oportunidade de incluir a questão na tese.

Em 2010, comecei o pós-doutorado no Rio de Janeiro, e voltei ao tema. Ninguém tinha ideia de onde estavam os casos. O próprio comandante disse para eu estudar violência doméstica. Quatro anos depois, conseguimos publicar o livro [Por que policiais se matam], e obtivemos financiamento do Ministério da Justiça para estudar o tema. Fomos à Bahia e vários outros estados. Hoje, vejo que as instituições começaram a se abrir.

Em setembro vai acontecer o primeiro seminário sobre suicídio da segurança pública organizado pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal e financiado pelo PNUD. Formos selecionados para dar consultoria técnica, compor as mesas, formar os multiplicadores e elaborar a publicação.

Isso mostra que as instituições começaram a entender que podem fazer algo. Mas ainda não entenderam que precisam coletar dados.

Há diferenças na forma como as polícias abordam o tema?

Isso é muito claro no estado de Alagoas, que acabou de lançar uma campanha sobre suicídio entre policiais. A Polícia Militar está completamente comprometida com o tema, fizeram um simpósio, criaram uma cartilha de conscientização, estão construindo um relatório e criando um primeiro manual de prevenção da vida.

Eles sabem que isso é muito sério e estão dedicados. Você tem no estado do Ceará o programa “Vidas Preservadas”, uma iniciativa do Ministério Público que não é voltada só para segurança pública. A proposta é integrar todas as instituições que possam estabelecer uma rede contra suicídio. São iniciativas recentes.


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