29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Bomba relógio

Publicado em 17/12/2018 12:00 -

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Lembram da falácia do "programa Mais Médicos tem 97,2% das vagas preenchidas" que rolou por aí uns tempos atrás, com ajuda de manchetes da imprensa sem o mínimo de tom crítico e com propaganda de penas de aluguel digitais de Bolsonaro tipo algumas contas do Twitter? Agora vamos pra vida real.

Não eram vagas preenchidas, eram cadastros em um sistema. O prazo para que os médicos brasileiros se apresentassem de fato nos postos terminou no último dia 14. Cerca de 2,5 mil dos inscritos não deram as caras. Sumiram. Puf. O número de pessoas sem médico, neste momento, é incalculável. São milhões de brasileiros correndo risco de vida.

Dos doutores que apareceram, boa parte deles (40%) já trabalhava na rede básica. Ou seja: eles estão "preenchendo" a vaga no Mais Médicos e deixando um buraco em outro posto de saúde, gerando um caos silencioso no sistema.

Um cálculo feito pelas secretarias municipais de saúde mostra que 2.844 médicos que se inscreveram no Mais Médicos estavam atendendo nos postos de saúde da família.

O governo prorrogou a data para o comparecimento dos faltantes. Às vésperas do Natal, quantos desses que ainda não deram as caras (e que obviamente sabiam dos prazos) vocês acham que vão aparecer?

O próximo passo: abrir para médicos brasileiros formados no exterior. Como é pouco inteligente oferecer as mesmas vagas aos que já as recusaram, o governo deve aceitar médicos sem diploma válido, pois não há previsão de uma nova prova do Revalida.

O capitão reserva, durante a campanha, usou a prova do Revalida como pretexto para expulsar os médicos cubanos, dizendo que “nós não podemos botar gente de Cuba aqui sem o mínimo de comprovação". Agora estamos caminhando para que as pessoas sejam atendidas por brasileiros… sem diploma comprovado.

Entrando em 2019 com milhões de pessoas sem médicos e correndo risco de vida, teremos ainda outro problema: em março começam as residências médicas no Brasil. Boa parte dos brasileiros que assumiram postos no Mais Médicos devem desaparecer, já que não há punição. Sabem quantos médicos brasileiros desistiram do programa Mais Médicos entre 2013 e 2017? Metade. Na verdade, mais da metade: 54%.

É uma crise humanitária que não será resolvida tão cedo, e que o governo e seus arrobas de aluguel farão questão de esquecer ou tentar soterrar com falácias ou mentiras. A estratégia já pode ser observada com as declarações da pediatra Mayra Pinheiro, que vai assumir o comando do Mais Médicos no governo Bolsonaro.

Ela, que criticava abertamente o programa, e foi uma das organizadoras das hostilidades contra cubanos no início do programa, disse que vai transformar o Mais Médicos no Mais Saúde, adicionando outros profissionais e exigindo o Revalida para todos os formados no exterior. Sobre o problema da falta de procura para os municípios mais vulneráveis, sua “proposta número um” é só abrir vagas nos grandes centros urbanos e nas grandes cidades quando “o interior e as regiões de extrema pobreza” estiverem cobertos. Mayra reafirma sua desconfiança de que “entre os médicos intercambistas havia alguns que não eram médicos”, e diz não conhecer os dados do Ministério da Saúde que apontam a melhoria de indicadores de saúde e a redução das internações com o Mais Médicos.

Além das sandices, o Mais Médicos

O Programa Mais Médicos não é um programa de contratação de médicos. É um programa global de fortalecimento da atenção básica no país e, para isso, conta com três eixos: infraestrutura (requalificação das unidades básicas para que tenham a estrutura necessária para o atendimento); readequação e expansão da formação médica (revisão dos currículos das universidades visando focar na medicina preventiva e não curativa, além de ampliar e descentralizar a oferta de vagas em cursos de medicina, prioritariamente pela rede pública) e, finalmente, o provimento emergencial de médicos (ou seja, “contratação” de médicos).

Os médicos do programa, todos eles, saem, depois de dois anos, com um título de especialização. Assim sendo, o médico do PMM não tem vínculo empregatício, pois integra um programa de formação em serviço. Logo, não faz sentido falar em CLT.

Os médicos cubanos atuavam, em sua maioria, em locais em que brasileiros não querem atuar. Quando as vagas do programa são abertas, os primeiros a serem chamados nos editais são os médicos brasileiros formados no Brasil (com CRM); depois, os chamados intercambistas individuais, médicos brasileiros formados no exterior (Importante notar aqui que são médicos que não têm CRM – logo, não passaram pelo revalida que o presidente eleito quer forçar os cubanos a passarem). Só em caso de não preenchimento das vagas anteriores é que os médicos cooperados (no caso, os cubanos) são convocados.

Os médicos estrangeiros chegam não apenas para ocupar vagas que os brasileiros não querem ocupar (o que também é verdade), mas porque a formação médica atual não consegue atender à demanda de médicos no país.

“A formação cubana em saúde é referência no mundo. Durante o governo Obama até os EUA tinham desenvolvido parcerias na área. A ELAM, escola de medicina da ilha, forma profissionais do mundo inteiro, incluindo brasileiros. Ainda assim, quando chegam ao Brasil, os médicos passam por um período de acolhimento, no qual são capacitados sobre o funcionamento do SUS, temas de saúde e português. Ao final desse período ainda passam por uma prova de admissão final. Logo, a revalidação demandada é surreal”, afirma Lara Stahlberg, autora da dissertação International cooperation and health policy: An analysis on the design and implementation of the Mais Médicos Programe in Brazil, Mestre em Brasil em Perspectiva Global pelo King’s College London.

Por fim, e talvez o mais importante: os termos da cooperação eram pactuados entre a Organização Pan-Americana da Saúde e o Ministério da Saúde de Cuba. Ninguém é “escravo” ou “obrigado a trabalhar” no Brasil. Os médicos recrutados eram, em sua maioria, profissionais que já tiveram atuação humanitária em diversos países do mundo (como a crise do ebola na África ou países centro-americanos). Cerca de 25 mil profissionais atuam fora do país atualmente.

Divisor de Águas

Antes da saída de Cuba do Programa Mais Médicos para o Brasil, Mário Scheffer, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor da USP, apresentou resultados de pesquisas sobre demografia médica e os impactos da crise econômica sobre a saúde, no contexto do projeto.  Segundo ele, o programa foi um “divisor de águas” na formação de médicos do Brasil.

“Talvez nenhum país do mundo tenha passado por um incremento tão grande no número de profissionais médicos em tão curto tempo. Em 5, 6 anos, passamos da formação de 20 mil profissionais para 30 mil profissionais por ano”, afirma.

Conforme explica Lara Stahlberg, o programa não se trata só da contratação de médicos. Um de seus eixos é a readequação e expansão da formação médica, com a proposta de revisar currículos – a fim de que as especialidades sejam mais direcionadas para medicina preventiva –  e descentralizar a oferta de vagas em cursos de medicina, levando o ensino médico para o interior. Segundo Scheffer, esse movimento de fato ocorreu – mas 93,4% de médicos recém formados em cidades pequenas migram para grandes centros.

Estudos

Em meados de 2016, quando o Programa Mais Médicos completava três anos de existência, a Revista Ciência & Saúde Coletiva ganhou uma edição especial sobre o projeto – organizada pela Rede de Pesquisa em Atenção à Saúde (APS) da Abrasco em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Os estudos e evidências sobre os efeitos, limites e desafios do programa garantiram uma coletânea de artigos, que podem ser explorados aqui.

Leonor Pacheco, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília, foi autora de alguns dos estudos: comparando os indicadores de saúde de municípios muito pobres e remotos, que aderiram ao programa, com os que não se inscreveram, entre 2012 e 2015, ela descobriu que a cobertura da atenção básica aumentou – de 77,9% para 86,3% –  e as hospitalizações evitáveis diminuíram – de 44,9% para 41,2%. Já Maria Helena Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz, produziu o artigo O Programa Mais Médicos, a infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.  

Com a retirada de Cuba, o Mais Médicos corre o risco de não conseguir atender a população que dele necessita, sobretudo as famílias mais vulneráveis, avaliam especialistas, profissionais envolvidos no projeto e o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, um de seus idealizadores.

Cerca de 8,3 mil dos 18,3 mil médicos do programa eram cubanos, 45% do total. Eles estavam presentes em todos os estados e no Distrito Federal, e ocupaam vagas que não puderam ser preenchidas por brasileiros.

Em cinco anos de programa, nenhum edital de contratação de médicos brasileiros conseguiu contratar quantidade suficiente de profissionais para as vagas abertas. O maior edital resultou na contratação de 3 mil brasileiros.

Segundo as regras atuais, os profissionais do país caribenho não precisam validar o diploma para atuar no Brasil, mas recebem uma autorização restrita: podem exercer a medicina somente na cidade ou área remota para onde são destinados.

“Essas mais de 8 mil vagas não vão ser preenchidas rapidamente. Até que se formem novas turmas de médicos, não há, no Brasil, esse número de médicos que queiram ir para essas regiões. Vai haver, de fato, um colapso. Os grandes demandantes do programa eram os prefeitos, que não conseguiam atrair médicos para regiões distantes dos centros urbanos”, afirma Leonor Pacheco, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) que participou de projeto para analisar os resultados do Mais Médicos.

Dos 5.570 municípios do país, 3.228 só têm médicos do programa, e 90% dos atendimentos da população indígena são feitos por profissionais de Cuba, de acordo com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “A rescisão repentina desses contratos aponta para um cenário desastroso”, opina a entidade.

Tratamento a quem nunca teve acesso

“O Programa Mais Médicos não sobrevive, no curto prazo, sem a presença dos médicos cubanos por estarem alocados de forma maciça em regiões onde a presença de médicos brasileiros é escassa”, afirma a pesquisadora Maria Helena Machado, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e que também já coordenou um levantamento para avaliação do programa.

Pesquisas concluíram que a avaliação do desempenho dos médicos cubanos era bastante positiva por parte das famílias e também dos gestores públicos. “Até porque parte significativa da população que hoje é atendida por esses profissionais nunca teve acesso a assistência médica”, ressalta Machado.

Gerson Costa, supervisor do Mais Médicos na região do Carajás, sudeste do Pará, afirma que ele e os profissionais que supervisiona foram pegos de surpresa com o anúncio da saída de Cuba do programa, “embora já houvesse essa expectativa no ar desde o resultado das eleições”.

“Dos meus supervisionados, todos têm muitas críticas ao cenário de práticas que encontraram, pela precariedade mesmo, tanto material quanto humana dos profissionais brasileiros”, conta. “Mas também têm muitas impressões positivas, tanto do trabalho que puderam desenvolver quanto das pessoas que conheceram e das relações que estabeleceram.”

Costa afirma que antes do Mais Médicos, a assistência médica nas cidades que supervisona era muito mais esporádica, pontual e centrada em atendimentos de emergência. “Com a saída dos cubanos, tende a voltar a ser assim.”

Maioria das vagas não ocupadas está nos distritos indígenas

Das vagas não ocupadas depois da primeira etapa de seleção de profissionais para o Mais Médicos, 63 estão em Distritos Especiais de Saúde Indígena, os Dseis, o que equivale a 59% do total. Dos 34 distritos de saúde indígenas existentes no país, oito — todos no Norte — ficaram com vagas ociosas depois do término das inscrições no último dia 7

Segundo especialistas a explicação para esse cenário passa por três aspectos:

– o isolamento de algumas dessas comunidades, principalmente as da região amazônica;

– o perfil do estudante de medicina brasileiro;

– o modo como a carreira médica é feita no Brasil.

Os distritos indígenas da Amazônia, por ficarem em locais de difícil acesso, sofrem ainda mais dificuldades no preenchimento de vagas, afirma Paulo Basta, supervisor dos médicos cubanos do Dsei Tapajós, no oeste do Pará, e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública.

Das 11 vagas que foram ofertadas no edital do Mais Médicos para o Tapajós, apenas cinco foram ocupadas. Em comparação, os distritos indígenas do litoral tiveram todas as vagas preenchidas na primeira etapa de seleção.

"As áreas da Amazônia são remotas, onde as pessoas têm muita dificuldade para chegar. Essa é a primeira dificuldade. E aí, quando você chega, as jornadas de trabalho não são iguais às que você tem nas cidades. São 20, 30 dias direto nos locais de trabalho. Esse é outro problema", avalia Paulo.

O Ministério da Saúde ressaltou que somente 18,9% das vagas em distritos não foram preenchidas e que o processo de seleção continua. Além disso, afirma que o atendimento a essa população é feita de outras formas:

"O Ministério da Saúde busca o aprimoramento constante das ações em saúde dos povos indígenas. (…) Para viabilizar essa assistência, o Ministério da Saúde utiliza transportes aéreos (aviões e helicópteros), terrestres (caminhonetes, caminhões, vans) e aquáticos (barcos) para a remoção de pacientes em consultas médicas, atendimentos de urgência e emergência e no transporte das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) em áreas específicas de programas desenvolvidos pela pasta."

O ministério foi questionado sobre os motivos, apontados pelos especialistas, que explicam a maior dificuldade de preenchimento de vagas nos territórios indígenas, mas a pasta não comentou.

Procurada pela reportagem, a Fundação Nacional do Índio (Funai) preferiu não se manifestar.

Atrair médicos para as regiões mais afastadas do país foi um dos problemas que o Mais Médicos buscou resolver, empregando brasileiros e estrangeiros. Criado em 2013, durante o governo Dilma Rousseff, o programa chegou a trazer para o Brasil cerca de 11 mil médicos cubanos, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Quando o país caribenho decidiu deixar o programa, no mês passado, eram 8,3 mil profissionais atuando aqui.

O Mais Médicos oferece bolsas de R$ 11,8 mil — valor superior, por exemplo, à média da remuneração no Norte e Nordeste para os profissionais da Estratégia de Saúde da Família. Nessas regiões, afirma o Conasems, o salário fica em torno de R$ 10 mil, mas pode variar bastante. O programa também dá uma ajuda de custo que pode chegar ao valor de três bolsas (mais de R$ 35 mil).

No Brasil, 301 dos 529 médicos nos distritos indígenas eram cubanos — 57%, segundo o Ministério da Saúde. Se contabilizados apenas os que atendiam esses distritos pelo Mais Médicos, oito a cada dez médicos vinham de Cuba. A população atendida nos distritos de saúde indígena é de 818 mil pessoas, segundo a pasta.

O médico Arumis Benitez foi um dos cubanos a ir trabalhar na região amazônica. Ele disse que o trabalho foi muito gratificante: "São pessoas que precisam muito mesmo [de assistência médica]". Hoje ele vive no município de Parintins, no Amazonas, está casado, tem dois filhos, e luta para conseguir se manter no país.

De acordo com o Ministério da Saúde, as doenças que mais atingiram os indígenas brasileiros em 2017 foram resfriados, pneumonias, doenças diarreicas agudas e parasitoses. Também há ocorrência de enfermidades crônicas, como AVC, hipertensão e diabetes.

Perfil dos médicos

Além do fator distância, Paulo Basta acredita que a não ocupação das vagas dos distritos indígenas reflete a desigualdade social do Brasil.

“Quem é que tem acesso às faculdades de medicina hoje em dia? Geralmente são pessoas de alto nível socioeconômico, que tiveram uma formação privilegiada. Então as vagas das faculdades são ocupadas pela elite brasileira — elite que não tem nenhum interesse em trabalhar com a questão indígena. Muitos estudantes de medicina são filhos de fazendeiros, produtores do agronegócio, garimpeiros — pessoas que têm conflitos declarados com as populações indígenas e têm interesses econômicos sobre esses territórios”, argumenta.

Para Alessandra Korap, líder indígena da etnia Munduruku da região, a saída dos cubanos é uma perda que a população indígena local vai sentir muito.

“Eles tocavam na pessoa, olhavam no ouvido, na garganta, pegavam na barriga. O que vai acontecer agora? Os médicos brasileiros botam muita dificuldade — falam que não comem aquele peixe, que não comem farinha, que não gostam porque tem muito pinhum [tipo de inseto], que não tem internet, que ele não pagou a faculdade tão cara pra chegar nesse nível”, relata Alessandra.

Carreira

Para Mário Scheffer, fixar médicos em regiões mais distantes vai contra três características da carreira de medicina no país:

– Os médicos costumam ter mais de um emprego.

– Esses profissionais mudam de emprego com frequência, ou seja: não costumam ficar muitos anos no mesmo local. Apesar de o programa não exigir participação mínima, o médico que fica menos de 180 dias no Mais Médicos tem que devolver a ajuda de custo e de deslocamento pagos pelo Ministério da Saúde.

Há pouca preferência pela atenção primária entre os médicos brasileiros, que acabam se concentrando nas especialidades. É o oposto do que ocorria com os médicos cubanos.

"Eu acho que vai ser muito difícil conseguir médicos que possam se fixar permanentemente nesses locais — que, a partir de agora, passam a depender dos médicos brasileiros, e vão ter que conviver com uma rotatividade maior de médicos", avalia Mário.

Apesar de concordar com Paulo Basta que a profissão é elitizada, ele acredita que o isolamento é o principal motivo pelo qual as vagas em distritos indígenas não são ocupadas. "Eu acho que tem a ver com localização, com essa dificuldade com o isolamento, e com esse perfil. Quanto mais isolada, mais de difícil acesso, você vai criando um perfil de médico mais difícil de ser alcançado”, opina.

Na contramão

Esse "perfil mais difícil de ser alcançado" é, justamente, o que o médico Lucas Albertoni, 30, acredita ter. Desde a época da faculdade, no interior de São Paulo, ele já ouvia piadas dos colegas por se identificar com a atenção primária.

"Eu não conheço ninguém que tenha interesse na saúde indígena. Mesmo na faculdade, tem umas piadinhas 'médico de pé descalço'. O trabalho com atenção primária é bem desvalorizado pelos colegas médicos. As pessoas não têm muita noção do que é o indígena, acham que o índio é preguiçoso — o que é absurdo", diz.

Lucas está na atenção indígena desde 2014, quando se formou e foi para o distrito do Vale do Javari, na fronteira com o Peru e a Colômbia. O local foi um dos últimos a ter contato com brancos, segundo o médico. Desde o ano passado, ele atende no Dsei Tapajós. Com a saída dos cubanos, é o único médico no local, mas não está vinculado ao Mais Médicos.

Ele conta que, depois da desconfiança inicial, conseguiu estabelecer uma relação de confiança com as populações dos locais onde atendeu. Para isso, busca, também, respeitar os conhecimentos indígenas ancestrais.

"Tem uma relação de confiança muito difícil de estabelecer entre o branco e o indígena, por conta do histórico que existe de extermínio, genocídio. Mas eles são pessoas extremamente amistosas. Dependendo de como você trabalha, conversa, de como valoriza ou não a cultura deles, eles vão te dando mais abertura. Eu tento valorizar o máximo possível os tratamentos tradicionais. Nunca precisei participar de um parto em cinco anos de saúde indígena", relata.

Entre as doenças mais frequentes, afirma, estão os problemas respiratórios e verminoses, além da malária — que é endêmica na região. Nas comunidades que têm mais contato com as cidades, hipertensão e diabetes também costumam aparecer mais. As condições físicas estão entre as dificuldades de atender na região.

"Quando você está numa aldeia, não tem luz, não tem geladeira. Tem muito mosquito. São as dificuldades de estar na selva — as aldeias são dentro da floresta. Faz muito calor: 40ºC na sombra. A gente não costuma sair muito, porque é complicado. Mas eu não me sentia muito à vontade de trabalhar na cidade — a classe médica é conservadora demais, tem outras questões: de dinheiro, salário", diz Lucas.

Mas… e a língua?

Lucas também se interessou em aprender os idiomas dos pacientes indígenas que atende.

"Com os Kayapó, por exemplo, eu não falo português, só raramente. Isso vai muito de cada pessoa querer ou não aprender a língua. Os Kayapó gostam muito de ensinar o idioma. A maioria dos homens entende e fala um pouco de português. Então a gente vai misturando português com Kayapó e vai se entendendo", conta.

Ele relata que os Kayapó, por terem tido mais contato com brancos, tendem a falar mais português. Já os Korubo, que ele atendeu no Vale do Javari, têm menos pessoas falando a língua, por serem mais isolados.

Segundo o Censo de 2010, existem 305 etnias e 274 línguas indígenas no Brasil. Nas populações que moram em terras indígenas, mais da metade (57%), diz o Censo, fala a própria língua dentro de casa, e não o português.

Para facilitar a comunicação com os médicos, entram em cena os agentes comunitários de saúde indígenas. Uma das funções que eles têm é traduzir a língua local para o português e vice-versa. Para Paulo Basta, coordenador do Mais Médicos no Tapajós, diferenças no idioma não são um problema — mas um desafio adicional.

"Isso confere a qualquer profissional uma oportunidade de crescimento, de desenvolvimento de outras habilidades — de comunicação, inclusive. Os médicos têm um padrão de comunicação muito técnico, rebuscado. Boa parte dos pacientes brasileiros não entende muito o que os médicos falam. Quando você se vê frente a uma situação de atendimento intercultural, tem que desenvolver estratégias de comunicação mais simples", avalia Paulo.

Retrato da Realidade

A médica de família Marina Abreu admite que não conhecia a real complexidade do Brasil até começar a trabalhar como tutora de coordenadores do programa Mais Médicos. No Norte do país, ela conheceu locais que nunca tinham recebido um médico, aonde só se pode chegar após longas viagens em barcos com furos e sem assentos. Ela se emociona ao falar sobre a situação das comunidades que voltaram a ficar sem atendimento após a saída dos profissionais cubanos no último mês.

"O programa vinha avançando e tinha passado da fase de novidade pela chegada dos médicos. Havia projetos em andamento e uma forte adesão aos tratamentos pela população, que criou vínculos com os profissionais. Estavam sendo feitos procedimentos como a colocação de DIU, que é simples, mas não era feito antes por uma série de limitações. O médico já conhecia aquela população e conseguia fazer um trabalho específico."

Visando à reposição dos profissionais cubanos, o governo brasileiro abriu um edital para os médicos interessados em participar do programa. Entre os inscritos, 2.520 (cerca de 30%) não compareceram. Outras 106 vagas do edital sequer tiveram interessados. Elas correspondem a 31 localidades, sendo 23 municípios do Amazonas, Pará, Piauí e Rondônia, além de oito Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), unidades de responsabilidade sanitária federal correspondentes a uma ou mais terras indígenas.

Marina trabalhou até fevereiro deste ano como supervisora de DSEIs no município de Marechal Thaumaturgo, no Acre. Há voos comerciais duas vezes por semana para lá, num avião que comporta de seis a oito pessoas. A alternativa é a viagem de barco, que dura oito horas.

"A maioria dos barcos não tem cobertura ou assento para encostar as costas. É bem precário e toma tempo. No Norte do Brasil, o clima define muito o que dá para fazer. Se chove muito, o rio fica cheio demais e se torna perigoso, pois a correnteza é forte e descem troncos e árvores inteiras que se soltaram. Quando chove pouco, o motor do barco não circula, e aí o barco pode virar porque o rio está barrento. A logística era difícil, complicada, e dá uma ideia de como é complexo fazer o atendimento em áreas indígenas."

Como supervisora, Marina recebia relatos de situações em que não fora possível transportar pacientes para uma cidade maior, com melhor estrutura. Se fosse necessário, os profissionais realizavam partos e suturas, pois não haveria tempo de chegar a um local com condições mais adequadas. Além dessa adequação, o trabalho nas DSEIs também demanda uma compreensão dos costumes da comunidade.

"Estávamos levando a medicina do homem branco para uma área indígena, e isso traz conflitos de medicação. A ideia não era impor a medicina do homem branco, e sim contribuir e colaborar com o que eles já praticam na medicina deles. No caso de etnias com pajés, o médico só entrava na aldeia com autorização dele. Há grupos que não têm o costume de ter banheiro, outras que não têm construções. O médico se adaptava àquilo e fazia o trabalho de orientação, principalmente. Quando necessário, fazia intervenção mesmo, com tratamento medicamentoso, sempre com consentimento ou de forma compartilhada com os pajés e demais lideranças."

As áreas contempladas pelo Mais Médicos na região Norte apresentam um perfil populacional heterogêneo. Além dos povos indígenas, há ribeirinhos, quilombolas e também muitas comunidades de agricultores. No sul do Pará, está localizada a comunidade Vila Estrela, no município de Cumaru do Norte, onde trabalha o enfermeiro Valdir dos Reis. Ele conta que a população local está desassistida desde a saída do médico cubano que lá estava.

"O doutor Humberto García está fazendo muita falta. Nossa unidade funciona de 7h às 11h e de 14h às 17h. Ele cumpria rigorosamente os horários, o que infelizmente não se via entre os brasileiros que passaram por aqui. Nós ficamos de sobreaviso para qualquer eventualidade, qualquer emergência que surgir no período noturno e finais de semana também. A população não precisava mais ir para outras cidades para fazer esse tipo de atendimento, porque aqui tinha."

Com a partida do profissional cubano, Valdir só consegue prestar os atendimentos primários e encaminhar os pacientes para o hospital mais próximo, que fica a 120 quilômetros de distância, sendo 80 quilômetros em estrada de terra. A comunidade conta com uma ambulância antiga, desgastada e pouco confortável. Mesmo serviços mais básicos, como atestados e pedidos de exames, não vêm mais sendo oferecidos.

No edital do governo, foram abertas três vagas para o município de Cumaru do Norte, sendo uma delas justamente na Vila Estrela. Elas haviam sido preenchidas, entretanto os profissionais desistiram após conhecer a realidade do local. Hoje, o Brasil tem cerca de 5 mil médicos especializados em Saúde da Família, para atender a mais de 25 mil unidades de saúde. Marina Abreu, que estudou Medicina em Cuba, destaca a valorização que essa especialidade recebe no país caribenho.

"Antes de fazer outra especialização, todos os médicos que se formam em Cuba precisam fazer dois anos de residência em Saúde da Família. Além disso, o curso é completamente voltado para a medicina de família e comunidade. A disciplina de Medicina Geral e Integral é oferecida em todos os anos. Desde 2014 vem se tentando no Brasil fazer com que essa área seja a principal disciplina do curso, o que é feito desde sempre em Cuba."

Além de prorrogar o prazo de apresentação dos médicos inscritos no edital até a próxima terça-feira, o Ministério da Saúde também estendeu a inscrição até este domingo. Houve picos de instabilidade no site, causados pelo grande número de acessos, o que pode ter ocasionado dificuldades no momento da inscrição. Estrangeiros formados no exterior e sem registro no Brasil também podem participar.

A reportagem entrou em contato com o Ministério da Saúde para indagar se há um planejamento específico da pasta para as áreas mais remotas que não vêm atraindo interesse dos médicos brasileiros. Até o fechamento da edição, não houve retorno.


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