16/04/2024 - Edição 540

Especial

A educação como estratégia

Publicado em 02/09/2019 12:00 -

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"Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas.” A afirmação do ministro da Educação, Abraham Weintraub, em 30 de abril, veio acompanhada de retaliação: Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal da Bahia (UFBA) tiveram 30% do orçamento previsto para o ano bloqueado para despesas consideradas não obrigatórias, que vão do pagamento de bolsas a contas de luz.

Segundo o ministro, as universidades mencionadas promoveram eventos políticos, manifestações partidárias ou festas inadequadas. Depois da repercussão negativa da medida, que motivou uma ação civil pública do Ministério Público Federal pelos danos causados à honra, à imagem pública e à liberdade de expressão de professores e estudantes, Weintraub estendeu o contingenciamento a todos os institutos e universidades federais do país. A redução chega a R$ 2,5 bilhões.

No início de maio, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) — fundação do Ministério da Educação que atua na expansão e consolidação da pós-graduação no Brasil — anunciou o corte de quase 5 mil bolsas de pesquisa, alegando que estavam “ociosas” no mês de abril. A medida foi criticada pelas universidades, uma vez que as bolsas eram de estudantes que tinham defendido suas dissertações e teses recentemente, e seriam repassadas para as novas turmas selecionadas. Os programas com conceito Capes 6 e 7 (nota máxima) conseguiram reverter os cortes e, ao todo, cerca de 3,5 mil bolsas foram cortadas. Em junho, os programas avaliados com duas notas 3 consecutivas, ou que foram rebaixados do conceito 4 para 3 na última avaliação, sofreram novos cortes, e perderam mais de 2,7 mil bolsas. Os programas com nota 4 devem ser os afetados.

A educação superior é um dos setores mais pressionados no governo Bolsonaro. O primeiro ministro a assumir a pasta, Ricardo Vélez, deixou o cargo após adotar uma série de posturas polêmicas, dentre elas a de afirmar que “as universidades deveriam ficar restritas a uma elite intelectual”. Weintraub, que assumiu em 8 de abril, não é menos polêmico. Primeiro, o presidente Jair Bolsonaro afirmou, em seu perfil no Twitter, que “o ministro da Educação @abrahamWeinT estudava descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”, e que “o objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”. Logo depois, vieram as alegações de balbúrdia e o contingenciamento.

A trincheira da educação está mais acirrada do que qualquer outra. Dois protestos tomaram as ruas do país em um intervalo de apenas 15 dias. Em 15 de maio, a greve do setor levou centenas de milhares de manifestantes às ruas em mais de 200 municípios. Em 30 de maio, um novo protesto. Mais de cem municípios tiveram atos em defesa da educação. No Twitter, a hashtag #MinhaPesquisaMinhaBalbúrdia fez pesquisadores compartilharem seus estudos e os resultados que já alcançaram.

A mobilização também tem ocorrido dentro do Congresso Nacional. A Frente Parlamentar pela Valorização das Universidades Federais, criada em 2013, foi reativada neste ano. Conta com a participação de cerca de 200 parlamentares, das mais diversas bancadas. Uma das integrantes é a deputada federal Margarida Salomão (PT-MG), linguista e professora universitária que já foi reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Segundo ela, os conflitos políticos sempre foram uma constante na história das universidades — nos governos Lula e Dilma, por exemplo, houve inúmeras greves. Mas ela aponta algumas diferenças nas disputas que o setor precisa enfrentar hoje. “As universidades são espaços de insurgência, a crítica é um traço fundamental na história delas. Fui reitora quando o Paulo Renato era ministro [de Fernando Henrique Cardoso], e era difícil, ele sempre tratou as universidades como se fossem ineficientes. Conflito político com o MEC não é novidade; novidade é o MEC fazer guerra com as universidades. Novidade é contingenciamento vir com uma declaração de guerra”, diz.

O pesquisador Pedro Mazza, 26 anos, doutorando em Zootecnia na UFBA, é um dos afetados pelos cortes. A partir de janeiro do ano que vem, vai fazer estudos in vitro na Universidade de Nevada (EUA) para verificar como o organismo de ruminantes se comporta quando submetido a uma dieta com menos proteínas. Sua hipótese de pesquisa é a de que a alimentação do gado brasileiro, por tomar como parâmetro normas internacionais, é mais rica em proteínas do que o necessário — e esse é um dos componentes que mais encarecem a ração. “Eu dependo desse intercâmbio para fazer minha pesquisa. Aqui no Brasil, deveria estar fazendo as análises em campo desde janeiro, mas até agora a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) não liberou as verbas previstas para aquisição dos animais e dos materiais necessários”, conta.

Mazza tinha conseguido aprovação para passar 12 meses nos EUA, mas, com os cortes no programa de internacionalização Capes PrInt, tudo mudou. Dos 96 alunos selecionados da UFBA, alguns precisariam ser eliminados. Para evitar a exclusão, porém, os estudantes chegaram a uma solução com a pró-reitoria de pós-graduação: cada um vai passar menos tempo no exterior para que todos possam fazer o intercâmbio. Agora, Mazza terá nove meses nos Estados Unidos. “Nesse tempo, não consigo nem acompanhar a lactação inteira de uma vaca. Eu poderia entrar com recurso, mas preferi abrir mão de um trimestre de pesquisa pensando no coletivo”, diz.

A pesquisa de Mazza tem sido feita a trancos e barrancos desde o começo. Ele foi o primeiro colocado na seleção do programa, mas precisou fazer os dez meses iniciais da pesquisa sem bolsa, porque não havia nenhuma disponível. “Eu só consegui me manter pesquisando porque moro na casa dos meus pais [em Salvador]. Se não tivesse esse suporte, teria desistido”, afirma. Ele também trabalha com um grupo de pesquisadores no Laboratório de Análise de Nutrição Animal da UFBA. Sem remuneração.

Ainda é comum a percepção de que a universidade pública é um ambiente de elite. Mas, na verdade, o perfil socioeconômico dos estudantes mudou radicalmente nos últimos anos. A 5ª Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Graduandos das Universidades Federais, realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e divulgada neste ano, mostrou que, em 2018, 70% dos alunos de graduação em universidades federais vinham de famílias cuja renda é de, no máximo, um salário mínimo e meio per capita (menos de R$ 1.500 por mês, por pessoa). Essa realidade é equivalente à da média das famílias brasileiras, que contam com uma renda mensal de R$ 1.400 per capita, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A cor da universidade também não é mais a mesma. De acordo com a pesquisa da Andifes, 51,2% dos estudantes são pretos ou pardos e 43,3% são brancos. Cerca de metade dos alunos também já é de cotistas, e mais de 60% cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas (veja gráficos na próxima página).

A expansão das universidades federais nos últimos anos foi acelerada. Segundo o levantamento da Andifes, em 2002 havia 148 campi universitários federais no país; em 2017, eram 408, um aumento de 175% em 15 anos. A evolução no número de matrículas também é expressiva. Em 2002, 500 mil pessoas faziam cursos de graduação em universidades federais. Hoje, são mais de 1,1 milhão. Uma transformação dessa magnitude só foi possível graças a um aumento significativo do investimento e à criação de políticas para acesso mais igualitário.

O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), responsável pela aplicação de recursos para o que se chama de “permanência”, com o pagamento de auxílio-moradia para estudantes de baixa renda que não vivem nas cidades onde estudam, por exemplo, nasceu em 2008. Já em 2012, foi criada a Lei de Cotas para o Ensino Superior, que exigiu a reserva de 50% das vagas em universidades federais para alunos de escolas públicas.

Para o ex-presidente da Andifes, Reinaldo Centoducatte, reitor da Universidade Federal do Espírito Santo, todo esse esforço envolvido teve — e terá — um impacto significativo no desenvolvimento nacional. “Talvez ainda não estejamos colhendo os frutos de maneira tão perceptível hoje, mas, em breve, vamos reconhecer a mobilidade social que essas políticas proporcionaram. Esses estudantes que estão hoje no ensino superior serão promotores de uma nova era em suas próprias famílias e, no futuro, teremos outro espectro de composição social em função da mobilidade proporcionada”, diz.

No Brasil, 18% dos jovens entre 18 e 24 anos estão no ensino superior, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. A meta, no Plano Nacional de Educação, é de que o país chegue a 2024 com 33% dos jovens matriculados em uma graduação — para isso, há uma longa estrada pela frente. Na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), formada, em sua maioria, por países desenvolvidos, a média de pessoas entre 24 e 35 anos com formação superior é de 45%. A nossa é de 16%. Para atingir esse patamar, seria necessário ampliar os investimentos. Hoje, o Brasil investe US$ 14,3 mil por ano por estudante, valor próximo dos US$ 15,7 mil gastos pelos países da OCDE. A diferença é que esses países já têm uma estrutura consolidada — tanto pública quanto privada —, enquanto a nossa está em expansão.

Já no Brasil, a importância das universidades públicas para o desenvolvimento científico e tecnológico do país é indiscutível. Um levantamento feito neste ano pelo diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), Carlos Henrique Brito, revelou que, dos estudos publicados pelas cem instituições de ensino superior do país nos últimos cinco anos, mais de 95% eram de universidades públicas. A participação delas na inovação também é extremamente relevante: de acordo com o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), das dez organizações brasileiras que mais depositaram pedidos de patentes de invenção em 2018, nove eram universidades.

Em comparação com outras nações, o Brasil também não vai mal: somos o 13º país com mais publicações no mundo — à frente de países como a Rússia e logo atrás da Coreia do Sul —, tendo adicionado, entre 2011 e 2016, mais de 250 mil artigos publicados em periódicos à plataforma Web of Science — referência na catalogação e divulgação de pesquisas em todo o mundo por contar com mais de 20 mil revistas científicas em seu catálogo.

Já em rankings internacionais que medem a qualidade do ensino superior, o Brasil não figura tão bem. Na avaliação de 2019 do Times Higher Education, a instituição nacional mais bem colocada é a Universidade de São Paulo (USP), figurando entre as 250 e 300 universidades mais bem avaliadas do mundo. Segundo a pesquisadora e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Sabine Righetti, que também é coordenadora acadêmica do Ranking Universitário Folha, esses rankings não conseguem refletir a qualidade das universidades brasileiras.

“Os critérios favorecem muito os anglo-saxões; quem não publica tanto em inglês, não vai ser tão bem avaliado em termos de impacto porque, consequentemente, vai conseguir menos citações. A internacionalização também é um critério de avaliação, e é claro que universidades que têm oferta de cursos em língua inglesa vão receber mais estudantes de fora. Além disso, nós temos outros problemas para atrair intercambistas que nada têm a ver com a universidade, como os altos índices de violência e de pobreza, que são fatores de repulsa”, diz Righetti. Para a pesquisadora, é importante também colocar nossa trajetória em perspectiva quando nos comparamos com outros países. “É claro que podemos melhorar nesses rankings, mas isso não quer dizer que estamos mal. Ali estamos concorrendo com universidades seculares. O ensino superior do Brasil ainda está engatinhando.”

A crise não atinge somente as universidades públicas. No Brasil, as instituições de ensino particulares abarcam 71% dos 6,5 milhões de matriculados em cursos de graduação presenciais, de acordo com o último censo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) do MEC. Quando o assunto é educação a distância, esse número sobe: ao todo, dos 8,3 milhões de alunos de graduação no país, 6,2 milhões estão estudando em particulares. E o setor tem suas dificuldades. Entre 2015 e 2017, o mercado particular perdeu 175,5 mil matrículas presenciais, conforme relatório da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES).

Para conseguir continuar crescendo, o segmento investiu na expansão do ensino a distância — que, no mesmo período, ganhou quase 325 mil matrículas. Essa mudança de abordagem conseguiu garantir tanto um respiro para as empresas do setor quanto o acesso de muitos estudantes ao ensino superior, que não poderiam chegar a esse nível de formação sem uma opção mais em conta. No EAD, 90% dos estudantes pagam mensalidade de até R$ 200. Nos cursos presenciais, os alunos pagam bem mais: 22% pagam entre R$ 200 e R$ 800; 53% pagam de R$ 800 a R$ 1.600.

Somada à crise econômica e ao desemprego que acomete os brasileiros está também a maior dificuldade de acesso ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que foi reformulado em 2018. “Com as mudanças no Fies, o programa perdeu muito seu caráter social, porque virou um financiamento bancário. No seu auge, ele permitiu uma inclusão fenomenal. Das 100 mil vagas que são oferecidas com juro zero, apenas 38 mil estão preenchidas. Os critérios estão muito mais rigorosos”, diz o diretor-presidente da ABMES, Celso Niskier. “Como solução, muitas instituições particulares estão criando formas próprias de financiamento, oferecendo alternativas mais acessíveis para jovens que estão no momento crítico da vida, em que têm altíssimo potencial, mas não converteram isso em renda ainda.”

E essa não é uma dura realidade apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, os jovens estão completamente afogados em dívidas de financiamentos estudantis. De acordo com levantamento do College Board, cada recém-formado norte-americano deve, em média, R$ 112 mil — e o montante de dívidas no país chega a R$ 6 trilhões.

Se antigamente ter um diploma de ensino superior era sinônimo de colocação no mercado de trabalho e futuro brilhante, agora, sem dúvidas, as taxas de empregabilidade já começam a afetar a forma como a população jovem se relaciona com o ensino superior. Uma pesquisa de 2018 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que 44,2% dos jovens que concluíram o ensino superior não estão trabalhando em suas áreas de formação porque faltam vagas para receber essa mão de obra qualificada. Resultado: essas pessoas estão ganhando salários incompatíveis com sua formação. Hoje, um trabalhador que atua na área ganha, em média, R$ 5.700 por mês; o salário do que não atua cai para R$ 3.200. Não à toa, como revela o 8º Mapa do Ensino Superior, o índice de evasão na rede privada chegou a 30% no ano passado; na pública, foi de 18,5%.

O problema, definitivamente, não é o número excessivo de graduandos, e sim a falta de capacidade do país de gerar empregos. Segundo a professora Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Brasil está muito atrasado no ensino superior quando levamos em conta o tamanho da economia do país e as perspectivas de futuro. “O Brasil é a nona maior economia do mundo. É urgente aumentar a população universitária, especialmente no contexto dessa quarta revolução industrial, em que a automação e a inteligência artificial vão exigir competências cada vez mais sofisticadas. Formar as pessoas apenas com a educação básica não é mais suficiente”, diz.

Preparar a população para esse futuro não exige nada de outro mundo. Um estudo publicado pela Economist Intelligence Unit, intitulado Worldwide Educating for the Future Index 2018, mostrou que as bases para o sucesso são: formação continuada dos professores; flexibilidade para adaptar os currículos; manutenção de valores como diversidade e tolerância. A base é aproximar a vivência universitária do que o mundo exige na prática.

Para Costin, alguns países têm experiências interessantes nesse aspecto. “No Brasil, não temos uma política forte de primeiro emprego. A Alemanha, por exemplo, tem um modelo dual de educação. Quando os estudantes fazem um ensino médio técnico, passam parte do dia na escola, parte do dia em uma empresa. Isso aumenta não só a empregabilidade mas a capacidade de formar profissionais que atendam melhor às demandas do mercado de trabalho.” Ela ressalta que, no Brasil, também não faltam exemplos de sucesso. “O que precisamos é aprender a dar escala a essas experiências. Educação exige esforço, ação coordenada, equipe técnica. Não dá para jogar para a plateia.”

Em oito meses, Bolsonaro coloca em xeque a autonomia universitária 

Iniciado há pouco mais de oito meses e caótico em várias áreas, o Governo Bolsonaro tem se mostrado bastante eficiente na apresentação de medidas que atentam contra a autonomia das instituições federais de ensino superior (IFES). Em março, um decreto extinguiu centenas de funções gratificadas em universidades. Em maio, outro decreto determinou que a nomeação para cargos como o de vice-reitor e pró-reitor das instituições passasse pelo crivo do Governo. 

Enquanto essas medidas mais claramente afrontam funções que cabem às universidades – ambos os decretos são contestados pelo Ministério Público Federal, e, no caso da extinção de funções gratificadas, as instituições sediadas no Rio Grande do Sul já obtiveram liminar a seu favor – outras iniciativas são mais controversas do que ilegais. É o caso da nomeação de diversos reitores que não foram os primeiros colocados da lista tríplice apresentada pela comunidade acadêmica. 

O Governo Federal já nomeou cinco reitores que não foram primeiros colocados das consultas nas universidades, e nomeou o primeiro colocado em seis oportunidades. Em outro caso, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), o Governo não reconheceu as eleições da entidade e nomeou uma reitora temporária que sequer estava na lista tríplice. Isto porque a UFGD encaminhou apenas o nome do primeiro colocado da lista, já que os demais se retiraram da disputa. Iniciou-se uma disputa judicial, mas, enquanto isto, a reitora temporária nomeada pelo Governo está exercendo o comando da universidade. Caso semelhante ocorreu no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet-RJ). O MEC contesta a consulta pública para diretor-geral e nomeou um funcionário do Ministério para o cargo de diretor interino, o que tem gerado fortes protestos dos estudantes.

A autonomia universitária está definida pelo artigo 207 da Constituição Federal, que diz que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Por outro lado, a Lei 9192/1995 define que a universidade deve encaminhar lista tríplice e o presidente fica livre para nomear qualquer dos três candidatos. E é o que aponta o secretário de Ensino Superior do MEC, Arnaldo de Lima Barbosa de Lima Júnior: “A autonomia didático-pedagógica está garantida na Constituição Federal. O que está sendo feito é respeitar a lei, que diz que é preciso eleger um dos nomes de lista tríplice. É a democracia”. 

“A gente está estarrecido”, afirma o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) Antônio Gonçalves Filho. Para o dirigente sindical, a Lei 9192/1995 é uma norma infraconstitucional e não pode estar acima da Constituição. Ele entende que a autonomia universitária deveria passar pela escolha do reitor. “A gente acha que tem que ser eleição direta e a escolha se encerrar dentro da instituição”. 

Para a professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP Nina Beatriz Stocco, porém, a escolha do segundo ou terceiro colocados na lista tríplice não fere a autonomia das instituições, embora considere uma decisão política que desprestigia as universidades. “Em princípio eu diria que não fere a Constituição, porque o órgão mantenedor, que é o Estado, acaba interferindo. Não existe autonomia absoluta, não estamos falando de independência ou soberania. Se fosse independência, aí sim estaria ferindo. O órgão mantenedor tem algum tipo de controle. Isso é em todo lugar. Todos os países que têm um modelo semelhante são assim”, explica. 

Entretanto, quando o assunto é a interferência do Governo na nomeação dos cargos de segundo escalão das universidades, a professora tem outra opinião. “Aí sim eu vejo que fere a autonomia. Não há previsão legal (para interferência do Governo), como há na escolha do reitor. A organização interna era sempre feita pelas universidades”, afirma a professora da USP. Nina Beatriz Stocco cita também o projeto Future-se como um possível risco à autonomia das instituições federais de ensino. “O que se percebe é que as organizações sociais terão muita influência no ensino e na pesquisa, e então as universidades vão ter um problema de autonomia”. 

Para o MPF, o decreto que retira dos reitores a livre nomeação de pró-reitores e diretores, “viola frontalmente as disposições constitucionais pertinentes à Autonomia Universitária” e significa “verdadeira intromissão na administração destas instituições”, pois “toda a atividade administrativa, de gestão ou didática cientifica passa a ser determinada pela Presidência da República e não mais pelas próprias universidades e institutos federais”. Já a extinção de funções gratificadas, “em número impressionantemente alto, compromete quase que em absoluto o funcionamento administrativo” das universidades.

A reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Lúcia Pellanda, demonstra preocupação em conscientizar a população sobre a importância da autonomia universitária. “As pessoas podem confundir às vezes, ‘ah, querem fazer o que bem entendem’. A autonomia é muito importante para nós. Significa que não vamos estar sujeitos a um partido político, a um indivíduo, ao mercado. Vamos abrigar todas ideias”. 

Modelo paulista de autonomia traz vantagens 

Nas universidades estaduais de São Paulo, também se estabeleceu a autonomia universitária no processo de redemocratização do país. A diferença é que por lá foi estabelecido que 9,57% da arrecadação de ICMS iria para as três universidades públicas (USP, UNICAMP e UNESP). “Uma vez que são repassados esses recursos, eles são administrados livremente. Existe uma previsibilidade. No modelo federal, não há essa previsão. Não há nada que garanta mesmo recursos básicos para manutenção”, afirma Nina Beatriz Stocco. 

Passados trinta anos desde a medida, USP e UNICAMP costumam ocupar as primeiras posições nos rankings que definem as melhores universidades do país. Mas nem tudo deu certo. A professora de Direito de Estado da USP conta que houve momentos em que a folha de pagamento das universidades excedeu o montante arrecadado com ICMS e foi preciso fazer planos de demissão voluntária. “Houve erros e acertos, mas os resultados são positivos”, diz.

Para Nina Beatriz Stocco o modelo aplicado em São Paulo poderia ser implementado nas universidades federais. “É um modelo já testado e que tem 30 anos. O Governo talvez pudesse fazer isso com algumas universidades que fazem mais trabalho de pesquisa, para que se organizassem”, afirma. 

Presença militar em universidades chama atenção 

Além das medidas do Governo Federal que atentam contra a autonomia universitária, chamaram atenção alguns episódios com relação à presença militar nas universidades federais. Em fevereiro, a reitoria da Universidade Federal Fluminense (UFF) criou um cargo de assessoria militar, “para fins de articulação e cooperação com o Ministério da Defesa e as Forças Armadas”. A assessoria era composta por dois professores da instituição e pelo capitão-de-mar-e-guerra Gustavo Bentenmüller Medeiros Pereira. Com a pressão da comunidade acadêmica, porém, a reitoria voltou atrás e desfez o órgão. 

Em julho, uma servidora da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi designada como assessora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Embora seja uma instituição civil, a Abin tem forte presença militar e está sob o guarda-chuva do Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo General Augusto Heleno. Também na UFMS, no mês de julho, um militar filmou de maneira bastante ostensiva a palestra do cientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), durante a 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A palestra falava sobre os cortes no financiamento da ciência brasileira. Embora os militares do Comando Militar do Oeste tenham sido convidados para a reunião e tivessem até estande no evento, chamou atenção a forma como a palestra foi filmada, com um militar se aproximando bastante dos presentes que faziam perguntas ao palestrante para filmá-los.  

“O fato é que uma simples participação dos militares na Academia não pode ser vista como perseguição”, afirma o advogado Rodrigo Lentz, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília, onde estuda a Escola Superior de Guerra (ESG). “Militares fazem estudos, mestrado, doutorado. No ano passado, em encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), apresentei um trabalho sobre a ESG, havia militares participando e não houve qualquer problema”, complementa.

Lentz afirma que no caso das nomeações para a UFF e UFMS não havia interferência dos militares e acredita que pode ser estratégia política das próprias universidades. “Nesses dois casos, pelo que apurei, não se trata de ingerência. Pelo contrário, é mais um desdobramento das interações dos militares com a Academia”. Quanto ao caso da filmagem, ressalta que a área de ciência e tecnologia tem grande interação com os militares. “Eles se sentem à vontade para irem fardados neste tipo de evento. Pode ser intimidação ou não. Pode ter tido alguma prática individual também”. 

Embora minimize esses casos, Lentz compreende o receio da comunidade acadêmica. “Esse receio é normal por conta do histórico e da falta de autocrítica dos militares de seus próprios atos. A gente tem um grande trauma com relação às Forças Armadas, inspiram pouca confiança quanto à garantia da democracia. Tem um histórico e não há nada que garanta que isso não possa ocorrer de novo”, diz. 

Se nestes pequenos episódios Rodrigo Lentz acredita que não há uma ingerência do comando militar, quando o assunto são as políticas do Ministério da Educação que afrontam a autonomia universitária, como a interferência nas nomeações de pró-reitores e diretores, o pesquisador acredita que há, sim, participação das Forças Armadas: “Neste ponto identifico uma política com dedo da doutrina dos militares. Eles estão pensando o Governo, estão pensando a universidade e isso vai envolver o controle de quem ocupa os cargos”, afirma. 

Lentz explica que a Escola Superior de Guerra tem um manual básico de doutrina de ação política. “Essa doutrina tem uma visão funcional, sistêmica. Quando há parte desse organismo que cause perturbação é preciso agir. Se eles acharem que a postura da universidade está em desacordo, eles vão agir. Mas não vai ser num arroubo, se dá com informação, com estratégia”, relata. De acordo com a doutrina da ESG, o poder nacional se divide em várias formas de expressão, que são o meio para se chegar ao fim, que é o bem comum. “Neste manual a universidade faz parte da expressão psicossocial do poder nacional, junto com mídia, família, escola, associações”, explica o pesquisador da UNB. 

Para Lentz seria um erro as universidades se fecharem para as Forças Armadas, apesar de pontuar que é um cenário “onde as universidades precisam se defender”. “O melhor cenário seria uma integração, mas que parta da garantia de plena autonomia das universidades. O conservadorismo militar certamente vai gerar choques, mas as universidades poderão influenciar uma instituição que precisa muito do pensamento democrático das universidades”.


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