29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Memória, presente!

Publicado em 01/08/2019 12:00 -

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No momento em que começou a pesquisar sobre as favelas cariocas, a pesquisadora Sonia Fleury identificou que o conhecimento sobre o assunto era muito fragmentado. Havia muitas pesquisas em áreas distintas, como História, Sociologia, Antropologia, Urbanismo e Geografia, mas havia poucos centros de estudos sobre favelas. Da constatação surgiu a ideia de se produzir um instrumento que pudesse fazer a ponte entre essas disciplinas, a academia e o conhecimento produzido na própria favela, possibilitando a circulação destes saberes, que resultou na criação do “Dicionário de Favelas Marielle Franco”, lançado dia 16 de abril no Instituto de Comunicação e Informação Científica em Saúde (Icict/Fiocruz).

“A intenção não era fazer um dicionário físico, que após o lançamento pudesse acabar”, explicou Sonia no lançamento, quando declarou que a ideia era criar um instrumento coletivo que permitisse que as pessoas pudessem acessar e contribuir continuamente. O dicionário é, na verdade, uma plataforma virtual de acesso público, onde é possível contribuir com a coleção e a produção de informação sobre favelas, de forma aberta. “A plataforma permite a construção coletiva de conhecimento por meio de redes de parceiros já dedicados ao tema na academia e demais instituições produtoras de conhecimentos”, indicou Sonia, coordenadora do projeto.

Em sua versão de lançamento, o Dicionário já conta com informações produzidas por instituições diversas como Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Cevis/Uerj), Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ), Centro de Estudos e Ações Culturais e de Cidadania (Ceacc), Grupo Eco Santa Marta, Instituto Raízes em Movimento e unidades da Fiocruz, como o Icict. Além dessas instituições — que integram o conselho editorial da plataforma —, pesquisadores de outras instituições também contribuíram para a produção do Dicionário.

Resgate da memória

No processo de construção, Sonia percebeu que havia dois tipos de demandas por informação. Em primeiro lugar não havia retorno do conhecimento produzido a partir de entrevistas cedidas por moradores a pesquisadores: “Esse banco de ideias e artigos científicos não volta para os moradores”, disse. Por outro lado, ela identificou um movimento de interesse por temas que resgatam a memória dos lugares que partia de intelectuais nascidos nas favelas — e que continuam morando lá —, onde criaram centros de estudos e museus. “É um resgate da história e da identidade, mostrando o conhecimento real e profundo desses lugares, diferente do conhecimento produzido na academia”, disse a coordenadora. A ideia, segundo ela, é exatamente essa: ser um espaço facilitador e de resgate da memória da cidade e de identidade das pessoas que moram na favela/comunidade. Além disso, defende, é um banco virtual de compartilhamento de informações sobre a favela construído em rede, de maneira interdisciplinar e interinstitucional.

Para Sonia, embora haja grupos que se identificam com o termo “comunidade”, que remete ao espírito e à vivência comunitários, outras pessoas defendem o uso de “favela” por acreditarem que é preciso dar sentido positivo à palavra, muito usada de forma negativa, como em frases que dizem “isso é coisa de favelado”. Ela considera que hoje há uma “reapropriação política” do conceito. “Por isso preferimos usar o termo favela”, pontuou.

O Dicionário é composto de textos, com ou sem imagens, propostos pelos autores na forma de verbetes (textos de cerca de 4.000 palavras). Para contribuir é necessário que a pessoa se inscreva como participante, antes de enviar seu texto. Entre os verbetes estão: Comunidade e Favela, Mutirão da Laje, Rolezinho, Favela Tour, Ethos Militarizado, Domingo É Dia de Cinema, etc.

Favela é cidade

O projeto do Dicionário foi elaborado a partir do 3º Seminário Favela é Cidade, organizado por Fundação Getúlio Vargas (FGV), Cevis e Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), e que aconteceu no Morro Santa Marta, que fica em Botafogo, na Zona Sul carioca, nos dias 26 e 27 de novembro de 2012. Naquele momento, lideranças de favelas foram convidadas para discutir o projeto de implementação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade. No encontro, organizou-se um material didático em vídeo, disponível na rede de compartilhamentos YouTube, sobre o que os moradores das favelas pensam. Dividido em seis episódios, o conteúdo mostra como os líderes encaram temas como Estado, mercado, cidadania, jovens e controle social.
“Já existia essa rede antes da minha entrada”, revela Sonia, destacando a participação de colaboradores diretos como Cleonice Dias, da Cidade de Deus, Itamar da Silva, do Santa Marta e Alan Brum, do Complexo do Alemão, que hoje integram o conselho editorial. Além disso, outros parceiros contribuíram com o trabalho, a medida em que foi evoluindo e foram surgindo necessidades. “Sem contar um pequeno grupo de pesquisadores que lê os verbetes e aciona as comunidades para assessorá-los”, contou ela, assinalando que a plataforma está aberta para a contribuição de visitantes.

Marielle presente

Sonia informou que inicialmente a plataforma foi denominada “Dicionário Carioca de Favelas”, mas que recentemente o grupo resolveu homenagear a vereadora Marielle Franco (Psol/RJ), assassinada em março de 2018, que contribuiu ativamente para a elaboração do material. “Ela participou desde a primeira hora”, explicou a pesquisadora, informando que a parlamentar era uma entusiasta do projeto. “Marielle participou da primeira fase com muito entusiasmo. Nós decidimos homenageá-la não como estratégia de marketing, mas sim como tributo a uma pessoa que nos apoiou desde o início”, argumentou. “Seu assassinato foi uma tentativa de calar a voz que expressava os valores sobre a favela, sobre as mulheres negras, sobre a diversidade de gênero. Temos o mesmo compromisso, e queremos mostrar que Marielle vive por meio do dicionário”.

Marielle Franco, mulher negra, cria do conjunto de favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, nasceu em 27 de julho de 1979. Em 2002 cursou a primeira turma de pré-vestibular comunitário no Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM). Após dois anos conquistou uma bolsa integral através do Programa Universidade Para Todos (Prouni) em Ciências Sociais na Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio). Em 2014, tornou-se mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF) defendendo a dissertação “UPP — A redução da favela em três letras”. Em 2016, foi a quinta parlamentar mais votada da cidade carioca e a segunda mulher com mais votos totalizando 46.502 aos 37 anos de idade. Em 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros quando saía de um encontro de mulheres no bairro da Lapa, no centro do Rio. Até o momento o caso não foi solucionado pela polícia.


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