19/03/2024 - Edição 540

True Colors

Precisamos falar sobre a saúde e o afeto dos homens trans

Publicado em 04/04/2019 12:00 - Naíse Domingues – O Globo

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Após passar a vida inteira se identificando como uma mulher lésbica, aos 47 anos e, na época, casado com outra mulher, Jordhan Lessa iniciou a transição. O processo tardio tem uma explicação simples: até então o guarda municipal nunca tinha ouvido falar sobre transexualidade. Mas por que isso acontece? Apesar de a comunidade LGBT e as mulheres trans estarem conquistando cada vez mais espaço na sociedade, os homens trans ainda lutam para ser ouvidos, mesmo dentro do movimento. 

Mulheres trans e as travestis conseguiram, aos poucos, conquistar seu espaço tanto na militância, quanto na sociedade, mesmo com todo o preconceito e a transfobia que enfrentam diariamente. No entanto, fala-se pouco sobre os homens trans, que, não custa lembrar, são pessoas que nasceram mulheres, mas se identificam como homens. Para Leonardo Tenório, ativista trans e pesquisador na área de saúde coletiva e psicologia social, para além da transfobia, essa invisibilidade é fruto do machismo estrutural da sociedade.

– A socialização primária de um homem trans é como mulher, então somos estimulados a não pertencer a espaços de poder, a não ter poder de fala, não ter autonomia e não ter direitos sobre nosso próprio corpo. As mulheres trans são o oposto disso porque foram socializadas como homens – analisa Tenório.

O machismo estrutural também afeta diretamente a construção da identidade dos homens trans. Jordhan Lessa conta que luta diariamente para não reproduzir o padrão de masculinidade imposto pela sociedade e que o afetou durante a maior parte da sua vida.

– Hoje em dia, algumas pessoas pensam que eu sou um homem gay porque não reproduzo o comportamento do machão. Estou aqui para mostrar que existe a possibilidade de um outro tipo de masculinidade e que não precisamos reproduzir o machismo para sermos aceitos.

Sofrendo com o machismo enquando cresciam como meninas e, mais tarde, por não reproduzirem o padrão de masculinidade da sociedade, não é à toa que os homens trans têm dificuldade em pautar suas necessidades. O acesso à saúde é um dos principais problemas enfrentados por eles. Além da dificuldade em realizar as cirurgias de retirada das mamas e do útero, muitas vezes eles também enfrentam o despreparo dos profissionais e do sistema de saúde.

O SUS possui um documento que orienta os profissionais de saúde a dar atenção integral à saúde da população trans, apontando a importância do uso do nome social, do tratamento de saúde por equipes multiprofissionais e da necessidade do atendimento ginecológico para os homens trans. Mas muitos se queixam dque conseguir o atendimento ginecológico é difícil, principalmente para homens trans que já fizeram a retificação do nome dos documentos.

– Não vamos ao médico apenas por causa do processo transsexualizador. Eu mesmo sou hipertenso, mas nos atendimentos costumam sempre colocar o uso do hormônio em primeiro plano, mesmo que a gente apresente outros sintomas – comenta Jordhan. 

Em médicos particulares, consultas e procedimentos feitos pelo plano de saúde também podem enfrentar dificuldades burocráticas. Kaíke Theodoro, ator e membro da Rede Transmasculina Carioca, conta que precisou ligar para todos os médicos ginecologistas do livro do convênio até encontrar um profissional que o atendesse.

– A médica que me atendeu já me conhecia, mas o plano se recusou a pagar pela minha consulta, mesmo sabendo de todo o meu processo de transição – relembra.

A necessidade de acompanhamento psicológico

Para além da convivência em sociedade, a vida afetiva também pode ser um processo doloroso para os homens trans. Apesar de as características físicas não serem uma barreira tão grande como são para as mulheres trans e travestis, a fetichização sobre os corpos dos homens trans afasta as pessoas cis, dificultando a realização de um relacionamento duradouro.

Este afastamento e dificuldade de realizar tarefas que seriam simples para pessoas cis, traz o alerta para outra pauta considerada urgente pelos homens trans: a atenção à saúde mental. Não é raro que eles enfrentem problemas como depressão e ansiedade e, em alguns casos, o uso de drogas. Kaíke Theodoro conta que durante a adolescência enfrentou a depressão no processo de autodescoberta e teve que lidar com a intolerância quando procurou ajuda psicológica. 

– A minha primeira psicóloga era religiosa e, quando eu expliquei o que estava acontecendo comigo, ela me chamou de aberração. Eu só piorei com ela. Ainda bem que depois encontrei uma profissional que aceitou passar por esse processo comigo.

Para a psicóloga Márcia Modesto, o acompanhamento psicológico para pessoas trans é fundamental para trabalhar o autoconhecimento e enfrentar as dificuldades da nova identidade perante os preconceitos da sociedade.

– A psicoterapia pode ajudá-los na resolução dos seus conflitos e a se reequilibrar nesse novo papel, nessa nova identidade, fazendo com que o grau de sofrimento social e psicológico diminuam – aconselha Márcia.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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