28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A única promessa cumprida

Publicado em 08/05/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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Ao redor do planeta, estamos presenciando diversas iniciativas da "nova direita" para restaurar a democracia. E, sim, a palavra certa é "restaurar". Tanto a Grécia como os EUA, que gostam de se vangloriar como percursores do governo "do povo para o povo". Mas ambos tendem a omitir a verdadeira natureza de sua "invenção".

Democracia não era, originalmente, um sistema "popular", por assim dizer. Ela foi concebida como uma alternativa à monarquia. Antes, quem era rico era amigo do rei e, até por isso, era rico. Daí, esse rico apoiava quem quer que estivesse no trono. Foi assim por um longo tempo.

Com a evolução da tecnologia agrícola aconteceu que alguns fazendeiros plebeus começaram a amealhar terras e propriedades. Assim que o número de ricos sem sangue azul ultrapassou a nobreza, o rei viu-se obrigado a adotar regimes mais "participativos" de governo, por assim dizer. Longe de mim retratar esse processo como pacífico. Cabeças rolaram, literalmente.Os que preferiram manter o controle do Estado, acabaram em guilhotinas e pelotões de fuzilamento.

Mas em todos os casos, o que se viu foi gente rica querendo mandar nas suas respectivas nações. E isso era a democracia. Quem votava e escolhia representantes eram homems brancos proprietários de terra. Muitas vezes, como no caso dos adorados Founding Fathers norte-americanos, proprietários de escravos. Uma atividade que não pode ser considerada democrática nos moldes da nossa democracia-nutella.

Os inventores da democracia acreditavam que só quem devia participar da vida política eram os "homens de bem", a expressão usada para descrever homens brancos, ricos, donos de terra. Se Thomas Jefferson sonhasse com um país onde mulheres, negros e pobres têm direito ao voto, provavelmente acordaria em pânico e pediria para uma das mucamas abaná-lo.

A democracia como conhecemos começou a se moldar depois da Revolução Industrial, quando a sociedade (e o dinheiro) passou por um processo de urbanização. No lugar das fazendas, surgiram as fábricas como novo endereço do lucro.

Mas havia um problema: era preciso mão de obra para operar as novas máquinas de fazer lucro. No começo, trabalhar nas fábricas ou nas fazendas eram formas semelhantes de escravidão. Mas, com o passar do tempo e a especialização dos operários, os "homens de bem" começaram a notar que estavam dependentes dessas novas criaturas estranhas, os chamados "operários". Eles começaram a se reunir em grupos e fazer exigências. Caso não fossem atendidas, a produção parava. Prejuízo.

Por sua vez, esses trabalhadores passaram a exigir também representatividade política. De sufrágio em sufrágio, chegamos ao modelo contemporâneo de democracia, onde todo mundo vota. Mais uma vez, não é minha intensão retratar esse processo como simples, linear ou pacífico. Exigiu muita coragem e custou muitas vidas, mas o fato é que adotou-se um modelo que, via de regra, proporciona maior mobilidade social e menos disparidade econômica.

Os "homens de bem" nunca engoliram essa ideia. Por um punhado de décadas, até tentaram participar do jogo para manter seus privilégios. A cada direito conquistado pelos trabalhadores, menor era a satisfação dos patrões.

Surgiu então uma "nova direita" defendendo o corte sistemático de impostos e direitos trabalhistas. Os candidatos pouco importavam, bastavam ser chamativos e carismáticos. O fundamental era o discurso universal da nova corrente: "Com o seu voto, trabalhador, pagarei menos impostos e darei mais dinheiro para você". Ou, como chamam os republicanos, trickle down economics. A parte chocante é que deu certo. Não a parte do pobre ganhar dinheiro do rico, claro. Essa parte nunca saiu do papel. Mas a primeira, onde os direitos são cortados e a rede de assistência social é desmontada para que os ricos paguem menos impostos, essa foi um sucesso. Está dando certo em várias partes do mundo.

Usando candidatos machões-folclóricos, apelando para uma paranoia de nuances racistas e preconceitos tribais, a "nova direita" deu o primeiro passo para a restauração das democracias originais.

O segundo passo na restauração da democracia roots, assim como ocorreu com os reis, virá com a tecnologia. Os bilionários e suas mega-corporações já estão trabalhando nisso. Nos carros autômatos, nos drones, nos robôs. Em menos tempo do que você imagina, amigo leitor, a imensa maioria dos postos de trabalho de baixa renda simplesmente deixarão de existir. Motoristas, caminhoneiros, secretárias, metalúrgicos. O trabalhador começará a perder, pouco a pouco, sua relevância econômica. Questão de tempo, não haverá motivos para manter sua representatividade política.

Começaremos a ver discursos como: "quem foi condenado não pode votar", "quem tem dívida no Serasa também não", "quem não tem passaporte", "quem não tem curso superior"… Pouco a pouco, o "homem de bem" original vai reaver sua democracia.

Essa é a situação que estamos vivendo.

No Brasil, um sacoleiro catarinense ganhou dinheiro demais com o plano Real e decidiu que não ia pagar imposto e dívidas trabalhistas "nem a pau". Daí, juntou-se a outra meia dúzia de novos-ricos para financiar a reconstrução da democracia brasileira. Mas democracia-roots, não essa democracia-nutela que vocês estão acostumados, não.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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