18/04/2024 - Edição 540

Especial

O filho dos sonhos

Publicado em 28/07/2014 12:00 -

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Adoção é um tema que já foi tabu em jantares e almoços de família, numa época em que o medo de que filhos sofressem discriminação por serem adotados induziu muitas famílias a manterem segredo sobre esta condição. Hoje, o assunto costuma ser tratado com mais naturalidade e frequentemente é encarado como a melhor alternativa para casais inférteis. O que antes era uma vergonha passou a ser motivo de orgulho tanto para pais como para filhos: as adoções finalmente se tornaram histórias com finais felizes. Por trás desta nova realidade existe uma clara evolução cultural, que se explica com base em muitas variáveis. Uma delas são os fortes exemplos retratados na mídia.

A cantora Madonna, que teve dois filhos biológicos, aumentou a família com mais duas crianças de origem Maláui. O casal de atores de Hollywood, Angelina Jolie e Brad Pitt, que também tiveram três filhos biológicos, adotaram mais três crianças em situação de vulnerabilidade, vindas de países africanos e asiáticos. No Brasil, a jornalista Glória Maria e a atriz Drica Morais, foram mais duas que ingressaram no rol de quem se tornou mãe por meio de processos de adoção.

Com tantos exemplos de figuras públicas, é natural que o assunto venha à tona com frequência – o que desperta bastante interesse dos aspirantes a pais. Isso é refletido em números: em todo o Brasil há mais de 27 mil candidatos habilitados, entre casais e pessoas solteiras, enquanto existem apenas cerca de 4.800 mil crianças à espera de uma família que as acolha.

Em todo o Brasil há mais de 27 mil candidatos habilitados, entre casais e pessoas solteiras, para cerca de 4.800 crianças à espera de uma família que as acolha.

Esta seria uma equação aparentemente favorável, mas a realidade assume tons sombrios quando constatamos que, na verdade, a demora está na fila de espera pela criança, e não no processo de habilitação, que varia somente de três a seis meses. A espera por crianças dentro do perfil mais desejado – meninas saudáveis de zero a três anos e sem irmãos – pode ser desestimulante. “Nós temos muito mais candidatos do que crianças. A conta não fecha porque os candidatos querem crianças com características específicas”, explica a juíza da Vara de Infância, Juventude e do Idoso da comarca de Campo Grande, Katy Braun.

Em outras palavras, e ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, não é a burocracia na habilitação de pais que faz o processo ser demorado, mas sim a idealização do filho. “Infelizmente, esta realidade vem de uma ideia equivocada de que se consegue controlar o ser humano criando-o desde bebê. o fato da criança vir de uma situação de vulnerabilidade não a transforma num marginal e, além disso, a idade das crianças que temos, de cinco a dez anos, não as tornam inaptas a um novo sistema familiar”, opina Braun.

A maioria das crianças acima de cinco anos, adolescentes, crianças com irmãos ou com deficiência mental ou física, costuma amargar em abrigos até atingirem a maioridade – mesmo com o jogo de cintura de juízes e assistentes sociais, que unem esforços para destinar lares a essas crianças seguindo lógicas complexas. Em resumo, caso a criança se encontre no perfil citado acima, é preciso contar com a sorte – ou com a flexibilidade dos candidatos a pais.

Como a fila anda

His­to­ri­ca­mente, a falta de es­pe­ci­fi­ca­ções le­gais im­pli­cava na exis­tência de uma es­pécie de “co­mércio de cri­anças”, onde ca­sais que não po­diam ter fi­lhos ro­de­avam fa­mí­lias em si­tu­ação de vul­ne­ra­bi­li­dade ofe­re­cendo me­lhores con­di­ções de cri­ação do bebê. Para coibir esse as­sédio, a le­gis­lação atual obriga que todo e qual­quer pro­ce­di­mento de adoção seja in­ter­me­diado pela Vara da In­fância e da Ju­ven­tude.

Em 2009, houve uma al­te­ração no Es­ta­tuto da Cri­ança e do Ado­les­cente (ECA) com o fim de de­finir as­suntos re­fe­rentes à adoção. Porém, a nova le­gis­lação apenas acres­centa ao papel al­gumas di­re­trizes que já eram pra­ti­cadas nos fó­runs bra­si­leiros. No ar­tigo 50 do ECA, por­tanto, con­cen­tram-se as es­pe­ci­fi­ca­ções le­gais do pro­ce­di­mento bá­sico para ha­bi­li­tação. Con­forme a lei, a pri­meira di­re­triz con­siste na obri­gação do poder pú­blico de manter dois ca­das­tros – o de ado­tantes e o de cri­anças aptas à adoção.

O pro­cesso de ha­bi­li­tação, que deve atender um pe­ríodo de pre­pa­ração psi­cos­so­cial e ju­rí­dica, com ori­en­tação da equipe téc­nica das Varas da In­fância e da Ju­ven­tude. “É comum en­con­trar ca­sais que re­clamem do pro­cesso de ha­bi­li­tação, mas cada etapa do pro­cesso é ne­ces­sária, até para ve­ri­ficar se o lar ofe­rece con­di­ções de cri­ação de uma cri­ança”, des­taca Braun.

No caso da fun­ci­o­nária pú­blica Ana The­resa Fa­ci­roli e do téc­nico em ele­trô­nica Ro­berto de Oli­veira, que ado­taram duas me­ninas, uma de dois e outra de sete anos, não há queixa quanto à de­mora. “Na nossa ficha pu­semos a dis­po­ni­bi­li­dade para adotar irmãs, já que nunca pen­samos em ter filho único e assim a nossa adap­tação também seria mais fácil. Por isso, a es­pera foi mí­nima. O pro­cesso de ha­bi­li­tação de­morou cerca de seis meses, no má­ximo. Na fila de adoção, aguar­damos mais seis”, re­velam.

Já para o diretor de infraestrutura Cleiton Silva e para a gestora de marketing, Alessandra Barros, que também adotaram dois irmãos, de dois e três anos, a espera foi de aproximadamente dois anos. “Nossa habilitação quase perdeu a validade, precisaríamos renová-la, mas surgiu a possibilidade de adoção antes desse prazo e depois que a gente mudou a restrição de idade”, dizem.

Com o fim da espera, vem um novo desafio para a família, que é o período de adaptação. No prazo de cerca de seis meses, pais e filhos devem construir vínculos e uma rotina em comum. Caso exista harmonia entre as partes, a guarda definitiva é expedida. “Ter filho nem sempre sai como a gente planeja. No começo foi tudo muito complicado, principalmente com a minha filha mais velha, pois ela já tinha uma personalidade, comum para uma criança de sete anos, mas resistente a novas regras”, explica Ana Theresa Facirolli.

Da mesma forma, Alessandra Barros conta que também enfrentou dificuldades. “Em alguns momentos, durante a primeira semana, eu fiquei muito abalada. Além de ter sido uma mudança brusca, eu tinha acabado de sair de uma fertilização que não deu certo, então eu era uma bomba de hormônios. Pensei em desistir da adoção, pois achei que não ia dar conta. Mas recebi bastante orientação psicológica das técnicas da Vara da Infância, que me disseram o tempo todo que esse sentimento era comum. Graças a Deus a gente já se entendeu. O cenário mudou. Eles são meus filhos”, afirma.

De fato, a adoção não é um processo fácil. Quando surge o sofrimento as famílias precisam procurar ajuda, seja de psicólogo, seja nos grupos de apoio à adoção. A Vara da Infância, Juventude e do Idoso oferece assistência integral aos casais habilitados e com guarda provisória. “É um processo onde todas as partes estão muito sensíveis, e por isso mesmo qualquer desentendimento pode ser compreendido como se algo não estivesse dando certo. Mas as dificuldades iniciais são absolutamente normais. E para contorná-las é que existe esse suporte”, explica a juíza Katy Braun.

Passado o período de adaptação, as famílias costumam ter outro entendimento sobre os problemas comuns nesse processo. Muitas percebem que até famílias com filhos biológicos passam pelos mesmos dilemas. “Depois de todas as dificuldades que passamos, hoje eu estou bem feliz. Às vezes as pessoas fantasiam uma condição, mas na hora de processar tudo percebemos que há muitos desafios. Não é uma felicidade pronta, não é um presente que se desembrulha. É uma felicidade que vai sendo construída”, conclui Ana Theresa.

Requisitos

Em pri­meiro lugar, os can­di­datos pre­cisam par­ti­cipar de um curso prá­tico de 8h, com in­for­ma­ções ju­rí­dicas, so­ciais e psi­co­ló­gicas sobre a adoção, ofe­re­cido gra­tui­ta­mente pelas Varas de In­fância e Ju­ven­tude (em Campo Grande, ele é re­a­li­zado a cada dois meses, nor­mal­mente). “O Casal passa por esse curso, tem uma ideia geral, tira as dú­vidas e se a adoção for aquilo que ele al­me­java, é só for­mular um pe­dido e apre­sentar do­cu­mentos. O pro­cesso de aná­lises cos­tuma de­morar de três a seis meses e in­clui uma série de laudos que gui­arão o po­si­ci­o­na­mento do juiz”, aponta Braun.

Neste ponto, mais uma vez se con­firma que a mo­ro­si­dade do pro­cesso de adoção está na es­colha de ca­rac­te­rís­ticas es­pe­cí­ficas da cri­ança. Prova disso é que se can­di­dato con­se­guiu ha­bi­li­tação e de­seja um perfil que existe no ca­dastro, ela já pode re­ceber a cri­ança no dia se­guinte. “Nesse caso, a de­mora no pro­cesso de adoção é apenas o tempo de acom­pa­nha­mento, que é es­ta­be­le­cido nor­mal­mente em seis meses, mas o casal já con­vive com a cri­ança. Du­rante esta guarda pro­vi­sória, tanto a cri­ança como o casal pode de­sistir do pro­cesso e nós acom­pa­nhamos isso tudo, co­lo­cando-nos a dis­po­sição nos con­flitos que sur­girem”, con­clui.

O outro lado

Além de evitar o “co­mércio de bebês”, a in­ter­venção do ju­di­ciário no pro­cesso de adoção também per­mite que as fa­mí­lias que estão em si­tu­ação de vul­ne­ra­bi­li­dade so­cial re­cebam apoio do poder pú­blico para se for­ta­le­cerem e fi­carem com seus fi­lhos. Na mai­oria dos casos, as pes­soas en­tregam seus fi­lhos por li­mi­ta­ções fi­nan­ceiras. Mas, se houver afeto, mo­ti­vação e in­te­resse, há pos­si­bi­li­dade de se pro­vi­den­ciar en­con­trar con­di­ções para que as cri­anças sejam cri­adas com os pais bi­o­ló­gicos em vez de ado­tivos.

En­tre­tanto, a pro­porção de apro­xi­ma­da­mente 3,7 can­di­datos para cada cri­ança apta a adoção no es­tado é ali­men­tada por di­versos fa­tores, sendo o prin­cipal deles a in­ca­pa­ci­dade dos pais cui­darem dos fi­lhos – prin­ci­pal­mente em função do con­sumo de drogas. É um fenô­meno re­la­ti­va­mente novo, já que an­ti­ga­mente os pro­blemas com pais usuá­rios de en­tor­pe­centes se con­cen­travam em con­su­mi­dores de ál­cool. “Hoje, mu­lheres e ho­mens estão cada vez mais en­vol­vidos com o con­sumo de drogas pe­sadas, o que faz com que a mai­oria es­teja in­capaz de cuidar dos pró­prios fi­lhos. A mai­oria das cri­anças ado­tá­veis que nós temos hoje são pro­ve­ni­entes de lares em que os pais são de­pen­dentes quí­micos”, re­vela Braun.

Adoção Tardia e o Cadastro Nacional

Adoção tardia é um termo usado para es­pe­ci­ficar pro­cessos de adoção de cri­anças com mais de sete anos. É comum pensar que essas cri­anças fi­caram nos abrigos desde recém-nas­cidas e que a mo­ro­si­dade da jus­tiça não as dis­po­ni­bi­lizou para adoção. A ver­dade é que a si­tu­ação de vul­ne­ra­bi­li­dade dessas cri­anças muitas vezes só é per­ce­bida quando ela vai à es­cola. São cri­anças que já chegam aos abrigos com mais de cinco anos, o que faz com que seja di­fícil a co­lo­cação delas em lares ado­tivos.

Também com o fim de gerar mais opor­tu­ni­dades de adoção para cri­anças com esse perfil, foi criado um ca­dastro na­ci­onal, ins­ti­tuído pelo Con­selho Na­ci­onal de Jus­tiça (CNJ), que reúne todas as cri­anças ado­tá­veis do país numa única re­lação. No caso de Mato Grosso do Sul, todas as cri­anças aptas à adoção estão no ca­dastro.

Como todos os can­di­datos a ado­tantes também têm o nome in­cluído na lista, há pos­si­bi­li­dade de que o perfil de cri­ança de­se­jado seja se ou­tras lo­ca­li­dades. “O ca­dastro per­mite essas pes­quisas mais am­plas, que nos ajudam a mo­vi­mentar a fila. Já acon­teceu, por exemplo, de ca­sais de Mato Grosso do Sul ado­tarem cri­anças de ou­tros es­tados. Da mesma forma, já foram en­con­trados pre­ten­dentes de cri­anças sul-mato-gros­senses oriundos de ou­tros es­tados”, ex­plica Braun.


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