29/03/2024 - Edição 540

Brasil

O perigo da capitalização

Publicado em 06/06/2019 12:00 -

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Pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) revelou que a maioria dos brasileiros não conhece o texto de reforma da Previdência (Proposta de Emenda à Constituição 6/2019) que está em discussão na Câmara dos Deputados: 31% dos 2 mil entrevistados pelo Ibope em 126 municípios, em abril, não sabiam nada sobre o conteúdo e 23% sequer estavam informados de que o governo Bolsonaro apresentou um projeto. Em comparação, 6% afirmaram ter conhecimento amplo e outros 30%, conhecer os principais pontos. Entre esses que se consideravam informados, 51% eram contra a proposta e 39%, a favor.

Em palestra no Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em 10 de maio, no campus da Fiocruz no Rio de Janeiro, Maria Lucia Fatorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, associação que estuda o endividamento público brasileiro, foi voz contrária à PEC 6/2019. Para ela, o texto representa um “ataque” à toda a classe trabalhadora — do setor público e do privado, urbanos e rurais, ativos, aposentados e pensionistas, atingindo até mesmo os desempregados — e um desmonte do sistema de seguridade social brasileiro.

Economizar para quê?

Quando a “Nova Previdência” foi apresentada ao Congresso, em 20 de fevereiro, a estimativa era economizar R$ 1,072 trilhão em dez anos. Então, o governo se negou a compartilhar os dados que embasaram esse cálculo, o que causou resistência entre parlamentares. Em 26 de abril, novo cálculo — desta vez, com os dados — foi divulgado, aumentando a economia para R$ 1,236 trilhão. A subida na previsão de economia, indicaram especialistas, visava abrir espaço para mudanças no texto, que recebeu críticas em diversos pontos polêmicos. Os principais: as mudanças na aposentadoria rural, nas regras para professores, no benefício assistencial para idosos de baixa renda (BPC) e no abono salarial (leia no final da matéria).

O piso de R$ 1 trilhão, segundo explicou Fatorelli, tem um objetivo que não é garantir a sustentabilidade da Previdência, mas sim viabilizar a capitalização — quando a contribuição previdenciária descontada do salário bruto do trabalhador vai para uma conta individual em um banco público ou privado. A auditora fiscal da Receita Federal do Brasil aposentada se referia a uma frase do ministro da Economia, Paulo Guedes, dita em 13 de março: “Precisamos de R$ 1 trilhão para ter potência fiscal suficiente para pagar uma transição em direção ao regime de capitalização. Por isso que a gente precisa de R$ 1 trilhão”.

A Constituição de 1988 estabeleceu um sistema de repartição, no qual os benefícios dos aposentados e dos que recebem pensões são pagos pelas contribuições previdenciárias recolhidas dos trabalhadores que estão na ativa, dos empregadores e do governo. O texto da PEC 6/2019 prevê uma lei complementar — ainda não apresentada ao Congresso — que instituiria a capitalização de contribuição definida, em que a reserva de cada trabalhador pagaria sua própria aposentadoria.

“A proposta do governo visa entregar a Previdência aos bancos e acabar com a Seguridade Social, que é o maior programa social do Brasil: além de garantir a aposentadoria, engloba cobertura para os eventos de vulnerabilidade, como doença, invalidez, morte, idade avançada, maternidade, desemprego, reclusão, viuvez e orfandade, além de benefícios assistenciais para os mais pobres”, disse Fatorelli, para quem o princípio da solidariedade é o que nos une como nação.

Para além da exclusão de muitos dos atuais beneficiários, a capitalização traria riscos individuais para o trabalhador que aderir, na opinião da auditora fiscal. Um exemplo: os bancos receberiam taxas de administração elevadas e não teriam obrigação alguma de pagar benefício futuro, que dependeria do comportamento do mercado financeiro e pode ser zero. “É cada um por si!”, resumiu. O custo de transição para esse modelo ainda não foi divulgado pelo governo, mas no Chile chegou a 136% do Produto Interno Bruto, afirmou, o que no Brasil equivaleria a R$ 10 trilhões.

Experiência fracassada

“O regime de capitalização está fracassando na maioria dos países onde foi adotado”, concluiu Fatorelli, que colaborou com os processos de auditoria da dívida pública no Equador, em 2007, e na Grécia, em 2015. Ela citou relatório de 2018 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ligada às Nações Unidas, que indica que a previdência privada obrigatória teve baixo desempenho onde foi implantada. Entre 1981 a 2014, 30 países privatizaram total ou parcialmente seus sistemas de previdência social obrigatórios. Até 2018, 18 fizeram uma re-reforma, revertendo total ou parcialmente a privatização.

As taxas de cobertura estagnaram ou diminuíram. As prestações previdenciárias se deterioraram. Na Bolívia, as pensões privadas correspondem, em geral, a apenas 20% do salário médio durante a vida ativa do trabalhador; no Chile, a 15%. Isso resultou em aumentos da pobreza na velhice, comprometendo o objetivo principal dos sistemas de previdência, que é a garantia de renda suficiente para a idade avançada. O estudo ainda fala em alto custo administrativo, reduzidas taxas de retorno aos participantes e destinação das contribuições para especulação financeira internacional e não em projetos nacionais de desenvolvimento.

Questionando o déficit

Nas contas da Auditoria Cidadã da Dívida, o sistema de proteção social brasileiro tem sido altamente sustentável: “De 1988 até 2015, as contribuições vinculadas à Seguridade Social foram mais que suficientes para cobrir tudo que se gastou com previdência, saúde e assistência. E ainda sobraram dezenas de bilhões de reais anualmente, que foram desviados por meio da DRU (Desvinculação das Receitas da União) e de outros mecanismos, principalmente para o pagamento de juros da chamada dívida pública”.

A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) reafirma que desde a aprovação da Constituição até 2015 houve superávit na Seguridade Social, com sobra de recursos arrecadados via contribuições sociais (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social; Contribuição Social sobre o Lucro Líquido; Programa de Integração Social; contribuições ao Instituto Nacional de Seguridade Social pagas por trabalhadores e empregadores; sobre produção rural; importações; loterias etc.). A partir de 2015, houve queda da arrecadação, devido à crise. Somente em 2016 e 2017, a balança passou a ser negativa, exigindo injeção de recursos do Tesouro Nacional.

Em janeiro deste ano, o Regime Geral de Previdência Social registrou “déficit” de R$ 13,8 bilhões: a arrecadação teve aumento de 8,9% em relação a janeiro de 2018, chegando a R$ 32,3 bilhões; a despesa aumentou 2,7%, somando R$ 46,1 bilhões. Fatorelli argumentou que, ainda que as contribuições sociais não sejam suficientes para cobrir toda a despesa da Seguridade, não cabe falar em déficit, “pois o artigo 195 da Constituição prevê também a participação dos orçamentos fiscais em todos os âmbitos (federal, estadual, distrital e municipal)”. Em países como Noruega e Dinamarca, citou, a participação do governo chega a 75% do orçamento da seguridade social e não se fala em déficit.

“O R$ 1 trilhão que se diz querer economizar deixará de chegar às mãos dos beneficiários da Seguridade Social e irá para os bancos. A maior parte será tirada de quem ganha até 2 salários mínimos, mas toda a economia brasileira irá perder, pois o dinheiro que chega às mãos da população, além de ser importante para a sua sobrevivência, ativa toda a economia do país”.

PONTOS CRÍTICOS DA REFORMA

IDADE MÍNIMA E TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO
A idade mínima para aposentadoria passaria a ser de 65 para homens e 62 para as mulheres, mas há “gatilhos” que podem elevar a idade mínima para além disso. O tempo de contribuição subiria para no mínimo 20 anos (INSS), inclusive para trabalhadores e trabalhadoras rurais, ou 25 anos no caso dos servidores públicos, mas quem não quiser perder muito ao se aposentar terá que contribuir por 40 anos. A soma da idade e do tempo de contribuição do trabalhador terá que dar 105, e da mulher 100. A combinação de idade mínima avançada e contribuição mínima de até 40 anos significa, para Fatorelli, o fim do direito à aposentadoria para aquelas pessoas mais vulneráveis, afetadas pela informalidade e pelo desemprego, e dentre estas sobressaem as mulheres.

ATIVIDADES DESGASTANTES
Fim das aposentadorias especiais para algumas categorias, como professores, bombeiros civis, vigilantes, entre outras que exercem atividades desgastantes e/ou de alto risco. Será exigida idade mínima de 60 anos e tempo de contribuição de 30 anos, para professores de ambos os sexos.

BPC
Redução de um salário mínimo para R$ 400 do Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a pessoas com deficiência de qualquer idade ou para idosos com idade de 65 anos ou mais que apresentam impedimentos de longo e que pertençam a famílias com renda mensal de até um quarto de salário mínimo por pessoa. O benefício só chegaria a um salário mínimo a partir dos 70 anos. Adicionalmente, para ter acesso, não se poderia ter patrimônio superior a R$ 98 mil, ou seja, nem mesmo uma pequena casa.

ABONO SALARIAL
Fim do Abono Salarial para quem ganha mais de um salário mínimo mensal. Com a mudança, 91,5% do total de pessoas que hoje podem receber o abono iriam perder o benefício.

AUMENTO DA CONTRIBUIÇÃO DE SERVIDORES
A PEC 6/2019 contém gatilhos para permitir o aumento da contribuição previdenciária do regime de servidores públicos, sem limite, ignorando as peculiaridades da relação de trabalho profissional permanente e dependente: natureza estatutária imposta unilateralmente pelo Estado e contribuição para a Previdência Social sobre a totalidade dos vencimentos; após a aposentadoria, calculada sobre o provento integral (para os que entraram antes de 2013).

FIM DO REAJUSTE PELA INFLAÇÃO

FIM DA MULTA DO FGTS NO CASO DE DEMISSÃO DE APOSENTADOS

REDUÇÃO DA APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE PERMANENTE PARA 60%

REDUÇÃO DO VALOR DE PENSÕES POR MORTE PARA 60%

REDUÇÃO DE ATÉ 80% NO CASO DE BENEFÍCIOS ACUMULADOS


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