25/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Com o campo em guerra

Publicado em 23/05/2019 12:00 -

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Diante das críticas de que facilitar o porte de armas a "residentes em áreas rurais" aumentaria a violência, o governo Bolsonaro resolveu deixar claro, através de um novo decreto, que sua política visa a armar o campo sim, mas – especificamente – os produtores rurais.

Foi publicado, na quarta (22), o decreto 9.797 alterando alguns pontos do decreto 9.785, de 7 de maio, que havia simplificado o porte e a compra de armas de fogo e munição para categorias que não estavam previstas anteriormente na legislação. As medidas vêm sendo duramente criticadas pela sociedade civil e especialistas em direito por conta de seu impacto negativo para a segurança pública ou mesmo sua inconstitucionalidade.

Enquanto o primeiro decreto incluía os "residentes em áreas rurais" entre as categorias que não precisam comprovar a efetiva necessidade para obter o porte (direito de transportar armas para fora de sua residência e empresa), o segundo restringiu para "domiciliado em imóvel rural, assim definido como aquele que se destina ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial, cuja posse seja justa". Isso inclui de latifundiários a assentados rurais, mas exclui indígenas sem território ou trabalhadores sem-terra que vivem em situação precária.

Coincidentemente, o decreto foi publicado dois dias antes do segundo aniversário da Chacina de Pau D'Arco, quando uma ação conjunta das Polícias Civil e Militar do Pará levou à execução de nove homens e uma mulher. A maioria foi atingida no peito e na cabeça. Segundo o governo do Estado, os policiais estariam cumprindo mandados de prisão de acusados de assassinar um segurança de uma fazenda. Já a Comissão Pastoral da Terra (CPT) afirma que foi uma ação de despejo, em que os policiais não agiram como agentes públicos, mas como seguranças privados. O Ministério Público denunciou 17 policiais e 16 devem ir ao Tribunal do Júri.

Os relatórios de violência no campo da CPT e os casos divulgados pelo Conselho Indigenista Missionário, entre outras organizações nacionais e internacionais, reforçados pelas declarações de relatores ligados ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas e por números da Organização Internacional do Trabalho, mostram que o Estado brasileiro tem sido incompetente para prevenir e solucionar crimes contra a vida no campo. E que há uma situação clara de conflito deflagrado, com a existência de milícias armadas por fazendeiros e grileiros. Isso quando não é, o próprio Estado, sócio de chacinas e massacres.

Considerando os índices de violência, o governo federal deveria atuar para dificultar o acesso a armas de fogo a todos os cidadãos, principalmente aos grupos que já demonstraram pouco apreço à vida humana. A restrição não deveria incluir apenas sem-terra, mas também fazendeiros. Vale lembrar que os registros apontam que os assassinatos e chacinas no campo são de trabalhadores rurais, populações tradicionais, sindicalistas e funcionários públicos e historicamente executados por pistoleiros e policiais a mando do poder econômico.

No novo decreto, o porte é facilitado ao "domiciliado em imóvel rural"  sob a justificativa de que há "ameaça à sua integridade física". Após o primeiro decreto, o blog conversou com José Batista Afonso, advogado e coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Pará, que afirmou que a decisão deve aumentar o número de milícias rurais formadas por seguranças armados por fazendeiros e grileiros, dando a elas um verniz de legalidade. Ou seja, chancelando uma situação existente.

Milícias como essas têm sido acusadas de envolvimento nas mortes de trabalhadores e lideranças no campo. De acordo com o relatório divulgado, anualmente, pela Comissão Pastoral da Terra, 960.630 pessoas estiveram envolvidas em conflitos no campo, em 2018, frente a 708.520, em 2017 – um aumento de 35,6%.

A Região Norte foi a que demonstrou maior crescimento (119,7%) e conta com mais da metade dessa população. Em conflitos de luta pela terra, especificamente, foram 118.080 famílias (2018) em comparação às 106.180 (2017), crescimento de 11%. O número de famílias expulsas de terras pela ação privada aumentou 59% em relação a 2017. Em 2018, segundo a CPT, o setor privado foi responsável por expulsar 2.307 famílias, enquanto o poder público despejou 11.235.

Batista lembra que se já é difícil apurar crimes no campo na situação atual, imagine como ficará após esse decreto, principalmente nas regiões isoladas.

Revólveres, pistolas, espingardas e fuzis

Hoje, quem tem apenas a posse de arma pode usá-la para defesa pessoal e de seu negócio, nos limites de sua residência ou empresa. O decreto desta quarta manteve a mudança trazida pelo anterior: a noção de posse foi ampliada dos limites da casa para todo o perímetro da fazenda.

O que traz um problema. Ao longo da ocupação da Amazônia, grileiros estiveram envolvidos em casos de chacinas e violência contra povos do campo. Agora, podem alegar que tinham direito de atirar para se defender dentro do perímetro de uma área que, na verdade, não lhes pertence.

Em comunicado divulgado para tratar do novo decreto, o governo federal afirmou que os domiciliados em imóvel rural terão "autorização para aquisição de arma de fogo portátil (posse de arma)".  A categoria de "arma de fogo portátil", que pode ser transportada e manuseada por uma só pessoa, inclui espingardas, carabinas e fuzis.

Questionada pelo blog sobre a questão da posse de fuzil para produtores rurais, a Casa Civil da Presidência da República, através de sua assessoria de imprensa, informou que nem todas as armas portáteis são de uso permitido.

A decisão sobre quais portáteis podem ser compradas será do Comando do Exército – o que está previsto no parágrafo 2o do artigo 2o do decreto. Elas não podem ultrapassar 1620 joules de energia cinética na saída do cano, mas também devem ter um calibre nominal específico. Se não houvesse esse corte a ser imposto pelo Exército, um fuzil fabricado pela brasileira Taurus, com energia de disparo menor que os 1620 J, estaria habilitado para a posse por parte de produtores rurais.

"O decreto determina que o Exército Brasileiro detalhe, em até 60 dias, os calibres permitidos. Pela redação do decreto de hoje não fica evidente por qual dispositivo da norma os proprietários rurais poderiam possuir fuzis, a não ser se registrados junto ao Exército nas categorias de CACs [colecionadores, atiradores desportivos e caçadores], que é diferente do simples fato de residir em área rural. Cabe ao governo explicar mais uma vez o que quis dizer", afirmou, ao blog, Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz.

Defesa da impunidade

Mesmo com esse decreto alterando pontos do anterior, o governo federal continua sendo criticado quanto à legalidade do instrumento. "O novo decreto de Jair Bolsonaro, continua inconstitucional e será questionado no Supremo Tribunal Federal. O presidente segue facilitando o porte de armas a diversas categorias, extrapolando os limites de seu mandato e legislando no lugar do Congresso Nacional", afirmou Eloísa Machado de Almeida, professora da FGV Direito e coordenadora do centro de pesquisas Supremo em Pauta.

Após Jair Bolsonaro ter anunciando, no dia 29 de abril, que iria enviar um projeto de lei ao Congresso Nacional prevendo que proprietários rurais não fossem punidos ao defender à bala suas propriedades de ocupações, este blog conversou com especialistas que criticaram a decisão do presidente.

Eles disseram que a não punição em caso de um ataque à vida de um proprietário rural ou urbano, sua família e empregados já configura legítima defesa e está prevista em lei. Se o dono perceber que sua vida está ameaçada, será inocentado se usar da força para se defender. Claro, respeitado a proporcionalidade desse uso da força, limitada ao suficiente para cessar a agressão. A lei também já prevê que invasão ou ocupação de uma propriedade possa ser impedida com uma reação à altura. Ou seja, em casos em que não há atentado para a vida, não se pode atentar contra a vida.

"O Estado permite ao indivíduo reagir, em casos excepcionais, quando ele não está lá para defendê-lo. Mas a reação deve seguir parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade e seja o suficiente apenas para cessar a agressão", explicou ao blog na ocasião Alamiro Velludo Salvador Netto, advogado criminalista e professor titular do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. "Contudo, permitir que alguém reaja de forma excessiva é transferir poder do Estado ao cidadão não apenas para se proteger, mas também julgar e punir."

Ouvi de uma liderança social na região Sudeste do Pará que pediu para não ser identificada, pois teme ser a próxima vítima, que "no Pará, quem vive do crime organizado e da pistolagem está tranquilo e seguro, pode matar que não vai acontecer nada". Em sua opinião, que publiquei neste blog há algum tempo, "é uma situação para intervenção federal".

Ironicamente, o governo Bolsonaro, ao facilitar o porte no campo, vai garantir que as armas andem livremente na região de fronteira agrícola amazônica, que é a recordista em casos de escravidão contemporânea considerando os dados oficiais entre 1995 e 2018.

O que faz muito sentido.

Leonardo Sakamoto – Jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative – Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


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