29/03/2024 - Edição 540

Mundo

Implantes ferem (e às vezes matam) pacientes ao redor do mundo

Publicado em 29/11/2018 12:00 -

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De Amsterdã a Seul, de Lima a Mumbai e até na pequena cidade americana de Hiawassee, no estado da Geórgia, implantes médicos fazem adoecer, mutilam e às vezes até matam as pessoas para as quais foram projetados para ajudar.

Autoridades do campo da saúde foram incapazes de proteger milhões de pessoas que receberam próteses testadas de forma inadequada – e que podem perfurar órgãos, provocar descargas elétricas no coração, apodrecer os ossos e envenenar a corrente sanguínea, ejetar uma overdose de opioides e causar outros danos desnecessários, conforme revelou uma investigação global realizada ao longo de um ano pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (o ICIJ, na sigla em inglês).

Os governos impõem padrões de segurança menos rígidos para implantes complexos, concluiu o ICIJ, do que para a maioria dos remédios novos. Aparelhos defeituosos permanecem no mercado enquanto o número de pacientes prejudicados aumenta. E, em um sistema global sem restrições, as empresas deixam de comercializar os implantes em alguns países enquanto seguem vendendo em outros.

Para a maioria das pessoas, dispositivos médicos são um benefício claro, e implantes complexos podem significar melhorias à saúde e vidas salvas. Mas a investigação do ICIJ questiona se a indústria de dispositivos – que afeta a vida de bilhões de pessoas – está colocando em risco milhões de pacientes, que podem sofrer graves prejuízos à saúde desnecessariamente, na sua busca por maiores lucros.

Ao redor do mundo, em centenas de entrevistas ao ICIJ, como parte da investigação do Implant Files, pacientes dizem que não foram alertados sobre riscos cruciais e descreveram uma série de complicações terríveis. Na África do Sul, Renate Scheepers, de 51 anos, foi chamada para fazer uma cirurgia este mês para remover da sua bexiga um implante em forma de malha que fora colocado para tratar incontinência urinária, depois de ela ter aguentado durante anos crises de dores insuportáveis no abdômen. Mais de 100 mil mulheres no mundo todo processaram os fabricantes alegando terem sido prejudicadas por implantes como o de Scheepers, que apresentaram defeitos.

Na Índia, Vijay Vojhala, um ex-vendedor de equipamentos hospitalares de 44 anos, tem problemas com a visão, dificuldades de locomoção e batimentos cardíacos irregulares – problemas que atribui a uma prótese de quadril da marca Johnson & Johnson apontada como responsável por envenenar milhares de pacientes. Mais de meio milhão de pessoas receberam implantes de quadris do tipo “metal-metal” que foram retirados ou recolhidos do mercado.

Nos Estados Unidos, Charlissa Dawn Boyce, de 27 anos, morreu depois de um desfibrilador da marca St. Jude Medical – posteriormente retirado do mercado – ter apresentado problemas na bateria, que deixou de produzir o choque necessário para manter o batimento cardíaco da paciente, segundo defende sua família em um processo judicial no estado de Tennessee. Cerca de 350 mil aparelhos foram implantados em pacientes ao redor do mundo antes de serem recolhidos em massa, em 2016, por causa de suas baterias defeituosas.

“É inaceitável continuar mantendo esse sistema”, disse Carl Heneghan, epidemiologista da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que tem estudado a regulamentação de aparelhos médicos. “Em dado momento, os pacientes levantam a mão e dizem: ‘Estamos sofrendo um dano catastrófico.’ Mas, quando isso acontece, geralmente já se passaram anos e uma quantidade significativa de pessoas já foi prejudicada.”

O projeto Implant Files é a primeira investigação global sobre a indústria de aparelhos médicos e as instituições que os regulamentam. Jornalistas do ICIJ e uma equipe de 252 repórteres e especialistas em dados de 59 organizações em 36 países examinaram centenas de casos ao redor do mundo. A investigação tem como base um trabalho jornalístico construído na Holanda por Jet Schouten, uma jornalista investigativa do canal da empresa de radiodifusão pública Dutch Public Broadcasting que fez parte da equipe internacional.

O Implant Files revela uma indústria altamente competitiva que tem entrado em conflito inúmeras vezes com autoridades internacionais nos âmbitos judiciário e financeiro e no campo da saúde. Além disso, tem utilizado sua influência política regional para pressionar a fiscalização apressando a emissão de licenças e diminuindo os padrões de segurança. Fabricantes pagaram pelo menos 1,6 bilhão de dólares desde 2008 em reparações por acusações de corrupção, fraude e outras violações regulatórias nos Estados Unidos e em outros países, de acordo com dados do Departamento de Justiça e a Comissão de Títulos e Câmbio dos Estados Unidos examinados pelo ICIJ.

Eles pagaram também bilhões de dólares a pacientes. Desde 2015, apenas uma empresa, a Johnson & Johnson, fez acordos para pagar – ou foi condenada a pagar – 4,3 bilhões de dólares a pessoas nos Estados Unidos que dizem ter sido machucadas por próteses de quadril, implantes em malha e grampos cirúrgicos.

Governos de dezenas de países na África, Ásia e América do Sul não têm um sistema de regulamentação própria para dispositivos médicos e depositam a sua confiança nas autoridades europeias e na Food and Drug Administration, FDA, órgão americano responsável pela regulação de medicamentos, geralmente reconhecida por fazer uma supervisão mais robusta do que qualquer outra organização de saúde do mundo.

No entanto, especialistas e advogados dos pacientes dizem que mesmo essa supervisão deixa a desejar, com dispositivos aprovados de forma muito rápida pelas autoridades americanas, enquanto os defeituosos não são retirados dos hospitais com a rapidez necessária. E a FDA está cogitando afrouxar ainda mais a regulamentação para poder inserir novos dispositivos no mercado com bem menos testes do que antes. Essa tentativa é vista como parte de uma iniciativa maior para consolidar os Estados Unidos como competidor da Europa no mercado, o que oferece aos fabricantes a oportunidade de conseguir aprovar os seus produtos com ainda mais rapidez.

Ao longo da investigação do Implant Files, o ICIJ e seus parceiros fizeram mais de 1 500 pedidos por meio da Lei de Acesso à Informação e coletaram mais de 8 milhões de documentos ligados a implantes. Isso inclui pedidos de recolhimento do mercado (recalls), alertas de segurança, documentos legais e registros financeiros corporativos.

A maior parte desse conjunto, mais de 5,4 milhões de documentos, são relatórios de eventos adversos enviados à FDA ao longo da última década. Esses documentos vêm de médicos, fabricantes, pacientes e até advogados e descrevem aparelhos com suspeita de terem causado, ou contribuído para algum tipo de dano ou morte, ou mostrado alguma falha de funcionamento que provavelmente levaria a algum dano maior se continuassem em circulação.

A análise feita pelo ICIJ revela que implantes médicos que quebraram, apresentaram falha na ignição, sofreram corrosão, romperam ou pararam de funcionar depois da inserção – apesar de os órgãos reguladores, a indústria e os médicos dizerem que os aparelhos eram seguros – estão ligados a 1,7 milhão de lesões e cerca de 83 mil mortes na última década, nos Estados Unidos e em outros países, segundo dados da FDA. Cerca de 500 mil documentos mencionaram um “explante”, cirurgia feita para remover o aparelho.

Em alguns casos, a conexão entre a descrição do dano causado e o relatório de evento adverso não está clara. A FDA diz que a análise desses relatórios não pode ser a única indicação para tirar conclusões sobre a segurança de um aparelho e a sua relação com mortes ou lesões.

De qualquer maneira, a análise do ICIJ, que incluiu a identificação de aparelhos que às vezes foram listados sob a nomenclatura de centenas de marcas, com várias designações ou ortografias diferentes, oferece um compilado inédito sobre a segurança de equipamentos médicos. Foi lançada, inclusive, uma nova base de dados para rastrear implantes médicos defeituosos pelo mundo.

Os registros, porém, contam apenas uma parte da história. Muitas vezes os médicos e fabricantes não denunciam eventos adversos, e quando isso é feito a informação está incompleta ou não foi verificada. Em outras partes do planeta, autoridades no campo da saúde se recusam a ser transparentes com o público sobre os danos causados, ou simplesmente nem chegam a coletar esses dados.

Na União Europeia, órgãos reguladores têm reunido relatórios de ferimentos e falhas técnicas que crescem de forma alarmante a cada ano, mas se recusam a publicar os dados alegando que as informações estão sob sigilo industrial e que isso serviria apenas para assustar sem necessidade o público. No Chile, autoridades na área da saúde disseram a parceiros do ICIJ que relatórios de eventos adversos são feitos de maneira voluntária e que em uma década receberam apenas quatro denúncias, das quais apenas uma estava relacionada a um implante. No México, as autoridades não divulgam dados sobre eventos adversos.

Quando fabricantes de dispositivos e agências reguladoras se tornam cientes de algum problema, o alerta não chega aos médicos e muito menos aos pacientes. Às vezes fabricantes fazem pedidos de recall das peças ou emitem alertas de segurança (isso pode significar qualquer coisa, desde colocar um rótulo simples de advertência ou remover imediatamente o aparelho do mercado) em alguns países, mas não em outros. Enquanto a indústria de automóvel pode entrar em contato com os donos dos carros para avisar que existem falhas na segurança que requerem alguns ajustes, a indústria de aparelhos médicos e seus clientes, os hospitais, não conseguem entrar em contato com as pessoas que fizeram implantes.

Como não existe um registro global de recalls de dispositivos médicos, o ICIJ decidiu criar um. A Base Internacional de Dados sobre Dispositivos Médicos (IMDD, na sigla em inglês) reúne, pela primeira vez, informações sobre aparelhos que foram recolhidos, alertas de segurança e avisos de segurança de campo – mais de 70 mil em onze países – para criar um portal acessível onde se pode pesquisar qualquer aparelho flagrado com algum problema de segurança oficial. Como não existe consenso sobre um método para a identificação de aparelhos, o ICIJ criou ferramentas para dar aos usuários a habilidade de pesquisar informações sobre o histórico de segurança dos aparelhos, mesmo se a descrição do produto for diferente em outros países.

A análise que o ICIJ fez dos dados da IMDD demonstrou que ao longo da última década fabricantes registraram mais de 2 100 remoções de dispositivos médicos que classificam como “classe 1”, o que significa aparelhos defeituosos que possuem “probabilidade razoável” de causar “sérios danos à saúde ou morte”. Alguns casos poderiam ser resolvidos facilmente com atualização de software ou com uma simples alteração nas instruções; já outros envolviam aparelhos implantados em milhões de pacientes, o que levou a milhares de extrações cirúrgicas.

A indústria dos dispositivos médicos é grande e cresce rapidamente. As vendas anuais mais do que dobraram, de 118 bilhões de dólares no ano 2000 para cerca de 400 bilhões de dólares em 2018. Um fundo composto de ações de ponta no mercado dos aparelhos médicos gerou lucros de 125% nos últimos cinco anos (em 14 de novembro) em comparação com os 52% da economia como um todo, segundo o índice de investimento Standard & Poor’s 500.

O maior mercado para os aparelhos médicos – pessoas de 65 anos ou mais – deve ter um crescimento de mais de 60%, para cerca de 1 bilhão de pessoas até 2030, disse uma analista de investimentos da UBS, empresa de serviços financeiros com sede em Zurique, na Suíça.

A indústria tem inúmeras histórias de sucesso para comemorar. Reguladores de batimentos cardíacos têm salvado a vida de milhões de pacientes com doença cardíaca. Próteses ortopédicas, que estão entre os implantes médicos mais utilizados, têm ajudado a colocar milhões de pessoas de pé, até pessoas que foram atingidas por câncer nos ossos. De acordo com a AdvaMed, um dos grupos considerados líderes de venda, implantes de lentes intraoculares restauraram a visão de 36 milhões de pessoas só nos Estados Unidos.

Em fevereiro, Omar Ishrak, CEO da Medtronic, a maior fabricante de dispositivos médicos do mundo, disse que os produtos da sua companhia ajudam mais de 70 milhões de pacientes por ano – o equivalente a melhorar duas vidas a cada segundo.

Em um comunicado escrito ao ICIJ, a AdvaMed enfatizou que durante testes clínicos é bem mais difícil randomizar implantes do que remédios e argumentou que dispositivos médicos devem ser testados de maneira diferente do que os farmacêuticos. “Sugerir que testes humanos mandatórios poderiam acabar com danos futuros leva erroneamente os pacientes e o público a falsamente pensar que todos os eventos adversos podem ser eliminados com tais testes”, afirmou Janet Trunzo, chefe de tecnologia e regulação da AdvaMed.

A AdvaMed questionou também a ideia de que a indústria tenha dificuldades em contatar pacientes depois que os produtos são retirados do mercado. “Aparelhos médicos de alto risco, especialmente implantes que sustentam a vida do paciente, têm procedimentos de rastreamento específicos que são previstos para assegurar que as empresas possam rapidamente notificar os pacientes e provedores sobre qualquer questão significante”, disse Janet Trunzo.

Em resposta escrita às perguntas feitas pelo ICIJ, a FDA afirmou que a segurança do paciente “é e continuará sendo um fundamento” de seu comprometimento com a regulamentação. Reconheceu “limitações” na capacidade de “pronta e consistentemente” identificar os riscos de segurança que um aparelho pode apresentar depois de seu lançamento no mercado e disse que está liderando um esforço para criar um programa que reúna informações clínicas e outros dados para detectar problemas com mais agilidade.

Na terça-feira, 20 de novembro, a agência anunciou que está estabelecendo uma “nova meta importante e ambiciosa” de ser “constantemente a primeira entre as agências reguladoras a identificar e agir quando surgirem sinais de segurança relacionados a dispositivos médicos”.

Até os críticos mais duros da indústria reconhecem que seria impossível criar produtos que não colocam os pacientes em risco, especialmente aqueles que têm como função manter um paciente vivo.

Mas repetidas vezes os pacientes são expostos a produtos que já causaram sérios danos que poderiam ter sido prevenidos. Esses acidentes se desenvolvem às escuras, em câmera lenta, durante anos, em quartos e hospitais ao redor do mundo.

O Essure, um implante de metal em forma de mola, foi inserido nas trompas de Falópio, no útero, de mais de 1 milhão de mulheres. Depois, milhares delas disseram ter sofrido ferimentos graves, incluindo perfuração do útero, que causaram dores e sangramentos. Dados de eventos adversos nos Estados Unidos analisados pelo ICIJ incluem descrições de cerca de 8 500 casos ao longo da última década que requereram a remoção do Essure do corpo das pacientes.

Em 2017, a Bayer escreveu para os médicos europeus e pediu que interrompessem o uso do produto e estabelecessem “condições de quarentena temporária aos produtos que sobraram no estoque até nova ordem”. Logo em seguida, a empresa suspendeu a venda em todos os países, exceto nos Estados Unidos.

Em maio, Misty Holliman, de 26 anos, mãe de quatro filhos que mora perto de Irving, no Texas, recebeu um implante do Essure. Ela é uma das mais de 200 pacientes que contaram ao ICIJ, ou a um de seus parceiros, que não havia sido avisada dos riscos cruciais à sua saúde antes do implante.

Em julho, a Bayer anunciou que pararia de vender o produto nos Estados Unidos até o final de 2018. Em um comunicado ao ICIJ, a empresa disse que decidiu retirar os aparelhos do mercado global por motivos comerciais, e não por preocupações com a saúde dos pacientes, e acrescentou ainda que houve um declínio no uso de anticoncepcionais permanentes e que existe “publicidade enganosa e incorreta a respeito do dispositivo”. A Bayer mencionou também que as mulheres que estão processando a empresa são as mesmas que geraram muitos dos relatórios de acontecimentos adversos apresentados à FDA.

Misty agora sofre de dores severas na região pélvica. Ela pode precisar fazer uma cirurgia de histerectomia, mas não tem condições de pagar pelo procedimento. “Não consigo ver o que está acontecendo dentro do meu corpo”, diz ela. “E não consigo tirar isso de mim.”

Os critérios modernos de teste de medicamentos foram adotados logo depois de um escândalo que abalou o mundo. No final da década de 50 e início dos anos 60, a talidomida, um medicamento para tratar enjoos durante a gravidez, levou dezenas de milhares de crianças a nascer com deformações nos membros e uma série de outros defeitos de nascença. Até 40% dos bebês que tiveram uma exposição significativa ao produto morreram na infância, e muitas mulheres sofreram abortos espontâneos e tiveram filhos natimortos.

Uma enxurrada de novas regulamentações no campo farmacêutico surgiu como consequência. Apesar dos custos associados a isso, fabricantes de medicamentos foram obrigados a demonstrar indícios clínicos de que seus produtos eram seguros e efetivos antes de chegarem ao mercado.

A indústria de dispositivos médicos demorou mais a atrair atenção das reguladoras, conseguindo evitar ser supervisionada até 1976 nos Estados Unidos e até 1990 na Europa. Desde o início, a indústria argumentou que os aparelhos médicos deveriam ter um tratamento diferenciado dos medicamentos.

O critério aceito internacionalmente para a aprovação de novos medicamentos indica que pelo menos um ensaio clínico, controlado e aleatório, aplicado em cobaias humanas, precisa demonstrar segurança e eficácia.

Nos Estados Unidos, fabricantes de medicamentos precisam demonstrar “provas consistentes” da segurança e eficácia de um novo produto, e geralmente se requerem três testes. Para implantes médicos, o parâmetro é obter “garantias razoáveis”, o que geralmente significa um único estudo sem necessidade de um ensaio clínico controlado e aleatório, em que grupos de pacientes recebem tratamentos diferentes e os resultados são comparados.

Mas às vezes até esse padrão é apenas na teoria. Menos de 5% dos aparelhos examinados pela FDA passam pelo tal processo de aprovação pré-mercado. Reguladores permitem que os dispositivos sofram mudanças drásticas – e às vezes até decisivas – por meio de procedimentos elaborados para acrescentar apenas mudanças mínimas.

A maioria dos aparelhos é aprovada por meio de um sistema de liberação que compara se o produto é “substancialmente equivalente” a outros existentes no mercado, ou se é parecido com versões anteriores do mesmo produto.

Na medida em que se usa o critério da equivalência, ou seja, o dispositivo é comparado com suas versões anteriores, muitas vezes um novo aparelho médico nem sequer lembra a sua versão original. Uma pesquisa publicada pelo British Medical Journal, parceiro do ICIJ, mostrou que na origem da árvore genealógica de 61 produtos cirúrgicos em forma de malha estão dois produtos originais aprovados em 1985 e 1996. Nenhum deles havia completado um teste clínico quando foram aprovados.

Pacientes que tomam medicamentos de baixa qualidade podem jogar o frasco dos comprimidos no lixo, alerta Adriane Fugh-Berman, professora da Universidade Georgetown que estuda práticas de marketing na área de saúde. Pessoas com um implante desnecessário ou que funciona mal podem acabar ficando com aquilo dentro do corpo para o resto da vida. “Você pode ficar aleijado para sempre”, disse.

Em 2004, a empresa americana Medtronic recebeu aprovação para uma versão atualizada de um cabo, ou eletrodo, usado para conectar o seu aparelho desfibrilador ao coração. Denominado “Sprint Fidelis”, o eletrodo era bem mais fino que as versões anteriores, uma inovação considerada vantajosa porque fios mais finos são mais ágeis e fáceis de manusear.

Ao longo dos três anos seguintes, o Sprint Fidelis foi implantado em estimadamente 268 mil pacientes ao redor do mundo.

Em janeiro de 2007, Serry Robinson, de 32 anos, estava se preparando para ir para a cama, na sua casa em Sechelt, uma comunidade que fica na costa próximo a Vancouver, no Canadá, quando um choque atordoante fez saltar o seu peito. “Eu vi uma luz branca passar pelos meus olhos. Doeu muito. Eu pensei: ‘Fui atingida por um raio.’”

O aparelho utilizado por Serry foi projetado para devolver o batimento cardíaco ao coração, mas testes em hospitais revelaram que a ignição estava falhando. Antes de ser desativado, um Sprint Fidelis que possuía um eletrodo defeituoso deu dezoito choques em Serry.

“Quase ninguém pode tolerar uma carga de múltiplos choques”, disse, cerca de uma década depois, um cardiologista em relatório do Serviço de Pesquisa do Congresso. “Depois de um segundo ou terceiro choque, a ansiedade da possibilidade de receber mais choques leva rapidamente ao terror.”

No mesmo mês, os médicos removeram o aparelho defeituoso com mais uma cirurgia e simplesmente inseriram outro Sprint Fidelis.

Em julho de 2007, em Minnesota um cardiologista publicou um estudo demonstrando que o Sprint Fidelis apresentava falhas em uma taxa muito mais elevada do que o esperado e estava dando choques em pacientes.

A empresa retirou o aparelho do mercado em outubro de 2007.

Dois anos depois, a Medtronic reconheceu que os Sprint Fidelis com cabos defeituosos podem ter causado treze mortes.

O desempenho do produto se deteriorou ao longo do tempo. Um estudo de 2015 descobriu que, em cerca de mil pacientes na França, um em cada cinco eletrodos quebrou depois de cinco anos. Pacientes mais jovens e mais ativos estavam ainda mais vulneráveis.

Uma análise de relatórios de eventos adversos da FDA feita pelo ICIJ descobriu que na última década esses relatos da Medtronic e outros agentes relacionaram diversos modelos de Sprint Fidelis a mais de 8 mil ferimentos e 2 mil mortes.

Apesar de a FDA considerar o Sprint Fidelis um aparelho de alto risco, ele não foi testado em nenhum paciente: a agência aprovou-o como um “suplemento” a uma versão anterior aprovada havia uma década.

A Medtronic não respondeu a nenhuma pergunta relacionada ao Sprint Fidelis, mas disse que não leva nenhum dispositivo ou tratamento ao mercado “a não ser que, e até confirmarmos que o produto é seguro e eficaz no tratamento da condição médica em questão”. A empresa afirmou também que continua monitorando a segurança e o desempenho de dispositivos depois que chegam ao mercado.

 

Novas versões de dispositivos médicos de alto risco têm sido aprovadas e chegam ao mercado por um sistema de equivalência “express” chamado 510(k). Em 2009, uma auditoria da Secretaria Fiscal do Governo dos Estados Unidos criticou a FDA por ter aprovado aparelhos de alto risco pelo 510(k) apesar de uma decisão do Congresso ter proibido isso mais de uma década atrás.

Dois anos depois, o Instituto de Medicina, que agora faz parte da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina, solicitou à FDA acabar de vez com o programa 510(k). A agência rejeitou a recomendação, alegando que isso seria inviável.

Implantes de alto risco continuam chegando ao mercado utilizando o 510(k) como brecha – o ICIJ encontrou pelo menos 42 casos desde 2011. Seis destes, incluindo uma série de desfibriladores e seus monitores, foram alvo de catorze pedidos de recall.

Janice Hogan, advogada da indústria de implantes médicos especialista em engenharia biomecânica, alerta que, apesar da inscrição para obter um 510(k) ser relativamente simples, muitos incluem testes com seres humanos e milhares de páginas de documentação. “A FDA tem bastante poder de decisão sobre qual documentação é necessária.”

Em resposta por escrito ao ICIJ, a FDA afirmou que não havia liberado nenhum implante de alto risco por meio do 510(k) em 2017. “Ao longo dos últimos anos, a FDA tem concentrado os seus esforços para garantir a exigência de um nível apropriado de testes”, escreveu. Em alguns casos, a agência requer “testes exaustivos” para aparelhos sujeitos ao 510(k), o que requer mais estudos.

A FDA diz que ensaios clínicos e testes em pacientes não são adequados nem necessários para a maioria dos implantes. A eliminação do sistema de aprovação “express” “não iria necessariamente garantir a segurança do paciente, mas poderia resultar em aumento de custo e atrasos desnecessários e desviar os recursos da FDA dos estudos e das avaliações de dispositivos novos de maior risco”, disse a agência.

Janet Trunzo, representante da fabricante AdvaMed, questionou a noção de que ensaios clínicos de peso sejam necessários para a aprovação de um dispositivo médico, alegando existirem outras maneiras de fazer os testes fora do ambiente clínico – por exemplo, no laboratório, onde seria possível obter resultados mais precisos.

O sistema de aprovação de implantes na Europa é ainda mais favorável às empresas. Na verdade, é um negócio. Fabricantes de aparelhos pagam empresas privadas, conhecidas como “organismos notificados”, para certificar que na Europa os dispositivos de alto e médio risco atendem aos padrões de segurança.

Empresas de grande porte, incluindo o grupo BSI, do Reino Unido, e os grupos alemães TUV Rheinland e TUV Sud, marcam os implantes médicos com o selo “CE”, utilizado na Europa em produtos domésticos como torradeiras, fogos de artifício e brinquedos infantis, para certificar ao consumidor que aquele objeto cumpre os “requisitos básicos” de segurança e normas ambientais.

Uma das grandes vantagens da indústria é que a maioria desses “organismos notificados” não precisa respeitar as leis seguidas pelas agências governamentais, que são obrigadas a providenciar registros públicos da documentação relacionada à aprovação dos aparelhos. Isso é preocupante especialmente no caso dos implantes.

De acordo com uma troca de e-mails entre agentes de saúde de alto escalão da Alemanha e da Dinamarca, 90% dos aparelhos de alto risco não enviaram dados de ensaios clínicos para reguladoras da União Europeia porque os produtos foram avaliados como suficientemente parecidos com outros já existentes no mercado.

Ativistas têm lutado para acabar com o sistema dos “organismos notificados” alegando que os órgãos são pouco transparentes, atuam de forma contraditória e tendem a deixar implantes desastrosos entrarem no mercado. Mesmo assim, o selo “CE” é aceito no mundo todo, o que faz da Europa um ponto de entrada importante para a indústria dos dispositivos médicos. Na Arábia Saudita, Índia, Filipinas, Cingapura e na maior parte da América Latina, tais produtos entram sem o menor questionamento e estão sujeitos a um controle menor depois de serem avaliados como seguros na Europa.

Fabricantes de dispositivos médicos competem para trazer novidades ao mercado e introduzir novos modelos com novas funcionalidades para impulsionar vendas. Analistas de Wall Street acompanham de perto o tempo que levam para superar obstáculos de regulação. Especialistas estimam que, em média, o ciclo de vida de um produto dura em torno de 18 a 24 meses até ser substituído pelo modelo mais novo.

À medida que cresce a indústria, cresce também a complexidade dos seus implantes. Boston Scientific Corp, Medtronic, Abbott Laboratories e outros fabricantes de aparelhos médicos vendem um implante chamado estimulador do nervo vago. O aparelho envia descargas elétricas para o cérebro, pescoço e abdômen a fim de combater transtornos que variam desde dores nas costas a soluços crônicos e depressão. Válvulas cardíacas dobráveis feitas pela empresa Edwards Lifesciences e outras podem ser introduzidas no coração, por meio de uma pequena incisão, com o uso de cateteres de ablação direcionáveis, que se expandem e tomam a forma original quando chegam ao destino – à semelhança dos navios presos dentro de uma garrafa. A Medtronic produz uma “bombinha da dor” completamente implantável que envia microdoses de analgésicos diretamente para a espinha dorsal e ainda gera relatórios de desempenho do paciente, enviados para um tablet.

Esses aparelhos produzem benefícios, mas também geram riscos. Às vezes, os cálculos que avaliam os riscos e as recompensas podem ser extremamente precisos. Por exemplo, a válvula cardíaca Dobraveil, conhecida como um transcateter para substituição de válvula aórtica, ou TAVR, nos Estados Unidos, faz sentido para um idoso ou alguém que está doente porque elimina a necessidade de fazer a traumática cirurgia cardíaca a céu aberto. Mas ninguém sabe ao certo quanto tempo esses aparelhos duram, e por isso o implante faz menos sentido para alguém mais jovem e mais saudável. Mas a pergunta é: quanto mais jovem e quanto mais saudável?

Ser o primeiro a chegar ao mercado com um produto inovador de ponta pode garantir o rendimento de uma empresa por um ano. Em 2014, Dan Starks, na época diretor executivo da St. Jude Medical Inc., apareceu no Mad Money, programa de televisão da CNBC que trata da Bolsa de Valores, tirou do bolso um implante menor que uma pilha palito e mostrou-o para o público enquanto a câmera se aproximava com um zoom. Era o Nanostim, o primeiro marca-passo do mundo sem eletrodos, os finos fios que conectam o aparelho ao coração e têm gerado tantos problemas aos fabricantes. “A gente acredita que isso vai revolucionar o campo [da saúde]”, disse Starks.

O design do Nanostim foi um argumento-chave na venda do produto. Eletrodos fraturados ou com defeito, como o Sprint Fidelis, deram má fama aos implantes cardíacos anteriores.

“Posso lhe dizer que realizamos o nosso primeiro implante com essa tecnologia no Reino Unido na semana passada, e o tempo que levou para fazer o implante nas mãos deste médico em particular [foram] oito minutos”, afirmou Starks no Mad Money.

A paciente era Maureen McCleave, uma avó de 77 anos de Londres. “Eu me sinto uma nova mulher”, ela disse ao jornal Daily Mail em uma de série de entrevistas que a St. Jude esquematizou logo depois de ela ter saído do hospital. “Se eu tivesse colocado um marca-passo tradicional, provavelmente ainda estaria no hospital, e com certeza não estaria me sentindo tão bem quanto agora.”

Três meses depois da operação, a St. Jude revelou as primeiras preocupações acerca do Nanostim. Médicos descobriram que seis de 147 pacientes que participaram de um teste clínico europeu tinham sofrido perfuração no músculo cardíaco. Dois morreram. Depois, a bateria de vários Nanostim falharam, tornando inútil o aparelho.

Defeitos nas baterias se tornaram tão predominantes que em 2016 a Abbott pediu aos médicos que usavam o Nanostim que fizessem uma “pausa” e parassem de fazer novos implantes. Essa “pausa” continua até hoje.

No final de 2016, Maureen começou a ter palpitações cardíacas e a se sentir cansada. “Eu sabia que alguma coisa estava errada em algum lugar”, ela disse a um dos veículos parceiros do ICIJ.

No hospital, a enfermeira explicou que o seu marca-passo tinha parado. Maureen, que já estava com 80 anos, precisaria de outra cirurgia, e rápido. Apesar de o Nanostim ter sido vendido como tendo dezenove anos de vida útil – seis anos a mais que um marca-passo padrão –, o aparelho de Maureen havia falhado depois de apenas três anos.

O marca-passo tradicional é relativamente fácil de repor quando a bateria morre. Eles ficam localizados logo abaixo da pele, sob a clavícula, e enviam choques elétricos para o coração através de fios de chumbo que podem permanecer no lugar se for necessário substituir o aparelho. Extrair o Nanostim do coração é muito mais complicado.

A segunda operação de Maureen foi mais difícil. Cirurgiões implantaram outro marca-passo e deixaram o Nanostim onde estava, acreditando que removê-lo seria perigoso demais. “Tive muita dificuldade porque eu sangrei muito”, disse Maureen.

Depois de ter passado por uma rodada mínima de testes, o coração futurístico da St. Jude foi considerado seguro.

A União Europeia requer que os medicamentos obtidos com receita passem por pelo menos um ensaio clínico em centenas a milhares de pacientes para determinar a segurança e eficácia dos produtos. Já o Nanostim foi testado em 33 pacientes humanos, e durante um período relativamente curto: noventa dias. O único outro grupo que serviu de cobaia foram trinta ovelhas.

Maureen diz que ninguém da St. Jude, que agora faz parte do conglomerado Abbott Laboratories, falou a ela por que o Nanostim falhou. “Eu me senti como uma pilha de lixo que foi jogada de lado.”

No passado, agências reguladoras nos Estados Unidos haviam criticado abertamente o processo de regulação de aparelhos no resto do mundo, particularmente na Europa.

“Os nossos cidadãos não são usados como cobaias nos Estados Unidos”, disse em 2011 o dr. Jeffrey Shuren, chefe executivo de dispositivos médicos da FDA, em uma entrevista coletiva que ocorreu em meio a uma briga no Senado sobre a possibilidade de adotar nos Estados Unidos regras mais parecidas com as da Europa. O comentário gerou um transtorno diplomático.

Em 2012, a FDA lançou um relatório que listou nome por nome os “dispositivos inseguros e ineficientes” aprovados na União Europeia com pouquíssimos testes. A lista incluía endopróteses usadas para reparar inchaço ou aneurismas da artéria aorta. A FDA descobriu que muitos apresentavam “riscos severos aos pacientes”. De acordo com o relatório, isso “inclui coágulos sanguíneos, falhas no enxerto e ruptura do aneurisma”.

Um ano depois, a FDA comunicou ao mundo uma mensagem diferente: os Estados Unidos iriam se tornar “o primeiro mundo” como ponto de entrada para dispositivos importantes na esfera da saúde pública. No governo de Donald Trump, que promete reduzir as normas, a FDA propôs acelerar os testes pré-mercado para alguns implantes de alto risco. Essa iniciativa pode derrubar anos de testes antes de um produto ser lançado no mercado e economizar milhões de dólares para as empresas. Em discurso para um grupo da indústria em maio, Shuren reconheceu que as medidas propostas significam “basicamente aceitar um pouco mais de incerteza” em alguns casos.

Em 2017, a FDA aprovou três vezes mais aparelhos para o mercado do que em 2010, enquanto os alertas de segurança emitidos para os fabricantes dos aparelhos caíram cerca de 80%.

A FDA disse ao ICIJ que o objetivo de se tornar “o primeiro mundo” é um reflexo da sua preocupação de que atrasos impeçam que “inovações em novas tecnologias” cheguem mais rapidamente aos pacientes nos Estados Unidos e que continua comprometida em assegurar que esses aparelhos sejam seguros e eficazes.

A FDA alega que, apesar de não estar emitindo tantos alertas de segurança, tem feito mais inspeções nas fábricas.

Críticos advertem que o tom usado pela FDA sugere uma mudança de tendência que pode favorecer uma agenda promovida pela indústria. “Essa tendência de diminuir a regulamentação suscita questionamentos reais sobre a capacidade da FDA de proteger de forma adequada o público americano dos dispositivos inseguros e ineficazes”, diz o dr. Peter Lurie, um expert que já foi ligado à FDA.

A influência política da indústria de implantes médicos tem um peso enorme em Washington. De acordo com o Centro para a Política Responsiva, desde 2008 a indústria gastou mais de 362 milhões de dólares para influenciar o Legislativo. A indústria financia 35% do orçamento do programa de dispositivos da FDA mediante “taxas de usuários”, que são renegociadas a cada cinco anos.

De acordo com o dr. Michael Carome, diretor do Grupo de Pesquisas de Saúde Pública Cidadã (Public Citizens Health Research Group) essas taxas são utilizadas como moeda de troca para controlar a agência reguladora. A negociação dessas taxas “acaba resultando em um pedido de favores feitos pela indústria”, disse Carome.

A presença da indústria na agência foi comprovada também em uma polêmica sobre a segurança da prótese de mama que se arrasta há uma década. Depois de ser praticamente banida em uma feroz briga interna, a FDA deixou que uma versão do silicone voltasse ao mercado em 2006, apesar de os dados demonstrarem que a longo prazo a segurança do produto continuava limitada.

“Eles foram tenazes”, disse Susan Wood, que de 2000 a 2005 foi diretora da Secretaria de Saúde da Mulher da FDA. “Ao contrário das outras empresas, depois de receberem o ‘não’, eles continuaram voltando. E voltando e voltando e voltando. Eles simplesmente desgastaram qualquer resistência que existia a eles.”

Além das reguladoras, o paciente ainda tem uma última linha de defesa contra um aparelho defeituoso: o seu médico. Mas até essa linha de defesa foi violada.

Cardiologistas, ortopedistas e outros médicos que implantam dispositivos são influenciados por diversos meios, incluindo congressos médicos, palestras de treinamento e representantes comerciais. É comum ter um desses representantes presentes na sala de cirurgia, oferecendo conselhos sobre os aparelhos complexos que vendem.

Em 2016, na Universidade Georgetown, pesquisadores concluíram que o patrocínio de eventos por empresas e a presença de funcionários na sala de cirurgia comprometem a autonomia do médico e a sua capacidade de escolher a melhor forma de tratamento para o paciente. Um administrador hospitalar citado no estudo descreveu o relacionamento entre o cirurgião e os representantes de venda como um “balde de minhocas incestuosas”.

Em alguns casos, os médicos e os fabricantes fazem negócios juntos. As empresas pagam royalties aos médicos por tecnologias desenvolvidas em conjunto e dão a eles bolsas de estudos e ações no mercado, criando assim um conflito de interesses que tem chamado atenção de autoridades no governo.

Dados dos Centros para serviços do Medicare & Medicaid (programas de saúde federais nos Estados Unidos) analisados pelo ICIJ revelam que nos Estados Unidos, onde os fabricantes de aparelhos médicos e medicamentos são obrigados a divulgar os pagamentos feitos para os médicos, as dez maiores empresas que fabricam exclusivamente implantes pagaram cerca de 600 milhões de dólares aos médicos ou a seus hospitais no ano passado. Esse número não inclui pagamentos relacionados a dispositivos fabricados por empresas de grande porte que vendem outros tipos de produtos, como Johnson & Johnson e Allergan.

Thomas Schmalzried, cirurgião ortopédico de Los Angeles, ganhou cerca de 30 milhões em royalties e outros pagamentos da Johnson & Johnson pelo papel que desempenhou na criação de duas próteses de quadril metal-metal, uma das quais recebeu um pedido global de recall. Depois, esses produtos foram retirados do mercado em meio a preocupações de que estariam emitindo quantidades perigosas de íons de metal.

Schmalzried não respondeu às perguntas feitas pelo ICIJ. A Johnson & Johnson disse que, apesar de ele ter recebido royalties, não recebeu nada relacionado a produtos usados em seu consultório ou em hospitais onde ele tinha influência. A empresa afirmou que a sua política interna não permitiria esse tipo de pagamento.

De acordo com documentos de processos nos Estados Unidos e na Itália, empresas de implantes têm repassado dinheiro via contas offhsore para terceiros, que depois pagam os cirurgiões ou ONGs de fachada criadas para receber o dinheiro.

Depois de uma série de escândalos que levaram à criação da lei Physician Payments Sunshine Act de 2010, que obriga as empresas a divulgar esses pagamentos, a associação dos fabricantes revisou o seu código de ética. O grupo recomendou compensações “modestas” e “razoáveis” para médicos que participam de eventos patrocinados e restrições nos royalties e serviços de consultoria.

Ao longo da última década, as associações comerciais europeias têm fortalecido o seu código de ética, ampliando-o de quinze para 61 páginas, chegando a alertar as empresas das “possíveis percepções negativas do público” sobre os locais escolhidos para sediar eventos patrocinados. “Cruzeiros, clubes de golfe ou spas e espaços conhecidos como de entretenimento não são locais apropriados”, diz o código.

Apesar disso, as autoridades continuam acusando de má conduta empresas de implantes. Médicos, funcionários das empresas e autoridades do governo alegam em processos judiciais que representantes de venda têm influenciado as decisões tomadas pelos cirurgiões, motivando-os a usar produtos feitos de maneiras não aprovadas oficialmente.

Tanto as companhias citadas na lista da Fortune 500 como a Medtronic e outras empresas de pequeno porte têm sido alvo desse tipo de acusações.

Em 2014, a Biotronik, produtora de dispositivos médicos da Alemanha, pagou 4,9 milhões de dólares em um acordo depois de ter sido acusada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos de pagar propina a médicos e promover ilegalmente aparelhos cardíacos para tratamentos não autorizados por reguladoras.

De acordo com Brian Sant, ex-funcionário da Biotronik que virou delator e processou a empresa, os médicos que promoveram práticas não autorizadas, como terapias e implantes em larga escala de aparelhos da Biotronik, ganharam como recompensa dos representantes de vendas da empresa ingressos para eventos esportivos, participações em partidas de golfe e refeições luxuosas. “É quase uma pensão vitalícia”, disse um gerente de vendas em e-mail citado no caso de Sant sobre as propinas que os médicos poderiam receber por escalar pacientes para estudos patrocinados pela empresa.

Em resposta enviada ao ICIJ por escrito, a Biotronik afirmou que “suas práticas eram legítimas e éticas”. Disse também que o governo não deu seguimento às acusações relacionadas às práticas de treinamento da Biotronik ou a seu programa educacional.

Governos ao redor do mundo também condenaram fabricantes por pagarem administradores de hospitais e médicos com relógios Armani e pacotes caros de férias para aumentarem as vendas e obterem contratos. No México, os funcionários de uma empresa responsável por oferecer propinas aos médicos utilizava a palavra “chocolates” como código para se referir aos pagamentos ilícitos.

Na Itália, um representante de vendas de implantes da Johnson & Johnson está sob julgamento no Tribunal de Justiça por oferecer mais de 20 mil dólares em propinas, além de viagens caras, jantares e muito mais para um cirurgião proeminente de Milão e a seu filho. Em troca, o cirurgião implantava próteses articulares e promovia a marca em programas de televisão. A companhia disse que não pode comentar pontos específicos desse caso em andamento, mas acrescentou que está “cooperando completamente com a investigação”.

Respondendo ao ICIJ, Matt Wetzel, associado ao conselho geral da AdvaMed, disse que a indústria se “dedica a fazer negócios de maneira correta, e empresas da área de tecnologia médica têm investido inúmeros recursos – tanto em capital quanto em recursos humanos – no desenvolvimento de programas de conformidade ética de ponta”.

Com a redução do controle para a chegada de novos implantes ao mercado, a responsabilidade é ainda maior para meios de monitorar os problemas e informar os pacientes conforme estes forem surgindo.

Os Estados Unidos têm de longe a maior quantidade de dados públicos sobre implantes que machucam e matam. A FDA os mantém no banco de dados intitulado “Experiência de dispositivos do fabricante e do usuário”, conhecido como MAUDE.

A maior parte dos dados do MAUDE, porém, vem das próprias empresas fabricantes dos dispositivos. Pela lei, elas devem coletar reclamações de médicos, hospitais, pacientes, advogados, entre outros, e repassá-las à FDA.

Na prática, os fabricantes frequentemente fornecem informações erradas ou enganosas, ou nem sequer as fornecem. Entre 2008 e 2018, os inspetores da FDA notificaram as empresas fabricantes mais de 4.400 vezes por violarem a política de tratamento de reclamações. Cada violação pode cobrir centenas ou até milhares de reclamações mal administradas ou perdidas.

A FDA citou um centro de saúde da Philips em Cleveland, Ohio, pelo mau tratamento dado a milhares de reclamações sobre equipamentos de imagens médicas que tinham problemas de alto risco, que podiam causar ferimentos e até mesmo mortes, incluindo relatos de que escâneres corporais tinham misturado imagens de pacientes. Numa resposta escrita ao ICIJ, a Philips fez a observação de que nenhum paciente foi prejudicado nos incidentes e de que sua equipe de revisão dos registros havia avaliado todas as queixas.

Quando as empresas relatam esses eventos adversos, elas às vezes encobrem sua gravidade. O ICIJ descobriu que fabricantes classificavam casos como “falha” ou “lesão”, mesmo se o paciente tivesse falecido. Usando um algoritmo de aprendizagem de máquina para pesquisar milhões de relatórios, o ICIJ encontrou 2 100 casos em que pessoas morreram, mas as mortes foram classificadas como falhas ou lesão. Destes, 220 relatórios mostraram que os dispositivos podem ter causado ou contribuído para as mortes. Os outros não incluíram informações suficientes para determinar de maneira conclusiva se o implante desempenhou algum papel no óbito dos pacientes.

As diretrizes da FDA solicitam aos fabricantes que relatem mortes que possivelmente estejam ligadas aos seus dispositivos, mesmo que a conexão seja incerta. A FDA usa relatórios de eventos adversos para ajudar a identificar dispositivos perigosos. “Se uma morte for classificada como falha de funcionamento, é possível que nunca chegue a ser lida”, disse Madris Tomes, ex-especialista de dados da FDA e administradora de uma empresa de análise de eventos adversos.

Jacob Shani, presidente de cardiologia do Centro Médico Maimonides, no Brooklyn, Nova York, disse que as informações sobre eventos adversos fornecidas por fabricantes e médicos são essenciais para a decisão de qual produto implantar. “Se você não tiver transparência nem honestidade, então é melhor esquecer”, disse Shani.

Os relatórios que chegam aos reguladores podem desencadear um alerta de segurança ou um recall. Estes podem exigir que hospitais recolham dispositivos de suas prateleiras ou, dependendo da gravidade, até mesmo levar a uma onda de cirurgias de remoção dos dispositivos.

Se um produto tem recall ou é restringido depende de onde você mora, descobriu o ICIJ. No ano passado, autoridades de saúde na Nova Zelândia, Irlanda, Escócia e Inglaterra, enquanto estudavam a segurança do dispositivo, restringiram muito o uso de um tipo de malha vaginal utilizado para tratar incontinência ou manter no lugar órgãos reprodutivos e outros. Mas os produtos continuaram no mercado de outros países, incluindo o Canadá e a África do Sul – onde Renate Scheepers recebeu o seu implante.

Os alertas de segurança supervisionados pelo governo podem variar de simples alterações em rótulos até o recolhimento imediato de um dispositivo do mercado. Também, em alguns casos, os fabricantes discretamente retiram os produtos do mercado sem admitir falhas.

Especialistas disseram ao ICIJ que os governos devem emitir avisos de alerta de segurança e de pedidos de recall para que pacientes e médicos fiquem cientes dos problemas. Uma análise do ICIJ descobriu que alguns governos publicam notas com frequência e outros quase nunca o fazem. No total, reguladoras de saúde no México só compartilharam informações sobre dois recalls. Nos Estados Unidos, a FDA publicou mais de 26 mil apenas na última década.

Um implante de quadril metal-metal fabricado pela Biomet, empresa com sede em Indiana, foi associado a uma metalose que apodrece a carne, e a empresa interrompeu as vendas do dispositivo há vários anos. Posteriormente, em 2015 e 2016 a Biomet enviou alertas de segurança para cirurgiões e outros provedores de assistência médica na Austrália, Reino Unido e outros países da Europa ocidental. Mas não os enviou aos do Canadá e dos Estados Unidos. Se a FDA tivesse forçado a Biomet a fazer um recall nos Estados Unidos, a empresa teria de enviar cartas para os médicos americanos.

“Aderimos a rigorosos padrões de regulação e trabalhamos em estreita colaboração com a FDA e todas as agências reguladoras de cada uma de nossas regiões como nosso compromisso de operar um sistema de gestão de qualidade de primeira linha em nossa rede global de fabricação”, declarou a empresa, que agora se chama Zimmer Biomet.

Em nota enviada ao ICIJ, como justificativa para não necessitar fazer recall, a FDA apontou para um comunicado genérico de segurança sobre quadris metal-metal que havia postado online em 2011.

As autoridades muitas vezes não conseguem encontrar pacientes com dispositivos defeituosos – ou até mesmo os médicos que realizaram os implantes. Harold Paz, médico-chefe e vice-presidente da Aetna, uma das maiores seguradoras de saúde dos Estados Unidos, observou o histórico comparativamente bom da indústria automobilística de procura por proprietários de carros recolhidos. “Nós atualmente não temos nenhum método para identificar qual de nossos membros recebeu o implante afetado”, disse Paz.

Pacientes que vivem com dispositivos que tiveram um recall implantado disseram ter sido deixados no escuro em relação aos problemas. Em entrevistas aos parceiros globais do ICIJ, centenas de pacientes com implante afirmaram nunca ter sido avisados pelos médicos sobre os riscos, nem sobre os pedidos de recall do mercado ou alertas de segurança.

Connie Hill, de 72 anos, que reside em Sun City, Arizona, é um dos vários pacientes que gostariam de saber previamente sobre os pedidos de retirada do mercado nos outros países. “Nunca ouvi falar disso”, disse Connie ao ICIJ.

No início dos anos 1990, um cirurgião ortopédico australiano chamado Stephen Graves estava ficando cada vez mais desconfortável com os dispositivos que implantava. Os substitutos de quadril e joelho apresentavam grandes benefícios aos pacientes, e também grandes riscos, mas ele não tinha a menor ideia de qual era mais seguro. “Não sabíamos quantos ou quais tipo de dispositivo estavam entrando”, disse Graves. “E não sabíamos o desempenho comparativo deles.”

Em 1996, Graves começou a trabalhar com um grupo de colegas cirurgiões para estabelecer um banco de dados central de rastreamento e monitoramento da saúde de australianos com implantes de quadril e joelho. Em poucos anos, seu registro nacional de dispositivos mostrava a grande maioria das próteses de quadril e joelho na Austrália – e revelava dezenas de dispositivos defeituosos.

Em 2009, os reguladores utilizariam os dados de Graves para levantar as preocupações iniciais de segurança sobre o ASR XL, da Johnson & Johnson, a marca de quadris metálicos implantados em Vijay Vojhala, em Mumbai. Até o momento, o registro identificou mais de 150 dispositivos de substituição de juntas de baixo desempenho, disse Graves.

Um sistema melhor de rastreio de dispositivos após a chegada destes ao mercado recebe amplo apoio de membros da indústria, médicos e advogados de pacientes. O dr. Henrik Malchau, cirurgião ortopédico que ajudou a estabelecer vários registros nacionais, disse que ele permite a autoridades alertar médicos e pacientes dos problemas. Citando o caso australiano, afirmou: “A beleza disso era que eles poderiam voltar e encontrar todos os pacientes”.

Depois de recentes recalls que tiveram grande visibilidade, a Índia está considerando uma proposta para a elaboração de seu próprio registro de substituição de juntas, enquanto outras propostas estão avançando na Finlândia, na Noruega e no Reino Unido, disse Malchau.

Os Estados Unidos continuam lentos. Num esforço para melhorar a vigilância pós-implante de dispositivos, a FDA está tentando unificar em um único sistema centralizado vários pequenos registros privados com dados de sinistros de seguradoras.

Mas esse programa depende muito do sucesso de uma iniciativa da FDA que exige que cada dispositivo receba um número de identificação único para torná-lo mais rastreável – um passo dado há muito tempo pelas autorreguladoras.

Embora um programa de “Identificador de Dispositivo Único” (UDI) possa inaugurar uma era de vigilância pós-comercialização mais avançada, sua implementação por completo está a anos de distância. Um obstáculo potencial: o governo federal ainda precisa emitir regras finais que obriguem a inclusão dos identificadores numéricos de dispositivos nos registros eletrônicos de saúde e nos dados dos seguros – formas cruciais para a iniciativa poder monitorar pacientes e o desempenho de seus dispositivos.

A perspectiva de um sistema UDI globalmente harmonizado – agora em discussão nas agências reguladoras de dispositivos médicos – permanece ainda mais distante.

Hanifa Koya, ginecologista de Wellington, Nova Zelândia, que realizou várias cirurgias de remoção de malhas vaginais defeituosas, disse que o controle dos dispositivos vendidos e implantados é básico. “Se os cirurgiões querem constantemente adotar dispositivos inovadores, mas não pedem um registro deles, então o sistema está quebrado”, disse ela.

Hanifa afirmou que os conselhos de ética dos hospitais devem ter o poder de proibir médicos de utilizar implantes que não tenham sido testados ou estejam sujeitos a preocupações de segurança.

Mas ela reconhece que as tão esperadas ações corretivas não virão facilmente. E mesmo elas são apenas uma pequena parte de problemas sistêmicos maiores. “Quando se trata de proteger as pessoas que sofrerão”, disse Hanifa, “o sistema está em frangalhos.”

Esta reportagem faz parte do Implant Files, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. O Implant Files reúne 252 profissionais de 59 veículos de 36 países, que investigaram dezenas de fabricantes e distribuidoras de dispositivos médicos em todo o mundo. No Brasil, participam da apuração a revista piauí e a Agência Pública. Contribuíram para esta reportagem Ben Hallman, Jet Schouten, Dean Starkman, Simon Bowers, Emilia Díaz-Struck, Gerard Ryle, Sasha Chavkin, Spencer Woodman, Cat Ferguson, Petra Blum, Scilla Alecci, Sydney P. Freedberg, Fergus Shiel, Richard H. P. Sia, Tom Stites, Martha M. Hamilton, Joe Hillhouse, Rigoberto Carvajal, Cécile Schilis-Gallego, Hilary Fung, Marina Walker Guevara, Miguel Fiandor, Pierre Romera, Hamish Boland-Rudder, Will Fitzgibbon, Delphine Reuter, Amy Wilson-Chapman, Margot Williams, Pauliina Siniauer, Razzan Nakhlawi, Jesse McLean, Matthew Perrone, Holbrook Mohr, Mitch Weiss, Charles Backcock, Andrew Lehren e Emily Siegel.

Tradução feita por Mariana Simões e Carolina Zanatta.


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