26/04/2024 - Edição 540

Especial

A quem interessa a destruição da Amazônia?

Publicado em 27/08/2019 12:00 -

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As queimadas que destroem a Amazônia e chamam atenção mundial são apenas a face mais visível da exploração da maior floresta tropical do mundo. Por trás da derrubada da mata e do fogo, estão poderosos interesses econômicos: a criação de gado, o comércio ilegal de madeira e a produção de soja.

Parte desses produtos tem como destino final a Europa. O presidente da França, Emmanuel Macron, chamou as queimadas de “crise internacional”, declaração que foi interpretada como uma subida no tom das ameaças sobre a compra de produtos brasileiros — e que coloca em xeque o acordo entre Mercosul e União Europeia. A relação do mercado internacional com as queimadas não é simples, já que a Europa compra produtos que saem de áreas desmatadas ilegalmente há anos.

O fogo é uma das etapas do processo de abertura de pastagens, que tem início na derrubada da floresta com tratores e correntes, passa pela secagem e pelas chamas e termina no plantio de capim para alimentar os animais, de acordo com Erika Berenguer, pesquisadora sênior do Instituto de Mudanças Ambientais da Universidade de Oxford. Após a substituição das árvores pelo gado, o terreno pode vir a ser usado para o plantio agrícola, segundo a pesquisadora, que estuda queimadas na Amazônia há 10 anos.

Se na década de 1970 apenas 1% da Amazônia estava desmatada, hoje o índice chega a 20%, segundo relatório da Procuradoria do Meio Ambiente do Ministério Público Federal. A destruição da floresta acompanhou a evolução do rebanho bovino na Amazônia, que passou de 47 milhões de animais em 2000 para cerca de 85 milhões atualmente. Quase 40% das 215 milhões de cabeça de gado do país pastam em áreas amazônicas. A pecuária ocupa 80% da área desmatada da região, segundo o relatório.

A exploração econômica da Amazônia está por trás dos 40 mil focos de incêndio que atingiram a floresta de 1º de janeiro a 23 de agosto, detectados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). É o maior índice de queimadas desde 2010.

O aumento dos focos de incêndio acontece em meio a medidas controversas tomadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, como a redução das fiscalizações ambientais, os cortes orçamentários para o ministério do Meio Ambiente, o questionamento dos dados oficiais sobre desmatamento e a extinção do Fundo Amazônia.

Ao contrário do que declarou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que as queimadas devem-se ao “tempo seco, vento e calor”, os dados do INPE indicam que o fogo vem sendo causado pela derrubada da floresta, segundo pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Fronteiras agrícolas 

Não por acaso, as atuais queimadas da Amazônia acontecem em áreas tradicionalmente dedicadas a pastagens ou a plantações de soja. Um cientista da agência espacial Nasa apontou com precisão a localização dos focos de calor detectados em agosto. “[Os satélites mostram] colunas de fumaça enormes saindo daquelas áreas da fronteira agrícola, como Novo Progresso, a região da Terra do Meio, no Pará, e o sudeste do estado do Amazonas”, disse Douglas Morton ao jornal  Folha de S.Paulo, acrescentando que a última vez que os satélites detectaram uma destruição semelhante foi em 2004.

Localizada na bacia do rio Xingu, a Terra do Meio é ameaçada pelo avanço do desmatamento na cidade paraense de São Félix do Xingu, que possui o maior rebanho bovino do país, com 2,2 milhões de cabeças. Ali, a gigante mundial da produção de carne, JBS, foi flagrada comprando gado de um grupo econômico multado pelo Ibama por desmatar a Amazônia. 

Trata-se da AgroSB, uma das maiores produtoras de gado do país, que foi multada por desmatamento ilegal em R$ 69,5 milhões entre 2010 e 2019, em suas fazendas em São Félix do Xingu, conforme mostrou, em julho, investigação do site Repórter Brasil em parceria com o jornal britânico The Guardian. A companhia, que faz parte do grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, é uma das fornecedoras de gado da JBS.

Não foi a primeira vez que a JBS comprou gado de grupos desmatadores. Em 2017, a produtora de proteína animal comprou gado de Jotinha, apelido de Antônio Junqueira, que operava na região o maior esquema de desmatamento ilegal associado a grilagem de terras da história da Amazônia, segundo operação realizada pelo MPF. A denúncia  sobre exportação de carne ligada ao desmatamento, feita pela Repórter Brasil em parceria com o The Guardian, levou o mercado inglês Waitrose, sétimo maior da Inglaterra, a retirar a carne da empresa brasileira de suas prateleiras.

Procurada, a JBS informou que mantém o posicionamento que deu à época da publicação das reportagens, quando afirmou que, “assim que recebeu as informações sobre as irregularidades, todas as compras de gado da família Junqueira foram imediatamente interrompidas”.

Sobre a compra de gado da AgroSB, a JBS informou que “os fatos apontados não correspondem aos padrões” adotados pela companhia. A empresa informou que não adquire animais de fazendas envolvidas com desmatamento ou que estejam embargadas pelo Ibama. A empresa reforça que possui um sistema robusto de monitoramento dos seus fornecedores de gado. 

Já a AgroSB, também em nota divulgada na época da publicação da reportagem, afirmou que comprou a fazenda Lagoa do Triunfo em fevereiro de 2008 e que “nunca realizou qualquer supressão de vegetação no imóvel”. “O modelo de negócio da AgroSB está ancorado na aquisição de áreas abertas e com pastagem degradadas, as quais são adubadas, recuperadas e transformadas em pastos de alta intensidade ou plantações de grãos”, completa a nota.

Plantações de soja

Enquanto a pecuária desmatadora se concentra nos estados da Amazônia Legal, a maioria das plantações de soja ocupam áreas do cerrado. Porém, parte das plantações do grão está no norte do Mato Grosso – cujo bioma é amazônico. Na cidade matogrossense de São José do Rio Claro, por exemplo, a Repórter Brasil flagrou um fazendeiro denunciado e multado por trabalho escravo e desmatamento ilegal que exportava proteína soja para a Noruega. No país nórdico, a soja era usada como ração na criação de salmão.

Ainda que em menor proporção, as plantações de soja também contribuem para a destruição da floresta. Em 2018, o então ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, divulgou estudo revelando que o grão ocupa ilegalmente 47,3 mil hectares de floresta desmatada da Amazônia – aumento de 27,5% na comparação com o registrado na safra anterior (37,2 mil hectares). 

A Operação Shoyo, realizada em outubro de 2016 pelo Ibama, investigou no Mato Grosso os compradores de “soja pirata” – grão produzid0 em áreas desmatadas e embargadas. A operação resultou em multas de R$ 170 milhões relacionadas à plantação em áreas proibidas, de acordo com informações do relatório “Salmon on soy beans – Deforestation and land conflict in Brazil”.

A Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil) divulgou nota no último dia 23 em que condena a ocorrência de queimadas na Amazônia em áreas de vegetação e de produção agrícola no norte do Brasil. 

Sobre a extração ilegal de madeira na Amazônia, investigação conjunta da Repórter Brasil e da organização jornalística dinamarquesa Danwatch revelou, no ano passado, que empresas daquele país compraram produtos de exportadores brasileiros multados diversas vezes pelo Ibama. Uma comprovação de que esses crimes não estão sendo bem controlados por redes de fornecedores internacionais. 

Desmatadores financiam campanha

O agronegócio brasileiro tem relações estreitas com a classe política. A JBS foi uma das maiores financiadoras de campanhas políticas em 2014. Executivos da empresa assumiram em delações que destinaram mais de R$ 500 milhões para ajudar a eleger governadores, deputados estaduais, federais e senadores de todo o país. Ainda que a empresa dona das marcas Friboi e Swift não tenha sido diretamente multada por desmatamento, ela mantém entre sua rede de fornecedores diretos e indiretos grupos autuados pelo crime.

Após a prisão dos donos da JBS, Joesley e Wesley Batista, em 2017, a empresa parou de financiar campanhas, mas executivos ligados a companhias que foram autuadas pelo Ibama por crimes ambientais – o que inclui desmatamento ilegal – fizeram doações para campanhas de pelo menos 117 deputados e senadores eleitos, que somam R$ 4,2 milhões. Entre os financiados por desmatadores, há nomes proeminentes,  como o do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ex-presidente do Senado, Renan Calheiros. 

O levantamento exclusivo feito pela Repórter Brasil cruzou dados do Ibama e da Receita Federal e foi publicado em 5 de fevereiro deste ano. O levantamento considera crimes ambientais em todas as regiões do país e não apenas na Amazônia. 

Reação

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que as queimadas ocorrem durante todo o ano no Brasil. Ela destacou que não se pode dizer que o agronegócio brasileiro é o “grande destruidor” da Amazônia em razão dos incêndios que ocorrem neste momento na região. “Existe hoje uma preocupação do mundo com o meio ambiente. O Brasil não está fora dessa preocupação. E os produtores rurais também têm essa preocupação porque eles são os maiores prejudicados, principalmente aqueles que usam tecnologia”, disse a ministra.

No dia 23, um grupo de servidores do Instituto Chico Mendes (ICMBio) posou para uma foto com a frase “Amazônia, estamos aqui”. Segundo um dos servidores, a foto é um recado para governo federal dizendo que eles estão dispostos a irem fiscalizar e punir os desmatadores e os responsáveis pelas queimadas. “Mas o governo precisa liberar verba e autorizar as operações”, disse um dos fiscais durante o treinamento realizado na Academia Nacional da Biodiversidade, em Iperó (SP). 

Grupo usou whatsapp para convocar "dia do fogo" no Pará

Em Altamira, no Pará, município que lidera o número de incêndios e desmatamentos no Brasil, o Distrito de Cachoeira da Serra, um dos polos agrícolas mais disputados pelos agricultores, ainda repercute a maior queimada da história do Pará, que aconteceu no dia 10 de agosto. Essa data vai ficar lembrada para sempre por aqui como o “Dia do Fogo”. 

Já se sabe que mais de 70 pessoas – de Altamira e Novo Progresso – entre sindicalistas, produtores rurais, comerciantes e grileiros, combinaram através de um grupo de whatsApp incendiar as margens da BR-163, rodovia que liga essa região do Pará aos portos fluviais do Rio Tapajós e ao Estado de Mato Grosso. A intenção deles era mostrar ao presidente Jair Bolsonaro que apoiam suas ideias de “afrouxar” a fiscalização do Ibama e quem sabe conseguir o perdão das multas pelas infrações cometidas ao Meio Ambiente.

A pedido do Ministério Público de Novo Progresso, o Delegado Daniel Mattos Pereira, da Polícia Civil, já ouviu algumas pessoas ligadas ao “Dia do Fogo”, até agora ninguém foi preso.

As delegacias dos municípios de Castelo dos Sonhos e Novo Progresso receberam inúmeras denúncias de produtores rurais que se dizem prejudicados pelas queimadas.

Muitos perderam cercas, pastagens, lavouras e animais, tudo devorado pelo fogo. Depois que a denúncia do “Dia do Fogo” veio a público, uma nova versão circula por toda a região. A pecuarista Nair Brizola, de Cachoeira da Serra, faz eco a uma história que ouvimos em toda parte. Ela nos procurou quando circulava pela estrada da “Bucha”, onde nossa equipe documentava uma queimada.

–“Vocês são do meio ambiente?”, gritou ela de dentro de sua caminhonete.
-“Não. Somos jornalistas.”
– “Que ótimo. Que ótimo,“ diz em seguida.
– “Quem está colocando fogo por aqui?”, pergunto a ela
–  “É o ICMBio [a sigla se refere ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade]. Tinha uma moto preta colocando fogo em tudo aqui. E eles foram na minha propriedade com essa moto amarrada em cima da caminhonete deles. Tava escrito lá na porta”

Sem saber que nossa conversa estava sendo gravada, dona Nair continua:

– “Esse povo, se eles veem você, eles já vêm armado, já manda você parar, já toma seu celular. Você não pode fazer nada. As caminhonetes que eles andam fazendo esse terror todo, está escrito ICMbio. O presidente Bolsonaro tá certo quando diz que essas Ongs estão botando fogo,” completa ela.
– “Mas, ele andou falando também que pode ser os fazendeiros”, interrogo.
-“Não vou dizer que um ou outro não está fazendo isso, mas esse fogo que colocaram ai na beira da estrada, não é dos fazendeiros.”

A vegetação muito seca das beiras das estradas continua com focos de incêndios que chegam a interromper o tráfego na BR 163. Entrando pelas vicinais de terra deparamos uma enorme área de floresta ardendo em chamas.

Uma enorme queimada colocada no entorno de uma área de floresta primária. O fogo foi colocado estrategicamente circundando a floresta, bem no horário em que o vento carrega as chamas para o interior dela. Ao lado o tratorista, Erisvã da Conceição Silva, passa uma grade no terreno, que um dia já foi floresta, preparando a área  para o plantio de grãos.

– “Quem colocou fogo aí?", pergunto a ele.
— “Esse fogo veio lá da estrada do outro lado.” Aponta para o lado oposto da floresta onde seria praticamente impossível ter originado o fogo, por uma simples razão. Não havia fogo nenhum por lá.

Enquanto a gente conversava com ele, o fogo subia pelas árvores. É de chorar. Pássaros e insetos emergiam desesperados de dentro da mata. Vamos continuar por aqui investigando o “Dia do Fogo” data que ninguém mais vai esquecer. Dez de Agosto de 2019, quando vários incêndios criminosos pipocaram pela Amazônia assustando o mundo inteiro: Os Estados de: Rondônia, Acre, Amapá, Mato Grosso, Amazonas e Pará arderam em chamas ao mesmo tempo. Queimadas que em geral acontecem espontaneamente na época de seca, mas não em proporções como essa.

A ‘Amazônia fora da lei’ de Bolsonaro

Os 12 milhões de habitantes de São Paulo sempre conviveram com o mau tempo, mas na segunda-feira passada as nuvens escureceram o céu e a noite caiu às três horas da tarde. Pouco depois, os paulistanos souberam que, além da chuva, havia fumaça. O suficiente para causar um efeito óptico que deixou o céu quase negro. Fumaça da Amazônia. Dos incêndios que se estendem por áreas de floresta de cinco Estados brasileiros e que, de acordo com os especialistas e ambientalistas, são o resultado de um desmatamento que se acelera sob o Governo de Jair Bolsonaro. E com seu respaldo, ainda que indireto: o presidente flexibilizou os controles ambientais, como havia prometido, e pretende permitir a mineração em terras indígenas. Alguns membros de seu Gabinete, como o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, questionam o aquecimento global.

A 3.000 quilômetros de distância em direção ao norte, em Rondônia, o território indígena dos Uru-eu-Wau-Wau queima. Nos últimos meses, sofreu sucessivas invasões que causaram desmatamento e, na sequência, incêndios para abrir o terreno. "Estamos denunciando desde janeiro", conta Ivaneide Bandeira, da ONG Kanindé Associação de Defesa Etnoambiental. A fumaça que sai da reserva indígena, em teoria protegida pelo Governo Federal, viaja 400 quilômetros e chega com força à capital Porto Velho, onde mora a ativista. Em imagens divulgadas nas redes sociais se vê uma espessa névoa que faz com que mal se possa respirar. Os hospitais estão abarrotados. "Em meu bairro a sensação é de que o mundo está caindo sobre nós", conta por telefone.

Os incêndios são comuns nessa época de seca na região e nem sempre são ilegais. Os dados indicam, entretanto, que as autoridades perderam o controle sobre a situação e que o país vive a maior onda de incêndios dos últimos cinco anos, de acordo com o Instituto Nacional de Investigação Espacial (INPE). Entre 1 de janeiro e 22 de agosto foram registrados 76.720 focos de incêndios, 85% a mais do que no mesmo período de 2018 (quando houve 41.400). Os satélites mostram que mais de 80% do território devorado pelas chamas está na Amazônia.

Os mesmos satélites utilizados pelo INPE indicam que o desmatamento aumentou 34% em maio, 88% em junho e 212% em julho em relação aos mesmos meses de 2018. Bolsonaro criticou a instituição e seus números em um encontro com jornalistas. O físico Ricardo Galvão, que comandava o INPE, contradisse publicamente o presidente e foi exonerado. Desde estão, a Amazônia está na mira internacional.

"O Brasil era um vilão ambiental. Mas desde que começamos a reduzir o desmatamento, nos transformamos em líderes na agenda ambiental global. Agora voltamos a uma situação até mesmo pior do que a que tínhamos na década de oitenta", diz a ex-ministra e ex-candidata presidencial Marina Silva. Ela agora elabora com outros ex-ministros e membros da sociedade civil uma carta ao Congresso pedindo que sejam suspensos os projetos para afrouxar as leis ambientais e a criação de uma comissão para debater políticas que combatam a crise ambiental. "Infelizmente, o que está acontecendo se deve às políticas desastrosas e irresponsáveis do Governo de Bolsonaro, que não tem competência para lidar com essa situação", afirma.

"Nem todos os incêndios estão relacionados ao desmatamento, mas os satélites indicam um aumento substancial dos fenômenos. São consequência basicamente das políticas do novo Governo, que incentiva a ocupação ilegal de terras na Amazônia e, consequentemente, a ocorrência dos incêndios ilegais", diz Paulo Artaxo, professor de Física da Universidade de São Paulo.

O especialista, que fez parte do Painel Governamental da Mudança Climática das Nações Unidas, diz que ainda é preciso fazer uma comparação mais detalhada entre as áreas desmatadas e as destruídas pelo fogo. Mas os especialistas dão como certo de que os aumentos dos dois fenômenos estão relacionados. Um levantamento do site InfoAmazonia, com base em dados públicos, indica que entre os dez municípios com mais incêndios, sete estão entre os que também mais sofreram com desmatamento anterior. Um relatório do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) chega à mesma conclusão.

As principais instituições do Ministério do Meio Ambiente são o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), responsável pela fiscalização e preservação de áreas naturais, e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão responsável pela formação de áreas de conservação. Bolsonaro colocou em andamento uma série de mudanças que tiram responsabilidades desses órgãos que, como denunciam ambientalistas e uma inédita aliança de oito ex-ministros, desmantelam a política ambiental brasileira. "Sempre houve desmatamento, mas nunca incentivado pelas ações do próprio ministro do Meio Ambiente, que desmantelou a governança ambiental", diz Marina Silva.

Cortes do Orçamento

Os cortes orçamentários também tiveram seu efeito. A prevenção e o controle de incêndios perderam 38,4% de seu Orçamento com o contingenciamento deste ano. "Os cortes não começaram agora, mas se intensificaram com Bolsonaro. Foram desmontados programas como o PrevFogo, do Ibama. Era um sistema desenhado para combater grandes incêndios em reservas do Instituto Chico Mendes ou incêndios florestais sem controle, além de coordenar as atividades da Polícia Federal junto com o Ministério Público para coibir as queimadas ilegais. Foi reduzido ao mínimo", explica o físico Paulo Artaxo. A ativista Ivaneide Bandeira ilustra as consequências: "Nas proximidades de Porto Velho vejo bombeiros controlando os incêndios. Mas os órgãos não possuem meios suficientes para deter a invasão do território indígena", conta. "Os funcionários têm compromisso com a defesa do Meio Ambiente. Mas eles morrem de medo de fazer as coisas, de serem removidos. O problema vem de cima, eles não têm o respaldo de Brasília", acrescenta.

Parte dos focos ocorre em áreas privadas que se expandem em direção à reserva natural que todas as propriedades têm obrigação de manter. Outra parte ocorre em áreas públicas protegidas e em territórios indígenas protegidos que sempre estiveram ameaçados por invasores, madeireiros e fazendeiros que querem invadir a terra. Há áreas ricas em minerais como o ouro e árvores centenárias em risco de extinção. E, principalmente, um espaço enorme que pode se transformar em pasto para o gado. Em todos esses casos é preciso abrir o terreno. E isso é sempre feito com fogo.

Ivar Busatto é coordenador da ONG Operação Amazônia Nativa no Mato Grosso, um dos territórios que mais sofrem com a seca —não chove há 90 dias— e que foram atingidos pelos incêndios. Sua organização contabilizou 24 focos em nove comunidades indígenas. "Moro aqui há 48 anos e sempre existiu fogo", diz. A seca é severa, com previsão de chuva somente no final de setembro. Nesse período é proibido por lei utilizar o fogo para qualquer atividade. "Os índios tinham um jeito de controlar esse fogo e de utilizá-lo de forma mais racional. O fogo era manejado o ano todo. Com as novas ocupações e a supressão da vegetação original, é preciso ter um cuidado diferente de 60 anos atrás", explica Busatto.

Seu Estado vive do negócio agrícola e produz parte da soja e do milho que o país exporta. O fogo serve para limpar os campos e para que os fazendeiros se expandam, legal e ilegalmente em direção a territórios protegidos. Parte da vegetação nativa já não existe. Mas agora, quando todos os olhos do mundo estão voltados às matas do Brasil, até o agronegócio se preocupa com as ações ambientais. A pressão internacional pode resultar em medidas drásticas, como sanções ao comércio brasileiro ou até a não ratificação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, como sugeriu o presidente francês Emmanuel Macron, no úiltimo dia 22, e o presidente do Conselho Europeu, no último dia 24.

Enquanto o G7, grupo dos países mais ricos do mundo, se reunia em Biarritz e colocava entre suas pautas a Amazônia brasileira, o Governo Bolsonaro, que chegou a sugerir que ONGs eram suspeitas da onda de incêndio, tomava suas primeiras ações concretas para conter o fogo que devasta a floresta há semanas. "Mais de 43.000 militares das Forças Armadas reforçam ações de combate a incêndios na Amazônia", comemorou o presidente neste sábado, no Twitter. Ele compartilhou também imagens de aeronaves militares despejando água sobre as queimadas, nas primeiras missões após a decretação, nesta sexta, da chamada "GLO Ambiental", como ficou conhecida a Garantia da Lei e da Ordem voltada para a floresta.

Pilhagem da Amazônia mostra falso patriotismo de Bolsonaro

O governo Bolsonaro não é o primeiro a facilitar a dilapidação do bioma amazônico, um dos maiores patrimônios do país, mas certamente tem se mostrado um dos mais competentes. Em oito meses, desautorizou e enfraqueceu a ação da fiscalização ambiental, deu às costas a projetos de desenvolvimento sustentável, atacou instituições e organizações que atuam no monitoramento da devastação, desprezou o conhecimento científico sobre a região, relativizou os direitos dos povos indígenas e demais populações tradicionais, excitou madeireiros, pecuaristas e garimpeiros, dando a eles a certeza da impunidade.

Tudo isso acelerou a curva de desmatamento e degradação da Amazônia, o que chamou a atenção do mundo. Hoje, devido aos protestos em vários países, o governo reclama de um complô internacional contra a soberania brasileira sobre a floresta. Apela ao patriotismo para encobrir a sua própria falta de patriotismo, pois é cúmplice em uma pilhagem que vem sendo realizada das riquezas da região.

O patrimônio da Amazônia – que pertence à toda população brasileira e deveria ser explorado de forma racional em benefício da atual e das futuras gerações – vem sendo saqueado por madeireiros, pecuaristas e garimpeiros e seus compradores brasileiros e estrangeiros. O governo não conta, mas a região já está integrada ao capitalismo global. Ou seja, já foi "internacionalizada". 

Não a hipótese tosca levantada por Emmanuel Macron, no último dia 26, de um santuário do planeta. Mas por estar conectada à economia global desde a ditadura militar. De acordo com demandas de outras regiões do país ou do exterior, recursos naturais e energia fluem para fora da Amazônia nos porões de navios, através de caminhões e aviões, em linhas de transmissão – o que não significou, necessariamente, melhora na qualidade de vida de populações tradicionais, camponeses e trabalhadores rurais. Pelo contrário, tem deixado um rastro de desmatamento, assassinato de indígenas, poluição de rios e igarapés, expulsões de ribeirinhos e muito trabalho escravo.

Apenas cabeças tacanhas olham para a Amazônia e veem um monte de madeira, minério e terra. Essas cabeças limitadas podem fazer muito dinheiro agindo como nuvem de gafanhotos, mas ainda assim o montante é menor do que poderíamos ganhar coletivamente se explorássemos a região de forma sustentável. O que inclui pesquisar uma biodiversidade que pode esconder medicamentos e produtos ainda desconhecidos da humanidade. Intensificar a produtividade nas áreas já abertas e apoiar projetos desenvolvidos pelas próprias comunidades. E ganhar com serviços ambientais, uma vez que a floresta de pé imobiliza bilhões de toneladas de carbono que, se forem para a atmosfera, tornarão nossa vida um inferno. E é responsável por ajudar a regular a temperatura do planeta e as chuvas no Brasil.

Qual a melhor demonstração de respeito pelo país? Vestir-se de verde e amarelo e se enrolar em uma bandeira enquanto canta o Hino Nacional em prantos? Exigir que não se fale em desmatamento em nome de um suposto "interesse nacional" que, na verdade, é "interesse dos amigos", e cobrar que jornalistas escondam o que está acontecendo aqui dentro para "parecer bonito" lá fora? Ou apontar o dedo na ferida quando necessário e exigir que o governo pare de beneficiar um pequeno grupo de brasileiros e estrangeiros, passando a agir, enfim, como se administrasse uma República?


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