19/04/2024 - Edição 540

Camaleoa

A morte ainda é o maior espetáculo da humanidade

Publicado em 01/08/2014 12:00 - Cristina Livramento

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Apesar da cidade ter excluído a execução em praça pública de suas atividades rotineiras, a morte ainda causa na população uma espécie de encantamento. Provida de celulares com câmeras e filmadoras, homens, mulheres e crianças assistem a agonia do outro em tempo real que por fim se transformará em relíquia macabra publicada nas redes sociais. 

No dia 13 de julho, dois homens morreram em um acidente de trânsito na avenida Ernesto Geisel, próximo a rua do Aquário. O condutor perdeu o controle do veículo e acabou "abraçado" a uma árvore. No dia 20 de julho, um ciclista morreu ao atravessar na frente de um carro, também na mesma avenida, próximo ao Shopping Norte Sul.

No primeiro, quando a equipe da Perícia chegou ao local e começou a retirar os corpos de dentro do veículo, quem estava perto ou longe passou a fotografar e a filmar o momento. Com exceção da polícia, dos bombeiros, e da imprensa no local, grande parte da população presente estava com os braços levantados com os celulares em punho registrando a morte.

Apesar da cidade ter excluído a execução em praça pública de suas atividades rotineiras, a morte ainda causa na população uma espécie de encantamento.

No segundo acidente, duas mulheres estavam provocando o resto da massa contando que uma terceira mulher teria dado uma versão diferente do acidente e que, com a presença da imprensa, não quis mais falar sobre o assunto. As duas falavam em voz alta que queriam "justiça", exigiam a "verdade" e que se o morto fosse da família delas, a tal justiça já teria sido feita. "A gente teria queimado ela viva aqui mesmo", me disse uma delas.

Das execuções em público aos acidentes de trânsito

De acordo com o site da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a última pena de morte executada no Brasil foi o enforcamento de um rapaz, em 1888, em Minas Gerais, por ter assassinado um produtor rural. Ele foi enforcado no local denominado "Campo do Mel". Apesar das execuções não existirem mais no país, as mortes em acidentes de trânsito parecem carregar a carga emocional dessas punições. Porque assistir a morte de alguém tem uma dose de encantamento pelo macabro, de sadismo, em clima de espetáculo.

Assistir a morte de alguém tem uma dose de encantamento pelo macabro, de sadismo, em clima de espetáculo.

​Na época em que foras da lei eram punidos com a pena de morte em praça pública, a determinação tinha como objetivo coibir novos crimes na população. Não tenho números para pontuar se isso funcionava ou não, mas provavelmente não impedia, por exemplo, que psicopatas, estupradores e pedófilos continuassem agindo indiscriminadamente pela cidade. Os acidentes de trânsito, pela imagem catastrófica, por si só, deveriam servir como exemplo para que a população agisse com mais cautela e prezasse mais pela própria vida e pela vida do outro, mas parece que não funciona bem assim.

Para quê precisamos fotografar um morto sendo retirado de dentro do veículo? Para quê precisamos fazer um vídeo de um homem com perda de massa encefálica, no meio do asfalto, e postar no Youtube?​ Para quê publicar a cena de uma tragédia para seus amigos no Facebook? Que tipo de prazer está ligado a isso? Que tipo de sociedade enaltece a violência, a dor e a tragédia do outro a ponto de transformá-la em reality show?

Será que estamos criando uma realidade paralela inconscientemente em que a dor do outro é sempre um espetáculo e que, aquele que assiste, se torna cada vez mais imune à tragédia, ao sofrimento e a própria morte?

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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