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Artigo da Semana

Manifestações são legítimas

Publicado em 28/05/2019 12:00 -

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Invasão e fechamento do parlamento. Prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal. Golpe militar – ou seu eufemismo "intervenção constitucional". Congresso Nacional como um "câncer" que precisa ser extirpado. Por mais que organizadores da manifestação pró-Bolsonaro, do último dia 26, tenham se esforçado em afastar o teor escatológico presente em parte dos convites que chamaram para os atos, uma enxurrada de pautas golpistas já haviam inundado a rede e assustado inclusive a direita liberal.

Defender a Reforma da Previdência, a agenda anticrime de Sérgio Moro, o decreto que facilitou o armamento da população e o próprio presidente pelas barbeiragens que comete por sua falta de capacidade para o diálogo é legítimo e está protegido pela democracia. O estranho é a convivência desse processo com grupos e indivíduos alucinados e hipossuficientes que pedem o fim da democracia. Ou mesmo com o comportamento do presidente, que rechaça as pautas golpistas de forma muito tímida para quem ocupa esse cargo.

Esse questionamento não deve ser feito apenas a um grupo, mas estendido, de certa forma, para o restante da sociedade. Diante de uma história recente de país que parece escrita por um roteirista de filme B de chanchada, fomos perdendo a sensibilidade para certas coisas que nunca deveriam parar de chocar.

Hoje, um cartaz pedindo o fechamento do Congresso passa pelos olhos da maioria de nós sem a mesma indignação que há alguns anos. Acabamos nos acostumando a esse tipo de comportamento, muitas vezes sem repudiá-lo ou limitando-nos a fazer beicinho de reprovação. Talvez pelo cansaço diante da insanidade contínua. Talvez pela não percepção de que é uma falácia a afirmação de que a democracia deve aceitar passivamente tudo, inclusive a defesa do fim da democracia.

Com isso, banalizamos a reação diante do ataque às instituições e, portanto, às estruturas que garantem minimamente nossos direitos e liberdades, a ponto dele ter se tornado parte do cotidiano – como um spam ou um daqueles "bom dia" com memes de gatinhos que os tios mandam no grupo da família. Dessa forma, algo que deveria ser encarado com extremo desgosto transforma-se em piada por "comediantes", entra nos cultos de "homens de Deus", torna-se "análise" de influenciadores em redes sociais.

No dia 22 de março de 2014, uma caminhada celebrou os 50 anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, no Centro de São Paulo – que antecedeu o golpe militar de 1964. Em sua reedição, o mesmo tipo de pauta presente no primeiro parágrafo deste texto chamou minha atenção e a de outros colegas que cobriam o ato. Também havia algo desse tipo no rescaldo das jornadas de junho de 2013, mas não tão organizado. Isso foi se avolumando nas polarizadas eleições de 2014, nos protestos contra o governo em 2015, nas manifestações pró-impeachment em 2016 e nas ultrapolarizadas eleições de 2018.

Quem nega o teor autoritário presente em atos realizados nessas ocasiões demonstra todo seu oportunismo.

A responsabilidade por conta disso está com os líderes políticos que deveriam se opor mais firmemente a isso. O máximo que o presidente da República fez foi comparar essas pautas com as do governo Nicolás Maduro e dizer que quem faz isso, não é do seu time. E ficou nisso. Esperava-se dele algo mais contundente e que não fosse apenas reativo, afinal esse pessoal é seu fã. Mas ele espera o resultado dos atos a seu favor para ajustar sua narrativa e instrumentalizá-los contra os freios e contrapesos impostos pelos outros poderes.

A sociedade, enquanto pressiona pelo bom senso dos políticos, deve fazer um exercício de resistência a fim de garantir que esse tipo de manifestação antidemocrática nunca se torne banal diante de nossos olhos. Para isso, precisamos romper o imobilismo e interpelar colegas, amigos e familiares quando eles atacarem democracia; repudiar quando lideranças ou figuras públicas atuarem dessa forma; e quebrar o silêncio nos grupos de WhatsApp ao sentir esse cheiro ruim. Até porque, o que é apenas estrume para uns, funciona como adubo para outros.

Silêncio é conivente. Ainda mais quando estamos falando da sobrevivência da democracia. O que é bem diferente de chancelar o comportamento da deputada X ou do magistrado Y – que são passíveis de críticas e de punições quando se desvirtuam de seus mandatos constitucionais, desde que dentro da lei. Ficar quieto diante de ataques a instituições, cuja reestabelecimento custou o sangue e a vida de muita gente, é covardia.

Esse trabalho de resistência que não tem a ver com a esquerda ou à direita, mas com quem defende a civilização diante da barbárie.

Por fim, sejam grandes ou pequenas, as manifestações representam apenas um naco da sociedade. A maioria não sairia para protestar nem contra, nem a favor da democracia ou governos porque está mais preocupada como vai conseguir trabalhar amanhã de manhã para alimentar a família à noite em um país que conta com 13,4 milhões de pessoas que procuram serviço e não conseguem.

O que não significa que não estejam descontentes. A reprovação ao governo Bolsonaro ultrapassou nominalmente a aprovação na última pesquisa XP/Ipespe. A somatória de "ruim e péssimo" atingiu 36% e o "ótimo e bom" chegou a 34%. Como a margem de erro é de 3,2 pontos, pode-se dizer que há um empate técnico, mas com a manutenção de um viés negativo para o presidente. Desde o início do ano, a reprovação passou de 20% para 36% e a aprovação de 40% para 36%. Pior: em janeiro, 3% consideravam Bolsonaro responsável pela situação da economia frente a 10% agora.

A insatisfação da população diante de uma realidade social e econômica que patina há anos, com um governo que não apresentou, até agora, uma política nacional para fomentar emprego e renda, vai cozinhando tudo em desalento.

Que pode não explodir em manifestações com milhões, mas abrir caminho para a busca de outro "salvador da pátria" nas próximas eleições, com nuances mais autoritárias que as do atual mandatário e com ainda menos apreço às instituições.

Leonardo Sakamoto – Jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative – Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


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