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Artigo da Semana

A área de Direitos Humanos de Bolsonaro vai poder acusar o próprio governo?

Publicado em 07/12/2018 12:00 -

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Ao escolher a assessora parlamentar e pastora Damares Alves para chefiar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Jair Bolsonaro cria mais uma distração.

Basta que ela continue dando, à frente da pasta, as mesmas declarações polêmicas registradas nos últimos anos que conseguirá alimentar guerras culturais e comportamentais, provocando indignação e júbilo – dependendo do ponto de vista. Isso alimenta a militância radical e tira o foco da atenção da sociedade que, enquanto discute a separação entre Igreja e Estado, não vai perceber quando outros setores do governo atuarem para reduzir o já diminuto Estado de bem-estar social.

Segundo a nova ministra, a mulher "nasceu para ser mãe", que é seu "papel mais especial". E como "as instituições piraram nesta nação", menos a "igreja de Jesus", portanto, "é o momento de a igreja governar". Afirmou que não considera a questão do aborto como um "tema de saúde pública", apesar do 1 milhão de abortos induzidos e das 250 mil mulheres internadas devido a procedimentos inseguros de interrupção da gravidez, todos os anos, de acordo com o Ministério da Saúde.

A área de Direitos Humanos do governo federal, desde seu nascimento sob a gestão Fernando Henrique, nunca foi um ministério com grande orçamento. Sua importância reside no papel de articulador na Esplanada dos Ministérios, no Congresso Nacional e nos Tribunais Superiores, inserindo o tema de forma transversal nas políticas e preocupações públicas. Em suas comissões e conselhos, lida com assuntos que vão dos direitos de pessoas com deficiência, passando pelos da população LGBTT e de crianças e adolescentes até o combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas.

Como assume a função de "advogado" e "ombudsman" das minorias, deve estar preparado para bater de frente com o próprio Estado quando ele permite ou é ator de violação de direitos. Como na época do Massacre de Eldorado dos Carajás. Ou por conta das violações à dignidade humana na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.

A política adotada pela pasta não tem sido imposta por um bando de aliens-comunistas-gayzistas-globalistas do Foro de São Paulo, mas é orientada pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, que está em sua terceira edição, produzido através de participação da sociedade com milhares de debates em uma série de conferências municipais, estaduais e nacional.

Jair Bolsonaro, repetidas vezes, atacou a "ideologia" como um dos principais males do Brasil. Segundo ele, durante a campanha eleitoral, "a questão ideológica é tão, ou mais grave, que a corrupção. São dois males a ser combatidos".

Agora, escolhe profissionais que prometem erguer bandeiras ideológicas que ele próprio defendeu na campanha. O que nos leva a crer que o problema não é a ideologia, mas a ideologia do outro. Primeiro, foi o Ministério das Relações Exteriores, depois o da Ministério da Educação, agora a pasta que cuida de Direitos Humanos.

Assim, animando as turmas do fundamentalismo religioso e da extrema direita, aliados de primeira hora, mantém o seu engajamento como peça-chave para um governo que pretende seguir com a campanha eleitoral acesa até o seu último dia.  A distração entretém a massa ultrapolarizada.

Iremos celebrar, na próxima segunda (10), os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu o documento para tentar evitar que esses horrores se repetissem. É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela entre 1939 e 1945. Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.

Ao contrário do naco ignorante que acha que "direitos humanos é coisa de bandido", na verdade dizem respeito à garantia de não ser assaltado e morto, de professar a religião que quiser, de abrir um negócio, de ter uma moradia, de não morrer de fome, de poder votar e ser votado, de não ser escravizado, de poder pensar e falar livremente, de não ser preso e morto arbitrariamente pelo Estado, de não ser molestado por sua orientação sexual, identidade, origem ou cor de pele.

Uma parte radical e minoritária do eleitorado de Bolsonaro não votou nele pelo antipetismo ou pelo desejo de mudança, mas pela efetivação de posições ultraconservadoras na pauta cultural e comportamental, e quer seu desejo atendido. Contudo, ele foi eleito para governar para toda a população – democracia é o governo em que a vontade da maioria é respeitada, desde que garantidos os direitos das minorias. Caso esqueça disso, não terá apenas a sociedade civil e os movimentos sociais que considera terroristas protestando contra ele, mas parte do mercado.

Como tenho dito aqui, importadores e investidores estrangeiros não titubeariam em ameaçar com barreiras comerciais não-tarifárias caso o Brasil descuidasse do respeito aos direitos humanos, como já aconteceu anteriormente, como na situação dos carvoeiros superexplorados que forneciam para siderúrgicas. O próprio Donald Trump adotou o discurso de que não aceitará a concorrência desleal de produtos estrangeiros, produzidos com trabalho escravo e infantil ou ao custo da dignidade de outras pessoas, competindo com mercadorias norte-americanas – não porque ele é bonzinho, mas porque é protecionista. Ou seja, gostando ou não, a defesa dos direitos humanos, por mais hipócrita que seja quando vem de alguns países que bombardeiam primeiro e investigam depois, vão ser cada vez mais usados para justificar barreiras comerciais, quer gostemos disso ou não.

A imprensa internacional, horrorizada com declarações quanto à dignidade e à democracia do então candidato, pintou um retrato sinistro do novo governo ao mundo e estará de olho. E não estamos falando do Granma cubano, mas da Economist inglesa – que acredita que liberalismo econômico sem direitos garantidos não é sustentável. Durante o nosso último período autoritário, atores internacionais desempenharam um papel importante para a garantia dos direitos humanos no Brasil. Agora, conectado a um mercado e a uma comunidade globais, a influência externa tende a ser ainda maior.

Damares Alves afirmou, ao ser questionada sobre a questão do aborto, que "essa pasta vai lidar com proteção de vida e não com morte". Mas mortes acontecem, infelizmente. O que fará a ministra dos Direitos Humanos de Bolsonaro diante de novas chacinas de trabalhadores ou de populações tradicionais pelas mãos de uma parcela arcaica dos produtores rurais ou da minoria de policiais que agem como milícias (grupos que apoiaram a chegada do novo governo)?

Quando tragédias como essas acontecem, espera-se que ministros dessa pasta critiquem o Estado por deixar a situação chegar naquele ponto, peçam a punição urgente dos responsáveis e ajudem a sociedade a não esquecer dos responsáveis. A ministra – que prometeu não ser orientada por opiniões pessoais, mas pelas necessidades do cargo – terá autorização para fazer o mesmo ou culpará comunistas pelas catástrofes do mundo, como outros na Esplanada dos Ministérios?

Leonardo Sakamoto – Jornalista e cientista social. Edita o Blog do Sakamoto no UOL.


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