28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Estatal ignora etnia em extinção para aprovar hidrelétrica na Amazônia

Publicado em 25/04/2019 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

No centro norte de Mato Grosso, o rio Arinos é responsável por alimentar aldeias inteiras, em especial durante os períodos de seca. Hoje, uma hidrelétrica proposta pelo governo federal coloca todo esse cenário em risco. Para se ter uma ideia, a barragem da usina Castanheira bloqueará um dos principais pontos de pesca e reprodução de peixes no rio. Entre àqueles que dependem do Arinos para sobreviver estão parte dos últimos 160 tapayunas do país.

Também conhecidos como “Beiços-de-Pau”, os tapayuna foram praticamente dizimados no século passado, além de terem sido envenenados e contaminados com o vírus da gripe durante missões de colonização e pacificação. Não há um número consolidado da população em um passado recente, mas, nos anos 1970, o indigenista Américo Peret calculou algo em torno de 1,2 mil indígenas.

Eles estão espalhados em aldeias nas terras indígenas Wawi e Capoto Jarina, no Parque Nacional do Xingu, norte do Mato Grosso, e hoje reivindicam seu território original na cidade de Diamantino, a 500 quilômetros do parque. Há ainda indivíduos isolados dessas aldeias, vivendo nos territórios Apiaká/Kayabi, Erikpatsa e Japuíra, pouco acima do local onde ficavam suas terras originais. Todos esses povos podem sofrer um novo e duro golpe do homem branco caso o projeto Castanheira seja concretizado, pois haverá a inundação de territórios essenciais, usados para o acesso aos rios e para ritos tradicionais.

O governo federal tenta licenciar as obras da usina há mais de quatro anos, enfrentando a resistência da Funai, do Ministério Público Estadual, Federal e também de organizações civis que atuam na região. Agora, a nova diretoria da empresa, empossada no início do governo Bolsonaro, já deixou claro que há expectativa que o projeto avance logo.

Castanheira sintetiza a ameaça das hidrelétricas no centro-norte mato-grossense, em que diversos projetos têm avançado sem dar ouvidos às comunidades atingidas nem medir os efeitos cumulativos das usinas sobre a área. Estão previstos um reservatório de 94,7 km2, área praticamente equivalente à da capital capixaba, Vitória, e uma barragem que se estenderá por 67 km no rio Arinos, dos mais importantes afluentes do Juruena – a 650 km da capital Cuiabá.

A usina é a maior entre pelo menos 80 projetos energéticos planejados só para a região do Juruena, um dos rios formadores do Tapajós – esse número exclui as hidrelétricas já aprovadas e construídas, segundo dados da própria Agência Nacional de Energia Elétrica.

Projetos hidrelétricos já têm causado enormes danos nesse ponto da floresta amazônica. O caso mais recente foi o desastre da usina Sinop no início de fevereiro de 2019, quando 13 toneladas de peixes foram mortas no rio Teles Pires após uma manobra irregular durante o enchimento de seu reservatório.

A Empresa de Pesquisa Energética, a EPE, responsável pela elaboração do projeto de Castanheiras, defende-se ao dizer que as terras indígenas não estão na zona de impacto direto da usina. A Funai contesta ao apontar que esses territórios ficam num raio de menos de 40 km do local previsto para as obras – o que não obriga as tribos a serem realocadas de onde estão, mas afeta diretamente a alimentação dos indígenas.

Ligada ao Ministério de Minas e Energia, a EPE é responsável por fazer a pesquisa, aprovar e liberar a usina para ser construída pelo governo ou, como neste caso, ofertada via leilão. Além da Funai, os Ministérios Público Estadual e Federal acusam a empresa de ignorar a presença de indivíduos tapayunas isolados em seus relatórios de impacto social e ambiental. Por isso, o MPF desaconselhou a secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso a licenciar Castanheira – por enquanto.

‘Vocês, civilizados, mataram todos’

A história dos tapayunas é marcada por conflitos e centenas de mortes ao longo do século 20. No início, uma iniciativa criada pelo governo para ocupar territórios e estabelecer as fronteiras nacionais, a Comissão Rondon, abriu caminho. Já nos anos 1940, a “Marcha para Oeste” de Getúlio Vargas inundou a área com migrantes brasileiros – gaúchos, na maioria – e estrangeiros. Toda a tensão entre colonos e índios culminou em ao menos duas tragédias em menos de duas décadas.

Na primeira, em 1953, centenas de tapayunas foram envenenados por arsênico misturado ao açúcar que lhes fora oferecido por seringueiros, em um crime bárbaro que só foi noticiado ao país 15 anos depois. Já em meados dos anos 1970, uma gripe vitimou a maior parte daqueles que restavam, durante uma expedição do antigo Serviço de Proteção ao Índio para fortalecer o vínculo com a etnia. O resultado foi devastador, como relatou o sertanista Antônio de Souza, em 1971:

“O índio Tariri [que acompanhou o sertanista na expedição] pôs as duas mãos na cabeça, depois bateu com a mão direita em cima do coração e nesta altura já estava chorando olhando para os ossos todos fuçados pelos porcos da mata, lembrando que no meio daqueles ossos estavam os da moça que ia ser sua esposa e falou: ‘Karái-tán-aiti-n?nvaine K?re, kêtt Kue n’ – ‘vocês, civilizados, mataram todos, tudo acabado’”.

O número de mortos pode ser ainda maior do que o estimado, de acordo com relatos dos índios vivos hoje em dia. “Morreram mais de 2 mil da nossa tribo”, me disse o tapayuna Orengô, um dos 160 índios da etnia. Ele é um dos “isolados” aos olhos da Funai, e vive em uma das terras indígenas que serão impactadas pelo projeto. “A maioria dos que restaram foi levada para o Parque Nacional do Xingu, com a promessa de termos nossas terras devolvidas – o que nunca aconteceu”, completou, ao lembrar da transferência orquestrada pela fundação indigenista em 1970. Desmobilizados, tiveram de se juntar a rivais históricos, como apiakás, kayabis, mundurukus e rikbatsas, para sobreviver.

Juruena, um rio sufocado

Desde 2014, o Ministério Público Federal conduz duas investigações para apurar os impactos sociais e ambientais do projeto. Segundo o órgão, a EPE foi omissa ao minimizar, por exemplo, a existência de outras dezenas de hidrelétricas na região e seus devidos impactos na relação dos povos com o rio. Na avaliação ambiental de Castanheira, a empresa menciona apenas 13 projetos energéticos no rio Arinos, desconsiderando o número muito superior de usinas e pequenas centrais hidrelétricas inventariadas para a região do Juruena. Assim, estimativas de danos se distanciam do que um projeto desse porte realmente pode acarretar.

A Funai também contesta o relatório da EPE. Segundo análise da fundação, a hidrelétrica vai bloquear a rota de migração das espécies, desregulando o ecossistema do rio e entornos – o Arinos é considerado o melhor para a pesca ali.

O aumento da população nas cidades durante as obras também deixa os indígenas mais vulneráveis aos riscos da exposição a álcool e drogas. “O aumento populacional poderá intensificar o acesso dos povos indígenas ao álcool, às drogas, assim como a propagação de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST’s), que se associa ao aumento contingencial e consequente circulação de pessoas envolvidas com o empreendimento”, detalha uma análise da Coordenação-Geral de Licenciamento Ambiental da Funai sobre a obra, realizada em dezembro de 2017.

“Já vimos o que aconteceu em Belo Monte e no complexo do Teles Pires. Junto com as outras tribos estamos unidos, não queremos essa hidrelétrica aqui”, diz Orengô. “Já sofremos muito com a ação do homem branco, só queremos nossa terra para ficar em paz.”

Ainda não houve ajustes nos relatórios ou em medidas compensatórias, as chamadas “condicionantes”, para lidar com a questão indígena tapayuna no projeto Castanheira. De acordo com a EPE, as contrapartidas não foram ajustadas porque a licença prévia ainda não foi concedida. No entanto, a própria empresa se contradiz uma vez que já havia apresentado sub-programas voltados para outras etnias afetadas pela usina. Além disso, estimar possíveis danos e formas de minimizá-los é prática padrão em obras desse tipo.

Pesquisadores e organizações civis que atuam na região também afirmam que os estudos foram feitos à distância, sem condição de estimar os danos da obra – uma prática recorrente no país. A empresa nega.

A EPE diz que foi notificada sobre a “possível ocorrência” de povos indígenas isolados apenas em 2017. A estatal afirma ter proposto um “subprograma de apoio a estudos de índios isolados” que deverá ser conduzido pela Funai e garante que seu relatório “evidencia a abordagem dos efeitos cumulativos e sinérgicos em escala regional na avaliação dos impactos ambientais” – mas há controvérsias.

“As decisões sobre hidrelétricas em Mato Grosso têm um caráter muito mais político do que técnico”, me disse Ricardo Carvalho, da ONG Operação Amazônia Nativa, que atua na causa indígena na região desde os anos 1960.

A organização é uma das que questiona a viabilidade financeira do projeto. Em uma análise custo-benefício feita em parceria com outras ONGs com base nos dados do próprio projeto, ela aponta que, segundo estimativas conservadoras, haverá prejuízo econômico de pelo menos R$ 239 milhões caso a usina seja construída. Levando em conta também os custos das emissões de gases de efeito estufa, perdas econômicas de áreas produtivas inundadas e diminuição das reservas de peixes na região, o prejuízo causado pela hidrelétrica salta para R$ 419 milhões. O documento serviu de referência para decisões do MPF contra o licenciamento da usina.

No geral, a usina Castanheira tende a agravar um cenário que já é problemático: ali há intenso desmatamento pela presença de madeireiros, pecuaristas e monocultores de soja e milho. Além disso, Mato Grosso é um estado no qual há constante tensão com povos indígenas – provocada por fazendeiros, grileiros e madeireiros. Segundo o Conselho Indigenista Missionário, em 2017 foram oito conflitos diferentes, envolvendo contaminação por agrotóxicos, desmatamento, incêndios e invasões.

Mineradoras à espreita

No centro-norte de Mato Grosso ainda existem ricas jazidas de minérios estratégicos para processos industriais em larga escala, como cobre e manganês, além de diamante e ouro. São alvos de cobiça tanto de grandes mineradoras quanto de garimpeiros ilegais. Nesse cenário, a usina Castanheira cairá como uma luva para a exploração na área.

A hidrelétrica poderá fornecer energia o bastante para a extração e o beneficiamento de minérios em larga escala, o que ajuda a entender o interesse do governo Bolsonaro em leiloar o projeto e colocá-la em funcionamento o quanto antes.

Não faltam interessados: somente em Juara há mais de 40 requerimentos de pesquisa só para mineração industrial de cobre, manganês e pedras preciosas. Entre os requerentes há grandes empresas, como a filial brasileira da Codelco, mineradora de cobre estatal do Chile, e a gigante Nexa, criada após a fusão entre a Votorantim Metais e a peruana Milpo.

Juara, Novo Horizonte do Norte e região ainda foram pouco exploradas e, por isso, há um lucrativo mercado à espera da infraestrutura necessária para começar a operar.

Com base em dados da Agência Nacional de Mineração, o Intercept descobriu que as pesquisas ativas para extrair diamante e ouro na cidade somam uma área total de 46 mil hectares – equivalente ao dobro do tamanho de Recife.

Pesquisadores também alertam que, caso avance a mineração, novos garimpos ilegais deverão surgir nas redondezas, aumentando a pressão e os conflitos com os grupos indígenas que permanecem na região.

A garimpagem já é preocupante nessa parte da Amazônia. Há pelo menos 34 garimpos ilegais próximos a áreas de proteção ambiental e terras indígenas nos cursos dos rios Juruena e Tapajós, segundo monitoramento da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG) em 2018.

2019, uma ‘tempestade perfeita’

Neste momento, o projeto Castanheira está emperrado no estágio de apresentação do estudo ambiental para as comunidades afetadas. Só em 2018, o MP impediu em duas ocasiões a apresentação do relatório às comunidades, devido aos problemas do projeto. Mas os sinais sugerem que o governo federal deve entrar no jogo para fazer o licenciamento avançar.

Questionada, a estatal confirma o plano de seguir adiante com Castanheira ainda este ano. O presidente da EPE, Thiago Barral, disse que o governo corre contra o tempo para ofertar a hidrelétrica nos próximos leilões de energia, no segundo semestre de 2019. Ele foi escolhido para o cargo com a benção do atual ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque.

Para isso, é preciso que Aneel e Funai aprovem os estudos e que sejam feitas audiências públicas para discutir o impacto com as comunidades afetadas – só depois disso que a secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso pode conceder a licença prévia do projeto. Vale lembrar que, na gestão de Bolsonaro, a sub-pasta da Funai responsável por manifestar-se em licenciamentos ambientais como esse foi enxotada para a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, comandada pelo pecuarista Nabhan Garcia.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já disse que o governo não descarta novas hidrelétricas na Amazônia. Segundo ele, as decisões sobre as propostas serão despojadas de “interferência ideológica”, em mais uma provocação àqueles contrários a grandes obras na floresta.

Isso tudo, claro, em meio a um cenário delicado, no qual o governo diz aos quatro ventos que fará o necessário para autorizar a mineração em terras indígenas. A Amazônia concentra a maior parte de reservas homologadas, é riquíssima em diversos tipos de minérios valiosos e está na mira desde a campanha de Bolsonaro. O presidente que, aliás, quer abrir a porteira para investimentos norte-americanos na maior floresta tropical do mundo.

Caso Castanheira avance, quem dará o aval final será o governo de Mato Grosso, comandado por Mauro Mendes, do DEM. Ele é sócio em uma problemática mineradora de ouro nos arredores da Chapada dos Guimarães, em Cuiabá.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *