25/04/2024 - Edição 540

Especial

A homofobia em dez histórias

Publicado em 10/06/2019 12:00 -

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No início da madrugada da segunda-feira 4 de março, o artista visual e professor de artes Felipe Barros da Silva, conhecido como Fel Barros, de 31 anos, perdeu-se do namorado e de uma amiga que os acompanhava no Carnaval de rua no Rio de Janeiro, na Lapa, área da antiga e de parte da nova boemia carioca. Decidiu voltar sozinho para casa, em Niterói, município vizinho ao Rio. Ao desembarcar no terminal de ônibus localizado no centro de sua cidade, vestindo apenas sunga e purpurina, ouviu provocações de três rapazes de cerca de 1,90 metro de altura: “Veado tem de morrer”, “Tem de bater mesmo”.

Ao correr do trio, tropeçou. Antes da queda, cobriu o rosto. Caído, começou a ser chutado na lateral esquerda do corpo. Acordou de manhã, “sujo de sangue”, no hospital. “Meu lado esquerdo estava todo machucado. Passei dias sentindo dor na cabeça. Não sentia meu rosto. Parecia que estava dormente e a dor estava ali. Meu nariz ficou torto. É uma das sequelas. Passei uns dois dias sem conseguir abrir o olho direito”, disse. Estava também sem a carteira, os documentos, o telefone celular e a memória dos últimos acontecimentos. “A memória foi voltando. Mas não voltou toda”, contou. “Me bateram muito. Tive de fazer radiografia na cabeça.”

Barros dirigiu-se à delegacia de polícia no mesmo dia. “Assim que eu cheguei estavam rindo de mim. Isso aconteceu no hospital também”, disse. No Instituto Médico-Legal, contou, não foi diferente. “Foi um total descaso, parecia que ninguém queria trabalhar.” O legista responsável negou-se a escrever no laudo que Barros tinha tido um corte na cabeça. O artista visual dispôs-se a lhe mostrar os pontos. “Você está maluco, eu não vou tocar no sangue de ninguém”, disse-lhe o legista. (Não é preciso muito para compreender o subtexto.)

O namorado, de quem havia se perdido na noite anterior, “teve de correr na Lapa, porque também foi provocado”. Mas conseguiu escapar, contou.

Foram três semanas até que Barros se reabilitasse — mas não por completo. Além da dor de cabeça e do olho direito fechado pelos hematomas, precisou dormir de lado por um bom tempo, em virtude da dor. Hoje faz acompanhamento psicológico para controlar a ansiedade e o pânico decorrentes da agressão. “Ainda não estou totalmente regenerado. Meu rosto parece que não é mais o mesmo. Tem marcas em meu rosto ainda. Talvez só eu perceba.”

Na quarta-feira 27 de fevereiro, por volta das 12h30, o estudante de jornalismo Luiz Otávio Crisóstomo de Moraes, de 20 anos, estava sentado no último banco de um ônibus que saía da Avenida Paulista em direção à Avenida Brigadeiro Faria Lima, onde trabalha, na Zona Sul de São Paulo. A seu lado, estava sentado um rapaz que ele não conhecia e uma amiga que estuda e trabalha com ele, com quem conversava enquanto mexia no celular. Um rapaz negro, alto, de cabelos raspados, casaco branco e mochila preta chegou e jogou a mochila a sua frente. A amiga temeu um assalto. Não era assalto: Moraes levou um soco na altura do nariz e foi chamado de “veado”. “Quando fui olhar, veio outro soco, no olho direito.” Depois do segundo soco, seguiram novas agressões verbais, que duraram cerca de quatro minutos. Entre as ofensas e acusações estava a de “proliferador de doenças”.

Dentro do ônibus não houve reação. O rapaz ao lado de Moraes perguntou se ele conhecia o agressor. “Um outro moço mais à frente tentou pegar o celular para gravar e o agressor foi para cima dele.” O agressor desceu no ponto seguinte. Luiz Otávio, no ponto do trabalho. Foi atrás de gelo e pomada. Não prestou queixa. “Por insegurança minha de como eu seria atendido.”

A casa noturna Verdant fica na esquina de uma rua no centro de Curitiba onde não é permitida a entrada de carros. Em frente à casa, no início de uma madrugada no começo de 2018, o gerente de produtos Guilherme B., hoje com 28 anos, aguardava seu Uber. O carro estava próximo quando “um cara meio ‘marombinho’, de boné, jovem, alto, fortinho” o pegou pelo braço. No espanto, Guilherme perdeu o equilíbrio e foi arrastado, “meio cambaleando”. O rapaz, segundo Guilherme, gritava que sabia que ele “era veado e ia fazer o que gostava”. “( Disse que ) ia enfiar todas as coisas que ele encontrasse no caminho até eu morrer”, contou Guilherme.

Os dois passaram por uma barraca de cachorro-quente. Guilherme gritou pedindo ajuda enquanto o rapaz dizia que ia matá-lo. “Todo mundo continua vivendo sua vida.”

Ao firmar o pé no chão, Guilherme conseguiu soltar o braço, empurrar o rapaz e sair correndo. O agressor o perseguiu dizendo que Guilherme “ia voltar com ele, que não ia escapar dele”. O segurança da casa, segundo Guilherme, assistia à cena à distância. Ao aproximar-se do segurança, avisou: “Esse cara está querendo me agredir”. Resultado: “Ele também não fez nada”. Quando o Uber chegou, Guilherme correu para o carro e foi embora.

Poucos meses depois, em São Paulo, em um fim de semana, no começo da tarde, Guilherme caminhava em direção à estação Vergueiro do metrô quando um homem atrás dele começou a gritar que ele era “um mal para a sociedade” e que “não deveria existir”. Atirou-lhe latas e outros objetos. Guilherme chegou a salvo ao metrô. Na rua, durante a agressão, as pessoas “fingiram demência”, descreveu.

Guilherme — que nasceu em Curitiba e vive em São Paulo há cinco anos — conta que a convivência com a agressão é, em seu caso, intrínseca à vida como gay. “Bullying no colégio era diário. Não podia usar o banheiro enquanto alguém estivesse lá porque seria trancado. Ia para o intervalo e, quando voltava, minha mala tinha sumido, jogavam minha mala no lixo. Levantava para ir até a lousa e as pessoas ficavam gritando ‘veado’, ‘bicha’.” É bom frisar: ele não considera que “veado” seja uma ofensa.

A violência, os homicídios e a discriminação contra LGBTs vêm crescendo desde 2011, ano em que o Disque 100 — serviço 24 horas criado para acolher denúncias relativas a agressões a crianças e minorias políticas — criou um canal de atendimento exclusivo.

Em 2011, houve 1.159 denúncias e 2.353 violações cometidas contra LGBTs. A diferença entre o número de denúncias e violações ocorre porque um cidadão pode reportar mais de um tipo de violação na mesma ligação. Em 2017, foram 1.720 denúncias e 2.998 violações. A maior parte das denúncias refere-se a discriminação, violência psicológica e violência física, com destaque para os maus-tratos e a lesão corporal.

Também em 2011, o Disque 100 registrou cinco denúncias de homicídio. Em 2017, foram 193 casos. Ao longo de todo esse tempo, houve apenas um ano de decréscimo — de 2014 (35) para 2015 (28). No primeiro semestre de 2018, foram 85 homicídios, o equivalente a todo o ano de 2016. Os números do segundo semestre do ano passado e do primeiro semestre deste ano deverão ser divulgados no fim deste mês, de acordo com a “previsão” do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

A ausência de uma legislação específica para a homofobia e a transfobia não se dá por falta de projetos de lei. Existem quatro voltados à criminalização da homofobia e transfobia parados na Câmara dos Deputados. O primeiro projeto de lei nesse sentido, apresentado na Câmara em 2001 pela então deputada Iara Bernardi (PT) e aprovado foi arquivado pelo Senado em 2015, após oito anos parado. “No Legislativo essas coisas não avançam porque, desde 1988, o que a gente vê é o Legislativo dominado por uma bancada fundamentalista. Eles conseguem coibir qualquer discussão que não interesse a eles”, afirmou o professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Renan Quinalha.

A questão — como aconteceu no caso da união homoafetiva, em 2011 — foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Em fevereiro, a Corte começou o julgamento de duas ações nesse sentido. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), de autoria do Partido Popular Socialista (PPS), com relatoria do ministro Celso de Mello, “para o fim de obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima”. E o Mandado de Injunção (MI) 4.733, feito pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros para “a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia”, com relatoria do ministro Edson Fachin. Os dois ministros votaram favoravelmente ao reconhecimento de omissão por parte do Congresso e de criminalização da homofobia e da transfobia nos termos da lei que define o crime de racismo, conforme o projeto arquivado pelo Senado. Os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso votaram no mesmo sentido.

O julgamento — suspenso após quatro sessões — foi retomado no dia 23 de maio, quando o STF formou maioria nesse sentido com os votos da ministra Rosa Weber e do ministro Luiz Fux. No dia anterior, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou dois projetos de lei para punir a homofobia e a transfobia nos mesmos termos do racismo. Apesar da aprovação na CCJ, a maioria do STF optou por seguir com o julgamento da omissão legislativa. O ministro Celso de Mello defendeu a continuidade do julgamento, alegando que são “30 anos, se contarmos da vigência da Constituição, ou mais de 18 anos, a contar da proposta legislativa apresentada pela deputada Iara Bernardi (PT) para criminalizar essas condutas”. O PL aprovado pela CCJ do Senado Federal precisa, ainda, passar por uma nova votação na comissão por ser um substitutivo e, se não houver pedido para análise do plenário, terá de ser aprovado na Câmara dos Deputados para ser sancionado pelo presidente da República. Ou não.

O julgamento será retomado na sessão de 5 de junho, quando devem votar os outros cinco ministros. “Ainda que seja crítico da criminalização como caminho, nesse momento é muito simbólico”, disse Quinalha, para quem o STF deve funcionar como um contrapeso ao Executivo no que diz respeito aos direitos LGBT. “Quem vai dar a última palavra é o STF.”

O professor da Unifesp — autor do livro História do movimento LGBT no Brasil — não acredita, porém, que possa haver um “efeito prático muito animador” com a criminalização. “O efeito penal é muito restrito. Vai demorar um tempo ainda para o sistema de Justiça assimilar essa decisão”, afirmou.

Em 2005, Thais Moysés, então com 18 anos, frequentava à noite um cursinho preparatório ao Programa de Avaliação Seriada (PAS) para ingresso na universidade. Em outubro daquele ano, começou a namorar uma garota, à época com 17 anos. A mãe da garota soube do namoro da filha da seguinte maneira: “Um dia a irmã mais nova chegou em casa contando para a mãe que a irmã estava andando com a ‘sapatão do cursinho’”, disse Angela Moysés Nogueira Rodrigues, de 56 anos, aposentada, moradora de Brasília, casada há 33 anos e mãe de duas meninas: Thais, de 31 anos, e Tatiana, de 29.

A mãe da garota não admitiu o romance. Entrou no cursinho e partiu para cima de Thais, segundo Angela. Ela tentou defender a filha — que, em 2003, havia sido apedrejada por três garotos em Taguatinga, perto do ponto onde tomaria o ônibus de volta a Brasília. “Fiquei de cara com a senhora. Ela falou tudo que sentia. Ela disse que eu não era mãe, porque ‘mãe não pare uma aberração’.” E concluiu: “Enquanto minha filha não morresse ela não ia sossegar”.

Tentou abortar o romance de diversas formas, ao longo de “três, quatro meses”, segundo Angela. Pela via judicial, acusando Thais de pedofilia e, depois, de aliciamento de menor. Sem sucesso, “jogou um carro em cima da calçada, na porta do cursinho, para tentar atropelar minha filha”. Thais conseguiu se afastar do carro. O cursinho resolveu expulsar a namorada e sua irmã, o que Angela tratou de evitar. “Ela ( a mãe ) ia ficar mais irada e, sabendo onde minha filha estava, ela ia matar a Thais.” Angela tirou a filha — hoje socióloga, mestra em design e adestradora e criadora de cães — do cursinho.

Na esquina da Rua Maria Antônia — aquela dos conflitos entre a direita e a esquerda em 1968 — com a Rua da Consolação, em São Paulo, o músico e cineasta Celso Sim, na época com 37 anos, despediu-se de um amigo com um selinho. Era abril de 2007, uma noite de quarta-feira, um dia triste para eles: o fim de um projeto de espetáculo musical que planejavam havia algum tempo. Vida que segue, Sim seguiu Consolação abaixo, na direção do Teatro de Arena, a poucos metros. Na altura do Minhocão, olhou para trás. Viu um homem muito alto, muito jovem, com o cabelo todo em pé, vestido de preto perto dele. Andou rápido. O rapaz andou mais rápido ainda. Quando achou que tinha escapado, deparou com o homem a seu lado, que lhe perguntou: “Tem um real?”.

O pedido foi seguido por um golpe lateral na perna direita de Sim, que o fez cair. Com a mão esquerda, o homem pegou sua cabeça e colocou seu rosto de frente para o poste. “Tinha muita gente na rua. Ninguém falou nada, ninguém me deu a mão.”

Na falta de apoio, Sim virou-se por conta própria. “Quando coloquei os óculos, vi que estava sangrando. O cara que me agrediu olhou para trás e disse: ‘Sua bicha’. Saiu andando muito devagar, olhando para trás, e entrou em um bar na esquina da Rua da Consolação com a Rua Araújo.”

Dois anos mais tarde, numa noite de 2009, Sim havia saído de um sarau na casa de um amigo. Recusou uma carona. Descendo a Avenida Angélica, viu que era acompanhado por um homem de meia-idade, calvo, barriga saliente, vestindo calça e camisa sociais, com uma pastinha de couro na mão. Ao atravessar a avenida, o homem se aproximou e disse: “Tem um real?”.

Dessa vez Sim teve tempo de dizer: “Não”.

“Sua bicha, seu filho da p…”. Sim reagiu e o homem avançou para agredi-lo. Sim fugiu para uma drogaria próxima. O homem entrou, e o acusou de ter tentado assaltá-lo.

Três anos mais tarde, em 2012, Celso caminhava de mãos dadas com um namorado pela Praça Roosevelt, um dos principais centros teatrais de São Paulo, espaço que, teoricamente, congrega parte da diversidade paulistana. Viu um homem careca, vestido de paramilitar, conversar com dois garotos que seguravam o skate de pé. “Tem de bater, tem de dar porrada”, dizia o homem.

Passado um ano e dois meses, em 2014, um rapaz foi assassinado na Rua Frei Caneca, a rua gay de São Paulo. Estava com dois amigos que conseguiram escapar. A causa da morte: golpes de skate.

Era fim da madrugada, início da manhã, dezembro de 2017. O Uber que deixaria o professor de educação física Valter Biscaia da Silva Filho, hoje com 30 anos, parou do lado oposto a sua casa, em frente a uma praça no centro de Curitiba. Silva Filho, seguro de que não haveria nenhum risco, desceu ali mesmo. “Foi o tempo de eu descer do carro e a pessoa me chamar: ‘Ei, veado’”, contou. Puxado pelo braço por um rapaz de cabelo castanho e pele branca, levou um soco na cara. Vieram outros dois rapazes — um deles, em sua descrição, “uma pessoa muito grande”. Agachou-se e tentou proteger o rosto com os braços. “A partir desse momento em que eu me agachei eles começaram a me chutar, me deram vários chutes, meu celular caiu do bolso, um dos meninos pegou meu celular.” Agredido, não suportou. “Apaguei, desmaiei.”

Ao acordar, por volta das 8 horas da manhã, no meio da praça, algumas pessoas relataram que haviam visto a agressão, “mas não quiseram chegar perto”.

Chegou à casa em que vive com a irmã, segundo descreveu, com o ombro deslocado (até hoje não tem movimento bom do lado direito), o olho roxo, um corte mais profundo na sobrancelha direita e um na bochecha esquerda.

Foi para o hospital, levado pelo pai. De lá, para a delegacia, onde ouviu: “Esse tipo de coisa a gente nem corre atrás”.

Naquela semana, duas amigas de Silva Filho foram agredidas ao sair de uma balada para pegar o carro.

A história de Eliezer Silveira Filho, hoje com 35 anos, em uma multinacional do setor de tecnologia começou “muito positiva”. Era 2011. “Falei de minha orientação sexual e a empresa, a princípio, não tinha nada contra isso.” Diretor de marketing para a América Latina, ele respondia diretamente ao CEO global e fundador da empresa. Nas horas vagas, passou a militar. “Comecei a perceber que isso começou a gerar incomodo dentro da empresa.”

Em junho de 2017, em um evento aberto ao público, já fora do estande da empresa, cumprimentou o marido com um selinho. Duas semanas depois, foi chamado na sala do CEO global. Inquirido de maneira agressiva, segundo afirmou, por esse beijo rápido no marido, viu-se “chocado, acuado” e lembrou ao patrão que “ele mesmo cumprimentava a esposa, dentro da empresa”, com um selinho. “Ele nem viu nada, falaram para ele. Veio me ameaçando, até que uma hora eu falei que era passível de processo e ele parou”, disse.

Silveira Filho escondeu a história do marido. Teve depressão, “medo de trabalhar” e esofagite aguda, que o levou a uma cirurgia em dezembro de 2017. Dias piores ainda estavam por vir.

Em outubro de 2018, os grupos de WhatsApp da empresa viraram uma arena de memes e mensagens de apoio a Bolsonaro. O então diretor de marketing reagiu. “Pedi num dos grupos para que aquele espaço não fosse usado para aquilo. Era um espaço profissional, e eu não queria entrar nesse tipo de debate.”

A caminho da votação no primeiro turno, com uma bandeira LGBT no pescoço, ouviu de um grupo de eleitores que eles haviam votado em Bolsonaro para matá-lo.

Na segunda-feira seguinte ao primeiro turno, foi chamado, novamente, pelo CEO, que questionou o pedido de que não houvesse debate político na empresa e criticou seu ativismo na vida pessoal. Com a eleição de Bolsonaro, voltaram as piadinhas via WhatsApp. Silveira Filho pediu, novamente, que respeitassem o espaço. O CEO chamou-0 para uma reunião na segunda-feira 29 de outubro. Foi avisado de que não faria mais sentido continuar na empresa. Deixou-a no dia 1º de novembro. A empresa propôs que “aceitasse um acordo, e não uma demissão”.

Ficou cinco dias internado por causa de tudo que tinha acontecido. “Ainda estou me reconstruindo.”

Em maio de 2002, a pouco mais de seis meses do fim de seu governo, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) recebeu, pela primeira vez, lideranças do movimento LGBT. Em defesa da união civil de casais homossexuais — naquele momento a principal pauta LGBT —, FHC balançou a bandeira com as seis cores do arco-íris, símbolo do movimento. O projeto de lei tramitava na Câmara havia mais de seis anos e era de autoria de Marta Suplicy, à época filiada ao PT.

O gesto do presidente provocou reações. Em sua terceira legislatura, o hoje presidente Jair Bolsonaro — então filiado ao Partido Progressista Brasileiro (PPB, que viria a ser o PP) — colou na porta de seu gabinete na Câmara dos Deputados uma foto de FHC com a bandeira e a legenda “Eu já sabia…”, assim, com reticências. Questionado sobre o que “já sabia”, Bolsonaro disse que sua intenção era “tirar sarro” e que “se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”.

Em 2010, no final de sua quinta legislatura, Bolsonaro subiu à tribuna da Câmara para opor-se ao projeto Escola sem Homofobia, que estava em processo de elaboração na Câmara. O hoje presidente afirmou, na época, que o projeto era voltado a crianças e pretendia doutriná-las a ser homossexuais. “( ) Atenção, pais: seus filhos vão receber no ano que vem um kit. Esse kit é um estímulo ao homossexualismo, à promiscuidade. ( ) Dá nojo! Esses gays, lésbicas querem que nós, a maioria, entubemos como exemplo de comportamento sua promiscuidade.” A cartilha — apelidada e popularizada por Bolsonaro como “kit gay”, mentira que levou oito anos para ser desfeita — visava combater a homofobia em âmbito escolar e era voltada a pré-adolescentes e estudantes do ensino médio.

Em maio de 2011, a então presidente Dilma Rousseff (PT) mandou suspender o projeto, para manter o apoio da bancada evangélica. Na ocasião, a presidente ecoou as palavras de Bolsonaro: “Não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”. Também por pressão da bancada evangélica, o governo Dilma suspendeu, em 2012, uma propaganda voltada à população LGBT para prevenção e combate ao HIV/aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) — num momento em que os casos de aids já subiam entre os jovens, sobretudo aqueles do sexo masculino que fazem sexo com outros homens (os chamados HsH). Em maio de 2019, o governo Jair Bolsonaro fundiu o Departamento de ISTs, Aids e Hepatites Virais a outro departamento, criando o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, também voltado ao combate à tuberculose e à hanseníase.

Com a repercussão no combate ao Escola sem Homofobia, Bolsonaro passou a ser presença constante em programas televisivos e em vídeos na internet, em que afirmou que “se eu for presidente, ( os gays ) vão ter dificuldades”, que “se o filho começa a ficar meio gayzinho, leva um coro e muda de comportamento” e que seus filhos não seriam gays porque “tiveram uma boa educação” e “um pai presente”. E disse que, “entre um sangue meu e o de um homossexual”, alguém que, eventualmente, precisasse de doação de sangue escolheria o dele. (Há controvérsias.)

Já pré-candidato, gravou um vídeo para a página Gays de Direita, no Facebook, em que disse que “todos nós tomamos café com leite, comemos arroz com feijão e, na intimidade, cada um cuide da sua vida”. Na reta final do primeiro turno, em 4 de outubro, prometeu que os “homossexuais serão felizes” em seu governo. Enquanto isso, as redes bolsonaristas no WhatsApp proliferavam notícias falsas sobre o “kit gay” e sobre uma mamadeira com bico de pênis que seria distribuída às crianças em um eventual governo de Fernando Haddad (PT), ministro da Educação na época em que se discutia o Escola sem Homofobia.

Em 2 de outubro de 2018, às vésperas do final do primeiro turno das eleições, por volta do meio-dia, o arte-educador Ricardo de Macedo Withers, de 30 anos, atravessava uma faixa de pedestres da Rua Voluntários da Pátria, uma das mais movimentadas de Botafogo, na Zona Sul do Rio, quando desviou, num ímpeto, de um carro que havia furado o sinal vermelho em sua direção. “Como ele reduziu bruscamente a velocidade, achei que ia me bater”, contou Withers. A intenção, no entanto, era outra. “Era para matar, ô veado”, gritou o motorista, um homem moreno e de barba, segundo seu relato.

O arte-educador já havia sido vítima de violência. “Um dos casos mais graves foi na quinta série. Um rapaz do terceiro ano me imprensou na parede e ameaçou me bater”, contou. O caso recente, porém, o levou a ter crises de pânico. “Demorei para sair de casa novamente sozinho.”

O estudo Violência contra LGBTs+ nos contextos eleitoral e pós-eleitoral , realizado em janeiro de 2019 entre 400 pessoas em São Paulo, Rio e Salvador verificou o estado de percepção da violência contra LGBTs+ (incluem-se no “+” heterossexuais que são vítimas de violência por ser confundidos com gays ou lésbicas). O arco de tempo da pesquisa era o período eleitoral e o período imediatamente posterior às eleições. Do total de entrevistados, 51% afirmaram ter sofrido violência; 75% dos gays afirmaram aos pesquisadores ter percebido um aumento da violência contra seu grupo durante as eleições e 49% afirmaram ter sido vítimas de violência. Entre as lésbicas, 76% afirmaram perceber um aumento da violência e 57% afirmaram ter sido vítimas. De acordo com a pesquisa, 86% dos agressores eram desconhecidos e 44% integravam partido ou grupo político e 83% das agressões foram nas ruas e em espaços públicos. A violência verbal, o assédio moral e o tratamento discriminatório foram os casos mais reportados. Em 47% dos casos a violência aconteceu “mais de três vezes”. “Essa recorrência mostrava que não era mera casualidade”, afirmou o antropólogo Lucas Bulgarelli, um dos responsáveis pela pesquisa.

Segundo Bulgarelli, a pesquisa buscou identificar se havia uma efetiva violência nascendo nesse contexto eleitoral, além da “costumeira violência LGBT” no Brasil. A resposta é “sim”. O pesquisador afirmou que a violência contra LGBTs no período eleitoral, ao contrário do que ocorre usualmente, deu-se “à luz do dia, em lugares centrais, na Praia de Copacabana, no centro de São Paulo, locais que costumam ser receptivos, em alguma medida” e atingiu “pessoas que não necessariamente sofrem violência LGBT.” Era recorrente, contou, “o emprego de gestuais simulando armas nas ruas”, além de casos de “pessoas que foram expulsas de transportes públicos ou privados, de mau atendimento em comércio e serviços, de segurança que bateu em LGBT, havia um conjunto grande de violência”.

Um levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo em janeiro mostrou que entre agosto e outubro de 2018 triplicaram os registros de crimes relacionados à intolerância no estado de São Paulo. Enquanto no primeiro semestre o número de registros diários foi de 4,7, nos três meses da campanha eleitoral foram 16 registros por dia. O ápice foi justamente em outubro, com 568 registros (cerca de 18,9 por dia) — em outubro de 2017 foram 159 registros (cerca de 5,3 por dia). “Houve um contexto político proporcionado pelo discurso das candidaturas de extrema-direita que propiciaram um cenário permissivo para a incidência dessas violências. ( As pessoas ) se sentiram estimuladas a passar da palavra ao ato.”

Logo após as eleições de 2018, o artista argentino Esteban Hezkibel, de 31 anos, morador da região central em São Paulo, estava tomando umas cervejas com o ex-namorado no Minhocão. Na hora de ir embora, os dois se abraçaram. Um grupo de cerca de cinco “moleques” — magros e de estatura mediana — se aproximou. “Eles vieram com ‘muita atitude’ para cima da gente”, contou. Praticante de artes marciais, Hezkibel conseguiu dispersá-los com arremessos de chutes e socos pelo ar. Quando achou que a situação havia se tranquilizado, deu as costas para encontrar-se com o ex-namorado — que estava na entrada do Minhocão. “Eu virei as costas, fui me encontrar com meu ex e, quando estava indo, o mais baixo deles deu um soco em mim por trás”, lembrou.

Nascido em Mendoza, cidade com 120 mil habitantes a quase 2 mil quilômetros de Buenos Aires, o artista nunca havia sofrido nenhuma tentativa de agressão, mas sim “violência verbal”. Afirma que a homofobia verbal é uma constante no cotidiano. “E é uma coisa que nem se questiona.”

Na noite de 1º de novembro de 2018, dia de Todos os Santos, logo após o fim das eleições, o estudante de teatro Gabriel Batista, de 21 anos, estava de malas prontas para viajar. Voltaria no dia seguinte, 2 de novembro, Dia de Finados, para Criciúma, Santa Catarina, onde morava para cursar faculdade. “Ele dizia que não conseguia ficar longe do teatro”, disse a mãe, Marcia Batista, de 45 anos, evangélica, cozinheira, moradora de Cascavel, Paraná, onde o filho a visitava. “Nessa noite nós conversamos muito, ele me deu uns conselhos, mandou eu ser feliz, mandou fazer um corte de cabelo diferente, que ainda não fiz, mandou eu pintar o cabelo de vermelho, ‘Ah, meu filho, a mãe não vai ter coragem de pintar o cabelo de vermelho’. Eu abençoei a vida dele e fui dormir.”

Enquanto a mãe dormia, Gabriel, o caçula de seis irmãos, disse para Luana, sua irmã, que sairia e voltaria logo. Deixou celular e documentos na estante. Na manhã seguinte, Marcia notou a ausência do filho. “O Gabriel saiu?” A irmã disse que ele havia saído à noite. “Ele não voltou?”

A notícia veio às 10 horas da manhã: Gabriel estava morto.

Na noite anterior, o rapaz havia caminhado poucos metros. Seu corpo, segundo a mãe, fora encontrado “na calçada de uma loja, um lugar bem movimentado, um lugar que tem mercado, tem loja”. Passantes o viram conversar com um “homem, alto, louro”, tudo leva a crer que eram conhecidos.

A causa da morte foi uma facada, “que atingiu o coração”. A morte não foi imediata. Gabriel teve tempo, ainda, de pedir socorro a uma jovem que passava de moto. A jovem achou que seria assaltada. Passado o susto, foi buscar ajuda. O estudante foi atendido no local, mas morreu antes de ir para o hospital.

Segundo Marcia, a faca, que ficou no local, não tinha impressões digitais, por causa da chuva. As câmeras do comércio tampouco registraram o crime — não estavam funcionando direito. O caso segue em investigação. “Tenho ido lá quase toda semana. Eles dizem que têm uma linha de investigação. Isso que é muito triste. Já era para a pessoa estar presa. Tudo que eu quero é justiça. É mais uma morte, um assassinato que acontece e vai ficar por isso mesmo. Eu quero justiça. A vida dele foi interrompida.”

Com a morte do filho, Marcia teve “um momento de depressão, de tristeza, de angústia”. “Com fé em Deus consegui me levantar, quero fazer a diferença, quero mudar por ele. Ele odiaria me ver jogada numa cama, triste. Era um menino-sorriso.” Entre as mudanças empreendidas por Marcia, com o filho mais velho, está a abertura de uma igreja evangélica. “Na outra igreja havia muita hipocrisia”, disse. “Nós vamos receber as pessoas como elas são. Livre de opressão, livre de hipocrisia, se sentir um desejo de mudança não vai ser o pastor que vai ficar te condenando. A maioria não julga, já condena. Isso é coisa que nós não vamos aceitar.”

A luta para seguir em frente, no entanto, não torna menor sua dor e os questionamentos: o tal do “e se?”, que sempre acompanha a vida que segue diante da morte e da tragédia. “Se eu pudesse ter evitado, agarrado ele, poderia ter dado um último abraço, um último conselho. Não está sendo fácil. É olhar as fotos dele na estante, é ver uma vida” — 476 vidas, entre 2011 e o primeiro semestre de 2018.


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