18/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

A violência obstétrica garantida por lei

Publicado em 13/08/2019 12:00 -

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A manipulação de discursos é uma estratégia recorrente em determinadas correntes políticas. Sobre isto, o escritor britânico George Orwell já havia refletido em sua obra-prima 1984, apresentando aos leitores o conceito de novilíngua. O idioma fictício operava pela supressão de palavras ou condensação das mesmas, de modo a restringir as possibilidades do raciocínio humano e, consequentemente, impedir o surgimento de ideias “indesejáveis”.

Diferentemente do modelo proposto por Orwell, a novilíngua verde-amarela baseia-se, historicamente, não na restrição de palavras, mas sim no sequestro de seus significados. 

Aqui, um golpe de Estado que resultou em uma ditadura sangrenta foi vendido como a “Revolução de 64”. E a Reforma da Previdência, que reduzirá a renda dos futuros aposentados e impedirá grande parte dos trabalhadores pobres de obterem o benefício, é anunciada como uma medida que ataca supostos privilégios. 

A manipulação pode ser percebida tanto no micro quanto no macro, seja nas relações econômicas e sociais, seja no campo dos costumes e da moral. Consiste em se dizer uma coisa, quando se faz o exato oposto. Não se trata de simples hipocrisia, como pode parecer à primeira vista. Mas sim de uma clara construção ideológica, no sentido atribuído pelo pensador inglês John B. Thompson, ou seja, de discursos que engendram relações de dominação. 

Nas últimas semanas, a Assembleia Legislativa de São Paulo tem sido sacudida por uma acalorada discussão acerca do projeto de lei 435/2019, que, à primeira vista, soou como um completo absurdo para todos os profissionais sérios que atuam na área de saúde pública. Contudo, o modo como o debate se desenrolou, graças à campanha de desinformação promovida pelos defensores da proposta, serviu para deixar à mostra como opera a manipulação discursiva feita pelos agentes do projeto autoritário que assola o País.

Em seu enunciado, o projeto de lei, de autoria da professora de direito e advogada Janaína Paschoal (PSL), vem repleto de “boas intenções”: “Garante à gestante a possibilidade de optar pelo parto cesariano, a partir da trigésima nona semana de gestação, bem como a analgesia, mesmo quando escolhido o parto normal” – afirma o texto. 

No artigo 1º da proposta, é esclarecido que a cesariana seria eletiva, ou seja, quando a cirurgia não tem urgência e pode ser realizada em data previamente agendada mediante indicação médica. No decorrer do texto, a palavra “autonomia” é utilizada com destaque neste e em outro artigo, que trata da questão da anestesia. O projeto chega ao ponto de determinar a afixação de placas, em maternidades e locais correlatos, com os dizeres: “Constitui direito da parturiente escolher cesariana, a partir da trigésima nona semana de gestação”. 

Por que dizemos que o projeto em questão recorre à mesma manipulação discursiva? Porque, ao mesmo tempo em que afirma defender a autonomia feminina, busca, na verdade, submeter o corpo da mulher a um regramento que não possui qualquer base científica e que, na verdade, parece atender a interesses que são estranhos ao bem-estar físico e mental das parturientes e de seus bebês. 

O modo como a discussão sobre o projeto tem sido feita pelos seus defensores serviu para semear a desinformação entre as pessoas. O texto é claro ao falar em cesárea eletiva, que, conforme citamos acima, seria uma cirurgia realizada com agendamento prévio mediante indicação médica. Porém, em suas falas sobre o tema, tanto a autora quanto seus apoiadores confundem o procedimento com as cesáreas a pedido (cirurgias programadas durante o pré-natal, sem que haja indicação médica) e as de emergência (realizadas quando se observa algum quadro clínico materno ou fetal que a justifique durante o trabalho de parto, portanto, com indicação médica). 

Como é possível falar em autonomia feminina se a cirurgia proposta no texto tem caráter eletivo? A situação se torna ainda mais grave quando notamos que a proposta visa levar esse suposto exercício de escolha para uma situação complexa, que é o momento do trabalho de parto. Em meio a dores das contrações e aos medos e expectativas quanto ao bem-estar do bebê e de si própria, quando a mulher se encontra vulnerabilizada, o exercício da autonomia de que versa o projeto fica extremamente prejudicado. 

Além do mais, para que a escolha de que o texto trata pudesse se dar de maneira consciente, seria fundamental que a parturiente tivesse pleno acesso às informações que lhes permitissem pesar os benefícios e riscos inerentes a cada tipo de parto. Ora, estamos em um país em que 36% das mulheres não recebem os cuidados pré-natais por quatro vezes ou mais durante a gestação, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) referentes a 2015.

Ironicamente, o problema das dificuldades de acesso aos exames pré-natais na rede pública de saúde e mesmo da falta de informação para as gestantes não é abordado pelo PL 435/2019, que diz defender a autonomia das mulheres. 

Quando analisamos os dados sobre mortalidade e morbidade materna e neonatal, chegamos facilmente à conclusão de que o PL 435/2019 não passa de um enorme contrassenso, uma vez que estimula o uso indiscriminado das cesáreas. 

A autora do PL argumenta que as cesáreas eletivas ajudariam a reduzir a morbimortalidade perinatal e que também serviriam para diminuir os casos de paralisia cerebral em bebês. No entanto, a literatura médica reúne estatísticas fortes que desmentem as duas teses. 

No caso da paralisia cerebral em recém-nascidos, estudos recorrentes indicam que apenas 10% dos casos estão relacionados a complicações no parto. Os outros 90% decorrem de causas genéticas ou de alterações ocorridas durante o pré-natal ou após o nascimento. 

No que diz respeito à mortalidade e à morbidade materna ou neonatal, os números apontam uma correlação inversa aos argumentos trazidos pela autora da proposta. Mães e bebês morrem e adoecem mais com o parto cesariano do que com o vaginal. 

O Global Survey da OMS, realizado em 2005 e que pesquisou 290.610 nascimentos (sendo 15.129 no Brasil), constatou que os riscos de complicações graves no parto são seis vezes maiores nas cesarianas realizadas sem indicação médica do que no parto vaginal. 

Segundo o Ministério da Saúde, enquanto a taxa de mortalidade por 100 mil partos realizados em 2011 foi de 7,92, nos partos vaginais, o índice saltava para 18,36 nas cesáreas. Quando se analisa a série histórica, a disparidade torna-se ainda mais alarmante. Exceto pelo ano citado, a taxa de mortalidade nas cesarianas nunca esteve abaixo de 30. Por outro lado, em apenas duas ocasiões, sendo que a última foi em 1997, a mortalidade em partos vaginais superou a taxa de 20 por 100 mil partos.

A simples leitura desses dados deveria jogar por terra qualquer pretensão de se prosseguir com o PL 435/2019. Contudo, ele não apenas segue tramitando em regime de urgência como deve ir para votação sem sequer ter sido analisado pela Comissão de Saúde da Assembleia. 

E pior, seus defensores insistem em apregoar benefícios inexistentes que a proposta traria às mulheres e seus filhos, quando, na verdade, ele acarretará em prejuízos gravíssimos. As taxas de infecção puerperal (no aparelho reprodutor feminino) são três vezes maiores nas cesáreas, em comparação ao parto vaginal. 

As taxas de mortalidade neonatal são 1,67 vez mais recorrentes nas cesarianas do que no parto natural. Além disso, as chances de os recém-nascidos desenvolverem doenças respiratórias são três vezes maiores nas cesáreas, que também apresentam um índice de prematuridade maior (7,78, contra 6,44 no parto vaginal, segundo dados do Ministério da Saúde relativos a 2010). 

Além de todos os impactos na saúde física, temos de considerar também o aspecto emocional, já que a cesárea desnecessária pode interferir no estabelecimento do contato pele-a-pele da mãe com o bebê, logo após o nascimento, e mesmo no início imediato da amamentação. 

É preciso ficar claro que não estamos, de maneira alguma, colocando-nos à priori contra o parto cesariano, que é um avanço de extrema importância alcançado pela medicina e que ajuda a salvar milhares de vidas, quando utilizado de maneira correta e necessária. O que criticamos, sim, é a possibilidade lançada pelo PL 435/2019 de permitir o uso indiscriminado de um procedimento que traz riscos consideráveis às mulheres e aos bebês.  Riscos, estes, que o projeto afirma combater, mas que, na verdade, ajudará a acentuar. 

A OMS preconiza que a taxa de cesáreas ideal de cesáreas deveria ser de 10%, nunca ultrapassando 15%. Na contramão dessa visão científica, somos o país campeão de cesáreas no mundo, com índices superiores a 55,7%, percentual que deve aumentar caso o PL 435/2019 se torne lei. 

Ressalte-se que, se queremos de fato preservar a autonomia e o bem-estar das parturientes e dos bebês, não precisamos recorrer a um novo regramento, ainda mais um tão eivado de incongruências como o proposto por Janaína Paschoal. São Paulo já conta com a lei 15.759/2015, de autoria do ex-deputado estadual Carlos Bezerra (à época no PSDB), que estabelece regras claras para o cumprimento e a garantia dos direitos básicos da gestante, do bebê e do pai, durante toda a gravidez até o pós-parto, em toda a rede pública do Estado de São Paulo.

Dentre os direitos previstos estão o uso de anestesia e de métodos de alívio da dor, durante o parto natural e a construção de um plano individual de parto para a gestante, com apoio de especialistas, no decorrer do pré-natal. Temos, portanto, de garantir que essa lei avançada seja implementada em toda a rede pública de saúde paulista e não acenar para retrocessos, como o PL 435/2019, que tem embutido em si o potencial de trazer conflito para dentro da sala de parto, sem contribuir em nada para a saúde física ou emocional das parturientes e de seus filhos.

Beth Sahão  é deputada estadual, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo


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