28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Massacre em escola de Suzano reacende debate sobre porte de armas

Publicado em 14/03/2019 12:00 -

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O atentado ocorrido em Suzano, região metropolitana de São Paulo, reacendeu o debate sobre a flexibilização do porte de arma, uma das principais bandeiras de campanha do presidente Jair Bolsonaro.

O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), um dos filhos do presidente, usou sua conta no Twitter para prestar "sentimentos" aos familiares das vítimas e criticar a atual legislação sobre controle de armas: "Mais uma tragédia protagonizada por menor de idade e que atesta o fracasso do malfadado Estatuto do Desarmamento, ainda em vigor". O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), irmão de Flávio, disse que uma arma é tão perigosa quanto um carro.

O Estatuto do Desarmamento, sancionado em 2003, tem o objetivo de reduzir a circulação de armas e estabelecer penas rigorosas para crimes como o porte ilegal e o contrabando. Em janeiro, Jair Bolsonaro assinou em decreto que altera parte do Estatuto do Desarmamento e facilita a posse de arma no país.

Contudo, ele e seus aliados querem ampliar ainda mais o acesso a armas. Alegam que os dados de homicídios no Brasil não diminuíram com o estatuto e que faltam argumentos objetivos para determinar o que seria a “efetiva necessidade” de ter uma arma.

Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, o líder do PSL na Casa, Major Olimpio (SP), causou polêmica ao afirmar que as mortes em Suzano poderiam ter sido evitadas se alguém estivesse armado dentro do colégio.

"Se houvesse um cidadão com uma arma regular dentro da escola, professor, um servente ou policial aposentado que trabalha lá, ele poderia ter minimizado o tamanho da tragédia. Episódios dessa natureza têm de ser enfrentados, sim. Mas, se há arma neste país hoje na quantidade que se quer, o menor é o 007, tem licença para matar".

Ele chamou de "oportunistas" quem associou o ataque em Suzano ao decreto que afrouxa as regras para posse de arma. "O decreto do Bolsonaro simplesmente garantiu posse legítima, não é nem porte, o porte nós vamos votar depois, é a segunda etapa em relação a isso que foi tirado do direito de defesa do cidadão. E a população quer isso mesmo, e a população botou o Bolsonaro como presidente da República para ser um impulsionador de garantias para o cidadão", finalizou.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, reagiu de maneira incisiva: "Já não basta o debate sobre posse. Um pedido como esse não é sobre posse, é sobre porte em área urbana. Aí passamos para uma proposta de barbárie no Brasil que não deve avançar".

"O que eu espero é que alguns não defendam que, se os professores estivessem armados, teriam resolvido o problema. Pelo amor de Deus. Espero que as pessoas pensem um pouquinho primeiro nas vítimas dessa tragédia e depois compreendam que o monopólio da segurança pública é do Estado. Não é responsabilidade do cidadão. Se o Estado não está dando segurança, é responsabilidade do gestor público da área de segurança", completou Maia, que suspendeu a sessão de quarta à tarde no plenário em homenagem às vítimas da tragédia.

O líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE), acredita que o decreto que facilita a posse de armas pode estimular a repetição desse tipo de crime no país. "Se cada cidadão brasileiro pode ter na sua residência quatro armas, como prevê esse decreto apresentado pelo presidente da República, a chance de nós termos episódios como esse cresce enormemente. E não é exatamente ampliando a possibilidade de as pessoas terem armas, a posse de armas, que nós vamos acabar com a posse ilegal e com a posse irregular", defendeu Humberto.

A Frente Parlamentar da Segurança Pública, conhecida como bancada da bala, fez circular pela Câmara que vai usar o episódio em Suzano para pressionar por mudanças na legislação atual e facilitar o porte de armas. Contudo, o dono final da pauta no plenário é Rodrigo Maia.

No momento em que depende totalmente de Maia para garantir a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) da reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro evitou polemizar sobre o assunto.

Especialistas discordam da flexibilização

Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), refuta por completo a tese do senador Major Olímpio. “A flexibilização do estatuto faz com que haja mais armas disponíveis na casa dos brasileiros e pessoas que tenham problemas psiquiátricos, como me parece ser o caso dessa situação, tenham mais acesso para cometer essas loucuras”, declarou.

“A gente tem atentado desde o começo que é um tiro no pé essa flexibilização do estatuto. Você tem que restringir o número de armas e não aumentar o número de armas em pode da sociedade”, apontou Alcadipani. A arma utilizada pelos atiradores é um revólver calibre 38, a mais encontrada em apreensões. “A maior parte das armas apreendidas no crime são armas curtas, em especial o revólver, a pistola. O revólver é a arma mais apreendida no Brasil há décadas e em geral existe essa preferência porque é mais fácil você esconder essa arma, você pode facilmente ocultar no carro, na rua, é mais fácil de manusear. Além disso, por ser uma arma presente tanto no mercado legal quanto ilegal, facilita por exemplo o abastecimento da munição desse tipo. Porque são armas de calibre permitido”, explicou, em entrevista recente sobre roubo e desvio de armas, Bruno Langeani, gerente de sistemas de justiça e segurança pública do Instituto Sou da Paz.

O deputado estadual Carlos Gianazzi, que por ser professor e titular da Comissão de Educação da Alesp, esteve no cenário do massacre e criticou a tentativa de usar o ocorrido para defender o armamento da população. “Essa prática do governo federal de armar a população vai estimular a acontecer mais casos como esse. Facilitar o acesso a armas é um grande estímulo para isso. O pai de um aluno com uma arma em casa é perigo. O aluno pode pegar a arma sem que o pai saiba e sair para se vingar”, analisou.

Uma das armas encontrada no arsenal dos atiradores é uma “besta” – uma espécie de arco e flecha – e foi considerada “excêntrica” pelas autoridades. A arma é usada pelos personagens de um game chamado Fortnite, do qual ao menos um dos atiradores, Guilherme, era fã, conforme postagens no Facebook demonstram. O perfil do jovem foi desativado.

"O fato de só um ter um revólver, mostra a dificuldade que eles [os assassinos] têm de acessar armamento. Aí a conta é muito simples: quanto mais você tem arma, mais homicídios acontecem, porque o poder de letalidade aumenta", diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

"Tanto eles não tinham acesso fácil, que precisaram encontrar soluções alternativas", comenta, fazendo referência à besta (arma com flechas e gatilho para disparo) e a uma machadinha usadas pelos assassinos. Uma das vítimas foi até o hospital com a machadinha cravada no ombro direito.

Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, também discorda de Major Olímpio e chama de "fazer justiça com a própria mão" a possibilidade de armar a população. “Tem um equívoco muito grande hoje de parte de nossos representantes quererem que a gente vire assassinos em potencial. Não somos nós cidadãos que temos que fazer justiça com as próprias mãos. Precisamos de um governo, de representantes eleitos, cumprindo uma agenda de segurança pública que proteja os cidadãos. Isso é obrigação número um de governantes eleitos num estado democrático de direito, e não terceirizar essa responsabilidade para nós.”, afirmou

A comparação com os Estados Unidos é inevitável para os pesquisadores. O país é palco de dezenas de ataques com armas mensalmente – um número sem precedentes em qualquer país no mundo. Lá, os requisitos para se comprar armas são bem mais flexíveis do que no Brasil, e o debate para a mudança da legislação reacende a cada novo ataque.

"A gente vê que esses casos são muito mais comuns e frequentes lá, quase semanais, pelo simples fato de que você tem nos EUA um acesso muito maior a armas de fogo do que em qualquer lugar no Brasil", argumenta Bruno Langeani, especialista em segurança pública do Instituto Sou da Paz.

Para o diretor executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques, o acesso às armas é um fator fundamental para entender essa tragédia. “Não apenas para trazer respostas ao caso em si. Também pode ajudar o Poder Público a romper um ciclo de violência causado por armas nas mãos de pessoas que estão dispostas a cometer esse tipo de crime”, avalia.

Para o especialista, esse olhar é fundamental sobretudo em tempos de exaltação armamentista, estimulada pelo governo Bolsonaro, que culminou na flexibilização do Estatuto do Desarmamento. Pela crença de que as armas podem reduzir a criminalidade. “Isso gera um maior fluxo de armas em circulação e, em médio e longo prazo, os resultados serão muito ruins. Mesmo armas legais podem se voltar contra a sociedade”, avalia Ivan.

O caso desta quarta-feira acende ainda outro alerta, pois o revólver estava na mão de jovens. “Ninguém consegue frear a curiosidade de uma criança ou adolescente diante de uma arma de fogo. Ela está na vida das pessoas, está nos filmes, novelas, brinquedos. O maior fluxo de armas dentro das residências gera mais mortes”, completa.

Para Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé, os mandatários ignoram questões essenciais para entender – e combater – essas tragédias. “Falar sobre controle de armas é falar também sobre uma política que evite que armas legais sejam utilizadas em crimes como esse.”

Análise

Para o jornalista e sociólogo Leonardo Sakamoto, independentemente da motivação que tenha levado ao Massacre de Suzano, ele acontece em meio a um crescente culto às armas de fogo e à violência como forma de resolução de conflitos no país.

“Violência que leva não apenas ao uso da força bruta para a resolução de tensões e traumas, mas também à eliminação do outro. Nesse contexto, a participação em determinados fóruns de discussão misóginos – que cultuam tiroteios chacinas e massacres ou pregam o extermínio de mulheres diante de sua própria incapacidade de conseguir estabelecer relações afetivas – ajuda a descolar ainda mais jovens da realidade.”.

Não à toa foi encontrada uma besta, usada para disparo de flechas, junto a um dos assassinos. Ela é figura presente em jogos de videogames, filmes, livros e graphic novels que trazem ambientes de guerra, universos medievais e mágicos, de mundos pós-apocalípticos com zumbis, violência urbana. Um dos feridos levou um golpe de machadinha, outra arma sempre presente nessas histórias, no peito.

Seja qual for a razão da fantasia de vingança desses jovens, contra a sociedade, as instituições, a escola, as mulheres ou algo mais que também não faça sentido, precisamos atuar coletivamente para reduzir a cultura de violência. Massacres como esse não começaram no atual governo federal, basta ver a lista de tragédias semelhantes que ocorrem por aqui.

Mas as ações da atual administração no sentido de ampliar o acesso a armas de fogo não contribui em nada. Além do problema de termos um presidente cuja marca registrada é simular armas com as mãos e defender a letalidade policial – ou seja, um pregador do culto citado acima.

“Ao invés de armar professores e colocar detectores de metal em todas as escolas – o que é impossível, tendo em vista que muitas não têm nem merenda ou papel higiênico, precisamos atuar de forma coletiva para desarmas mãos, mentes e corações no que for possível. Mas também nos lembrar que, em última instância, atos de insanidade são atos de insanidade”, afirma.

Para Sakamoto, nossa sociedade, concordemos ou não, vai continuar produzindo situações como essa. “Temos dificuldade de concordar com esse fato porque acreditamos que, criando regras e impondo normas, somos capazes de zerar o risco da morte – o que não é verdade. Jogamos, então, o imponderável para baixo do tapete porque, se pensarmos nele, nem levantamos da cama de manhã para ir trabalhar ou estudar com receio de morrer.

Sim, nossa sociedade gera aberrações por vários motivos e por motivo nenhum. Sim, existe a possibilidade de você cair nas mãos de um perturbado a qualquer momento. Como o caso do rapaz que tinha raiva de garotas e assassinou 12 jovens, que tinham entre 12 e 14 anos, em uma escola em Realengo, em 2011.”

Para muitos desses assassinos, ter explicado que eles podiam ser presos ao cometerem tais atos simplesmente não teria feito diferença, lembrando que, não raro, se matam ao final. Ou seja, o debate sobre a redução da maioridade penal não cabe aqui. E antes de serem baleados pela eventualidade de um "professor armado", já teriam causado um estrago. Armas à disposição deixa tudo muito mais fácil. E se não fossem armas, poderiam ser explosivos. Se não fossem explosivos, gasolina. E se não fosse nada disso, usariam um carro ou um caminhão que avançaria sobre as crianças e adolescentes quando fossem para a rua ao término das aulas – como tem acontecido em várias partes do mundo.

“Por isso, soa inocente ou apenas bravata a declaração do senador Major Olímpio (PSL-SP), dada após a tragédia”, diz.

Procuramos respostas para preencher a falta de sentido e tapar o buraco deixado por perdas dolorosas, como já disse aqui. O problema é que elas não são úteis para resolver nada, nem mesmo para contribuir com os processos simbólicos de luto. Mas são nos momentos de emoção extrema que nossa racionalidade é colocada à prova. Ou seja, que somos chamados a mostrar que deixamos de ser uma horda tresloucada que segue um único instinto, o medo. E não procurar soluções para problemas que dificilmente serão resolvidos.

Se não somos capazes de antever certos atos de insanidade, há coisas que conseguimos minimamente controlar. Por exemplo, evitar que o Estatuto do Desarmamento seja alterado para generalizar o porte de armas, como é defendido pelo presidente.

Não se sabe como ambos conseguiram os revólveres, mas um mercado mais restrito para armas legais significa menos delas em circulação (armas que, muitas vezes, são compradas legalmente por cidadãos ou são de uso restrito da polícia e das Forças Armadas, mas acabaram roubadas ou vendidas, caindo no mercado ilegal) e menor possibilidade de mortes. Podemos não reduzir a ocorrência de tragédias, mas – ao menos – dá para diminuir o seu tamanho.

“Desde que não optemos por responder estupidez com mais estupidez”, reflete o jornalista.

Com um atraso de quase seis horas, Jair Bolsonaro lamentou nas redes sociais a morte das vítimas do massacre da escola de Suzano, em São Paulo. Fez isso numa mensagem bem comportada. Prestou condolências às famílias dos mortos. Chamou o fato pelo nome próprio: "desumano atentado." Qualificou a atitude dos assassinos: "Uma monstruosidade e covardia sem tamanho." No final, o capitão injetou o Todo-Poderoso na conversa: "Deus conforte o coração de todos."

Todos sabem o que Bolsonaro gostaria de dizer. Mas o discurso do capitão foi como que terceirizado. O senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente, também expressou nas redes sociais seus sentimentos de pesar. Mas ele fez um adendo à solidariedade que rendeu aos familiares das vítimas. Escreveu: "Mais uma tragédia protagonizada por menor de idade e que atesta o fracasso do malfadado estatuto do desarmamento, ainda em vigor".

O senador Major Olímpio, hoje a principal voz do PSL, partido de Bolsonaro, no Senado, foi ainda mais explícito. “Ecoando um pensamento que Bolsonaro trombeteia desde a campanha, Major Olímpio disse que a ‘política desarmamentista fracassou’. Daí a necessidade de armar todo mundo. Não é que o presidente, seus filhos e seus aliados não tenham enxergado uma solução para o problema da violência. A questão é que eles ainda não enxergaram nem o problema. Tornaram-se parte da encrenca. A pistola acima de tudo. Depois das mortes, Deus acima de todos”, diz o jornalista Josias de Souza.


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