24/04/2024 - Edição 540

Brasil

Quando o ilegal vira legal

Publicado em 13/06/2019 12:00 -

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O que um garoto que trafica cocaína, uma Hilux e imigrantes nigerianos têm em comum?

Uma equipe de pesquisadores brasileiros parte desses três elementos para traçar uma profunda análise do mercado ilícito no país.

O estudo é publicado hoje na Europa no Journal of Illicit Economies and Development (JIED), uma revista da prestigiosa London School of Economics (LSE): https://jied.lse.ac.uk.

A edição especial sobre o Brasil, bilíngue, trata de mercados ilegais de drogas, assaltos a banco, armas e veículos, mas também de milícias, contrabando, das conexões com mercados lícitos e do nosso modelo de políticas de segurança.

Reflete ainda sobre o sistema de Justiça no Brasil e apresenta experiências práticas na busca por soluções. O volume, coordenado pelos pesquisadores Luiz Guilherme Paiva, Gabriel Feltran e Juliana Carlos, apresenta pesquisas nas áreas de direito e ciências sociais com farto material empírico.

O trabalho de campo durou mais de cinco anos, levando os especialistas aos confins do Brasil, a portos de cargas, às periferias e ao submundo do crime, além de irem a fóruns e tribunais, para descobrir que as fronteiras entre o ilícito e o lícito são turvas.

Um garoto chamado Samuel

O pesquisador Gabriel Feltran, da Universidade Federal de São Carlos e do Centro de Estudos da Metrópole, acompanhou por anos a trajetória de um garoto de uma favela, identificado apenas como Samuel.

Samuel nasceu e cresceu em uma favela de São Paulo. Em uma terça-feira de abril de 2015, aos 15 anos de idade, esse menino negro ganhou R$ 300 trabalhando como vendedor de drogas numa esquina movimentada da zona leste. Após um turno de 12 horas, à meia-noite, foi para casa.

"No dia seguinte, acordou e foi ao shopping mais próximo, inaugurado nos anos 2000 no bojo da política econômica de expansão do consumo popular", aponta Feltran na pesquisa. A estratégia se baseava no endividamento dos mais pobres.

Samuel não tinha dívidas, pagava à vista e em dinheiro. Gastou a diária que recebeu, que equivalia a um terço do salário mínimo mensal de sua avó, em um par de óculos escuros da Oakley. "Era uma promoção, só R$ 275; esses óculos costumam custar R$ 450 ou mais. Com o troco, ainda deu para um sanduíche no Subway e um sorvete no McDonald's", relata o estudo.

O que na véspera era dinheiro sujo, obtido no tráfico ilegal, no dia seguinte se tornava apenas dinheiro, recolhendo impostos e estimulando marcas globais.

Segundo o pesquisador, o consumo é a principal forma pela qual dinheiro sujo vira dinheiro limpo, sobretudo no tráfico de drogas. "As comissões dos vendedores de drogas, em São Paulo, variam de 25% a 50% do valor vendido. Os vendedores do varejo de maconha, cocaína e crack são quase sempre adolescentes, instados ao consumo orgiástico. Não poupam o dinheiro que recebem, inserindo-o, portanto, diretamente nas economias oficiais", diz.

O dinheiro do ilícito movimenta a rede de franquias, a administração do shopping e os governos que tributam o consumo.

Mas existem os que não querem contato com esse dinheiro. Em 2016, quando teve certeza de que o filho tinha virado traficante, a mãe obrigou Samuel a arrumar as malas e ir embora de casa.

Dois anos depois, o rapaz seria baleado por um policial. Sobreviveu. Ficava claro que "as economias ilícitas produzem os bandidos, e a guerra entre polícias e bandidos produz muita violência", aponta o estudo. "O dinheiro sujo de Samuel, ao contrário, tem circulado livremente."

Samuel vive numa família com muitos trabalhadores do mundo do crime. "Sua mãe sabe bem o fim dos favelados que se inscrevem nas atividades ilícitas, o mesmo dos tios e do pai de Samuel: a cadeia ou a morte, mesmo no caso de sucesso econômico."

Mas a prisão ou a morte não interrompem o ciclo do mercado. "Foras da lei como Samuel despertam o chamado social por repressão, e são muitos Samueis jovens, negros, moradores de favela, operadores baixos de mercados ilegais, os que repetitivamente frequentam as prisões e estatísticas de homicídios em São Paulo. No dia seguinte ao da prisão, ou do assassinato deles, há outro trabalhando em seu lugar", dizem os pesquisadores.

A constatação da pesquisa é que, quanto maior a circulação monetária nas economias ilegais, maior o número de postos de trabalho em seus negócios de drogas, armas, veículos roubados, subornos, fraudes e contrabandos.

"Crescem assim possibilidades de empregar outros Samueis, para quem o mercado de trabalho formal se encontra bloqueado. Samuel, é claro, completou apenas o ensino fundamental, com dificuldades; não frequentou bibliotecas, não fala outros idiomas, nem sequer escreve em português com facilidade", destaca.

Hoje, o garoto sustenta uma filha com o dinheiro das economias ilegais que opera, principalmente o tráfico de cocaína no varejo e uma pequena revenda de autopeças, obtidas também via roubo em São Paulo.

"Com o dinheiro do tráfico, Samuel e um amigo negociam motos legais e ilegais e as revendem, além de encomendarem motos roubadas ou legalmente adquiridas, para desmontagem", diz. "Da mesma forma, grandes marcas globais sustentam economias nacionais e mercados internacionais, seus advogados e mesmo suas ações sociais também com dinheiro obtido, entre outras coisas, de economias ilegais. Até pela necessidade de lavar dinheiro, os negócios ilegais quase sempre estão associados a empreendimentos legais. A fronteira legal-ilegal produz assim, de um lado, grandes empresários; de outro, pequenos bandidos e grandes facções criminais", alerta.

Uma Hilux roubada entra em cena

Samuel montou um time com quatro rapazes, todos da mesma favela, para roubar uma Toyota Hilux. Bem-sucedidos no crime, cada um ganhou cerca de R$ 1.000.

"No ano de 2017, foram 1.159 caminhonetes como essa roubadas no Brasil. Considerando que esses carros custam em torno de R$ 180 mil e que quase a totalidade dos 89.790 veículos similares em circulação estão segurados, apenas em indenizações por roubo e furto as seguradoras repassaram aos proprietários mais de R$ 200 milhões. Com esse dinheiro, a grande maioria deles comprou um carro novo, aquecendo as vendas da indústria automobilística", destaca a pesquisa.

Segundo os especialistas, quando um veículo é roubado, rapidamente se torna mercadoria. "Esses veículos acionam de forma direta ou indireta a rota que os leva a três grandes nichos de mercado: o de desmontagem para venda de autopeças, o de revenda de veículos usados e o de tráfico de drogas e armas", dizem.

Num primeiro momento, Samuel e seu time receberam R$ 4.000 para entregar o carro a um receptador –o dono ou um operador de um pátio de desmontagem, de uma oficina mecânica, de um ferro-velho ou de uma loja de autopeças.

Existem os carros que são usados pelos ladrões e que, depois, são abandonados. Mas 80% da frota roubada passa a ser propriedade das seguradoras.

Elas têm, então, algumas opções para fazer dinheiro com esses veículos, minimizando seus gastos com o pagamento da indenização.

Uma delas é levar a leilão, quando "o valor do veículo roubado costuma variar entre 70% e 90% do preço de tabela". "A indenização da Hilux roubada em São Paulo custaria de fato para a seguradora, portanto, de 10% a 30% do valor indenizado", explica a pesquisa.

“Se for vendida por R$ 160 mil no leilão, a empresa terá perdido a diferença entre esse valor e o preço de tabela, descontado o preço pago pelo seguro, ou seja, R$ 36 mil –e não R$ 196 mil, como aconteceria se essa caminhonete não tivesse sido recuperada. Considerando os custos com o leiloeiro e outros, como guincho ou papelada, os gastos podem chegar a R$ 50 mil. Recuperar os carros roubados e furtados é, portanto, um grande negócio para as seguradoras, que investem pesado em tecnologia, rastreadores, equipes de caçadores, gestão e relações com as polícias com esse fim.”– Trecho da pesquisa

Um lucro exponencial dentro da lei

O leiloeiro ganha R$ 10 mil com a Hilux roubada por Samuel e leiloa cem carros por dia. Donos de revendedoras e leiloeiros ganham, cada um, dez vezes mais do que Samuel, que ajudou a roubar esse carro.

"O veículo foi roubado em 40 segundos. Em pesquisa de campo eu vi uma Hilux igual àquela ser vendida, em um leilão paulista, em 30 segundos. O crime de Samuel não compensa para ele –que será mais cedo ou mais tarde preso e terá sua vida arruinada se prosseguir no ramo–, nem para a ordem urbana, muito menos para a vítima e seus familiares. No entanto, para todos os outros atores que ganharam bastante dinheiro com o carro, agindo dentro da lei, o crime compensou muito", afirma Gabriel Feltran.

Outra opção é destinar o veículo recuperado para desmanches e revendas. "Se um veículo é desmanchado no Brasil, as peças revendidas resultam, aproximadamente, em três vezes o preço real de revenda, em média. A caminhonete pode render até R$ 584 mil se recuperada e suas principais peças revendidas", aponta a pesquisa.

“Economias legais e ilegais estão conectadas. A violência urbana é também fruto dessa conexão. A resposta a esse quadro exige esforços do sistema de Justiça, do mundo econômico, do direito e, sobretudo, a mudança de um modelo de segurança que, hoje, foca apenas na repressão dos operadores mais baixos desses mercados.” – Gabriel Feltran, pesquisador

Quando a troca volta a ser ilegal

A Toyota Hilux pode ainda ser levada às fronteiras do Brasil com a Bolívia e o Paraguai. O pesquisador foi até a região e descobriu como veículos são trocados, na região de Cáceres (MT), por algo entre 5 kg e 7 kg de pasta-base de cocaína.

Há até mesmo uma tabela. "A troca de uma moto nova se faz por 1 kg; um automóvel de passeio vale de 1 kg a 3 kg do produto. Cada quilo é vendido na fronteira com a Bolívia por algo como US$ 2.600. Em 2018, isso significaria pouco mais de R$ 10 mil; uma caminhonete Hilux, em dinheiro, valeria, portanto, menos de R$ 60 mil na fronteira", indicou.

Péssimo negócio para o vendedor comum. Mas ótimo para alguém que pagou apenas R$ 4.500 para os ladrões –mais R$ 5.000 ou R$ 10 mil para alguém levá-la à fronteira.

"A Toyota roubada, que significou um investimento de R$ 10 mil a R$ 15 mil pode se tornar 6 kg de pasta-base de cocaína. Depois de preparada, misturada a muitas outras coisas e vendida no varejo, poderia render até R$ 360 mil. É muito dinheiro, por isso há tantos roubos de carro e tanto tráfico de drogas", diz.

Só um outro caminho pode ser mais lucrativo: a exportação. "Em muitos outros portos e aeroportos do país, funcionários são pagos por traficantes para facilitar a passagem de drogas em bagagens de mão, malas despachadas e encomendas. Conhecer esses funcionários, saber como eles operam, quais as dificuldades e potencialidades para o negócio, é algo que se discute no interior da sociedade secreta criminal, da facção, seja ela o PCC (Primeiro Comando da Capital) ou qualquer outra", afirma.

De Santos, no litoral paulista, a droga vai viajar para o exterior. No varejo, vai render de 70 mil euros a 100 mil euros, ou seja, uma média de R$ 380 mil por quilo. Aquela caminhonete pela qual cada adolescente armado recebeu R$ 1.000 para roubar e que virou 6 kg de pasta-base na fronteira, pode, portanto, acionar uma cadeia de trocas que movimenta até R$ 2 milhões.

Outra troca é igualmente perturbadora. Quando um carro de luxo vira pistolas automáticas, fuzis ou metralhadoras, adquiridas no mercado paraguaio, legal ou ilegalmente, e contrabandeadas ao Brasil.

"Perto de quem trabalha nessa escala, os meninos que roubaram a Toyota em São Paulo não são ladrões, nem malandros. São apenas a porta de entrada de uma máquina de produção de dinheiro assustadoramente grande e, em 2018, conectada em escala internacional", alerta o pesquisador.

"Mulas" nigerianas a baixo custo e alto risco

Em outra pesquisa, o acadêmico Corentin Cohen revela o funcionamento da lucrativa rota das drogas entre o Brasil e a África. Escancara o mercado de "mulas" do tráfico em São Paulo e as estratégias das redes criminosas para minimizar perdas, contratando nigerianos a baixo custo.

O número de africanos vivendo no Brasil subiu de mil, no ano 2000, para 30 mil, em 2012. "Os parentes de 'mulas' com quem conversei compartilham da mesma trajetória", conta o pesquisador. "A maior parte dos nigerianos e senegaleses pagaram milhares de dólares para conseguir se estabelecer no Brasil depois de cruzar ilegalmente a fronteira do Equador, onde chegam sem o visto."

Os lucros individuais das "mulas" são muito baixos em comparação ao risco que assumem. "Apesar de ter consciência do que estão fazendo, a maioria desconhece os riscos de prisão e morte, relacionada à implosão das cápsulas de droga dentro do organismo", aponta.

Ao serem contratadas pelo tráfico, elas devem trazer malas de terceiros ou esconder a mercadoria na própria bagagem. "Como pagamento, recebem a viagem de retorno ao seu país, mais US$ 1.000. O 'modelo de negócios' por trás dessa atividade demanda a contratação de muitos indivíduos devido ao alto risco de serem descobertos", diz. Para cada carregamento, os agentes que contratam os serviços de "mulas" lucrariam cerca de 8.000 euros.

Ao longo dos últimos anos, a frequência dessas mulas foi tão elevada que agências da ONU contra o crime forçaram companhias aéreas a descontinuar voos entre São Paulo e a África Ocidental para reduzir o tráfico.

De acordo com a pesquisa, dados da polícia no aeroporto de Lagos, na Nigéria, mostram que, durante os primeiros seis meses de 2015, 75 pessoas foram presas enquanto saíam ou chegavam ao aeroporto. Quinze apresentavam documentos com endereço em São Paulo, a maioria no centro da cidade ou na zona leste.

A constatação de Cohen é que empresários criminosos passaram a ocupar um papel de "maior proeminência e parecem ter ampliado sua participação, figurando agora como importantes subcontratados para empresários brasileiros e envolvidos com o PCC".

Cohen ainda destaca como o desenvolvimento de mercados transatlânticos de drogas entre Brasil e África conta com proteções de alto nível dentro dos Estados.

Internamente, a luta pelo controle dessas portas de saída passaram a ser evidentes no Brasil. "PCC, FDN (Família do Norte) e CV (Comando Vermelho) competem pelo controle dos principais portos e entrepostos de distribuição do país", diz o pesquisador.


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