28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Redução da desigualdade de renda estagnou no Brasil

Publicado em 29/11/2018 12:00 -

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O novo relatório da Oxfam Brasil, intitulado “País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras”, demonstra que a redução da desigualdade de renda estagnou no país entre 2016 e 2017. De acordo com Rafael Georges, um dos responsáveis pelo relatório, entre a população mais pobre “percebemos, entre 2016 e 2017, uma variação de decrescimento, ou seja, uma redução geral da renda, sendo que negros e mulheres perderam mais, enquanto no topo houve uma retomada que foi melhor para os homens e a população branca”.

Entre os mais pobres, exemplifica, os negros “ganhavam 675 reais em média e passaram a ganhar 658 reais, ou seja, tiveram um decrescimento da renda”, enquanto a população branca “teve um pequeno crescimento da renda, passando de 902 para 975 reais. Isso mostra que os negros, mesmo num momento de retomada muito lenta da economia, são sempre os últimos a ser incluídos. A relação entre brancos pobres e negros pobres, que era de 72%, ou seja, um negro pobre ganhava 72% do que ganhava um branco pobre, caiu para 68%. Quando se olha o topo da distribuição, houve um incremento geral, mas os brancos incrementaram suas rendas muito mais do que os negros. Houve um incremento para os brancos de cerca de 17% da renda, enquanto os negros mais ricos do topo tiveram um incremento de menos da metade disso, de 8%. Então, os negros são sempre deixados para trás”, informa.

Na entrevista a seguir, George menciona também que a renda média da metade mais pobre da população é de 787,69 reais. “Hoje, dentre as pessoas com rendimentos no Brasil, cerca de 20% a 30% da população ganha até um salário mínimo, o que deve significar, quando incluímos a renda da família, que cerca de 60% da população vive com menos de um salário mínimo per capita. Esta é a proporção: dentre os que têm renda, 30% da população ganha menos de um salário mínimo”, relata.

O pesquisador frisa ainda que os dados do relatório demonstram que o Brasil recuou cinco anos em termos de redução das desigualdades, retornando ao patamar de 2012. “Isso acende a luz amarela. Quando falamos que houve um recuo na renda, os dados são frios, mas estamos falando de milhões de pessoas que voltaram para um nível de vida indigno”, adverte.

Na avaliação dele, a redução da desigualdade de renda depende de duas reformas urgentes, a tributária e a da Previdência. “Esse debate é muito difícil porque existe uma assimetria no acesso ao orçamento público: grupos organizados conseguem garantir o seu quinhão do orçamento público, enquanto a ‘saúde’ e a ‘educação’ não têm um lobby forte. Ao mesmo tempo, a sociedade vê o judiciário ajustando seus próprios salários, e a destinação de royalties do pré-sal para a educação é reduzida pela metade”. E acrescenta: “Soluções fiscais não podem ser puramente fiscais; elas têm que ser sociais e têm que trazer os benefícios sociais na equação. (…) Hoje estamos trabalhando com um espaço orçamentário para gastos sociais de 17 anos atrás. Isso tem que ser revisto para que se retome a redução das desigualdades no país”. 

Rafael Georges é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB, onde atualmente cursa o doutorado em Ciência Política. Foi coordenador de campanhas no Greenpeace, assessor parlamentar na Câmara Federal, assessor político na Oxfam Internacional. Atualmente é coordenador de campanhas da Oxfam Brasil.

 

Uma das conclusões do novo relatório da Oxfam Brasil, intitulado “País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras”, é que desde 2017 o país parou de reduzir as desigualdades. Quais são os dados que exemplificam e demonstram esse cenário?

O primeiro dado que nos levou a enquadrar o relatório desta forma, focando na estagnação das desigualdades, é porque essa foi a primeira vez que não houve nenhuma avaliação do Índice de Gini de renda domiciliar per capita no Brasil nos últimos 15 anos. Isso é muito simbólico. Desde 2002 tem se reduzido o Índice de Gini e isso apontava para uma melhoria no aumento da renda no país ao longo desse período, mas essa melhoria não foi observada nos dados de 2016 e 2017. Esse dado, conjugado com outros, como o aumento da pobreza persistente desde 2015, o aumento da desigualdade da renda do trabalho, a queda na equiparação de renda dos negros entre 2016 e 2017, que não ultrapassou o teto de 57% desde 2011, e o passo atrás que foi dado em relação à renda das mulheres comparativamente com a dos homens pela primeira vez em 22 anos, fez com que afirmássemos, de maneira clara e forte, na capa do relatório que o Brasil está estagnado na redução das desigualdades.

Essa estagnação já era prevista considerando que o rendimento dos brasileiros vem caindo nos últimos anos? A causa dessa estagnação é explicada apenas pela conjuntura econômica do país ou há outros fatores que explicam a não redução das desigualdades?

Sim, era previsto porque em momentos de crise econômica, em que há desemprego, as pessoas perdem sua capacidade de gerar renda. A maior parte da renda domiciliar é baseada no trabalho e, portanto, quando se tem desemprego, consequentemente se tem uma piora na distribuição da renda, especialmente na base da pirâmide. Quando há recessão, o desemprego começa nas classes mais baixas, que são também as últimas a sentir as consequências da melhora econômica, porque elas têm relações de trabalho mais frágeis. Então, de certa forma, esse cenário era esperado e explica boa parte da razão pela qual houve um recuo na renda da base. Isso significa um recuo de renda entre os 50% mais pobres entre 2016 e 2017. De outro lado, houve um ganho na renda do topo, entre os 10% mais ricos, que já começaram a se beneficiar pelo começo da saída do Brasil da crise, pois a economia está começando a se estabilizar novamente e essas são as pessoas que se beneficiam primeiro. 

Então, tem uma explicação conjuntural, com certeza, mas também tem uma explicação estrutural para esse fenômeno. Além disso, podemos tirar um aprendizado dessa crise: o Brasil precisa fazer algumas lições de casa que não foram feitas. Na Constituição de 88 o país estabeleceu diretrizes para um sistema fiscal que atinja um dos objetivos principais da Constituição, que é a desigualdade. Por exemplo, a expansão do gasto social é prevista na Constituição por meio da universalização dos serviços públicos, das garantias dos direitos, da inclusão dos excluídos. Por outro lado, também é previsto um sistema tributário que seja justo e tribute mais quem pode pagar mais e menos quem pode pagar menos. Nesse campo tem muita coisa a ser feita. Em tempos de crises, se vivêssemos sob uma política fiscal mais justa em que o sistema fiscal fosse progressivo, talvez estivéssemos mais preparados para reduzir as desigualdades mesmo em meio à crise.

Qual é a diferença percentual ou de renda entre os mais pobres e os mais ricos no país hoje, segundo esse novo relatório?

Nós fizemos um cálculo com base no mesmo cálculo que foi feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que é a razão entre a renda do 1% mais rico e a renda média da metade mais pobre. O IBGE chegou a um número de cerca de 36 vezes entre o que ganha o 1% mais rico em relação à média do que ganham os mais pobres. Quando usamos os dados tributários, considerando o mesmo público do IBGE, esse valor sobe para 72%, ou seja, duplica. Isso mostra que o Brasil é o segundo país do planeta, entre os que têm dados disponíveis, que mais concentra renda no 1% mais rico; só estamos atrás do Qatar [país árabe]. Esse é um dado extremo, que mostra uma desigualdade extrema de um país que é um ícone da desigualdade no mundo.

O Brasil é o segundo país do planeta, entre os que têm dados disponíveis, que mais concentra renda no 1% mais rico; só estamos atrás do Qatar.

Em relação à metade mais pobre, percebemos, entre 2016 e 2017, uma variação de decrescimento, ou seja, uma redução da renda geral, sendo que negros e mulheres perderam mais, enquanto no topo houve uma retomada que foi melhor para os homens e a população branca.

Um dos dados que chama atenção no relatório é que em 2017 a renda média da metade mais pobre da população foi de 787,69 reais. Que percentual da população recebe esse valor mensalmente?

Contabilizamos cerca de 120 milhões de pessoas com rendimentos e elevamos a barra para quem tem 20 anos ou mais. Hoje, dentre as pessoas com rendimentos no Brasil, cerca de 20% a 30% da população ganha até um salário mínimo, o que deve significar, quando incluímos a renda da família, que em torno de 60% da população vive com menos de um salário mínimo per capita. Esta é a proporção: dentre os que têm renda, 30% da população ganha menos de um salário mínimo.

O relatório menciona dois critérios para classificar o percentual de pobres no país. Segundo o primeiro critério-base do Banco Mundial, o Brasil teria 7,2% da população na pobreza, os quais receberiam 1,90 dólar por dia. O segundo critério do Banco Mundial contabiliza que o país teria 22% da população na pobreza. Qual é o critério que melhor expressa a real situação de pobreza do país?

Essa é uma boa pergunta. A Oxfam costuma criticar o critério de 1,90 dólar por dia por ele ser pouco ambicioso. Segundo esse cálculo, no Brasil, com o dólar a 3,50, as pessoas mais pobres receberiam aproximadamente 200 reais por mês. Esse é o critério-base do Banco Mundial que serve para comparativos internacionais. O próprio Banco Mundial, por conta de críticas que recebeu por causa desse critério pouco ambicioso, fez um critério secundário que é baseado na classificação do país de acordo com o PIB per capita. Segundo esse outro cálculo, o Brasil estaria numa classificação em que o critério seria de 5,50 dólares por dia por pessoa, o que aumentaria a renda individual para 577 reais por mês. Esse valor representa mais ou menos entre 10 e 20% da população mais pobre. Tal critério é importante porque dá um pouco mais de noção do tamanho da população fragilizada no Brasil. Sair da pobreza não significa se emancipar; sair da pobreza é cruzar uma linha pouco ambiciosa. Boa parte da população que sai da pobreza fica nesse limbo e não consegue se mover socialmente.

Um estudo recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE que faz uma avaliação da capacidade de mobilidade intergeracional por países mostra que o Brasil está entre um dos piores da lista. Demoraria cerca de nove gerações para uma pessoa que é pobre chegar à renda média da população. Este é o desafio do Brasil: não só sair da pobreza, daquela linha baixa, mas se emancipar. Então, o segundo critério do Banco Mundial é mais apropriado.

Qual é a renda mínima que indicaria que uma pessoa saiu da pobreza?

A Oxfam não tem um critério próprio, mas costumamos usar critérios de outras instituições para medir a renda. Mas mais do que renda, o que deve contar nessa situação é a possibilidade de a pessoa ter uma condição digna de vida. Então, se a pessoa tiver uma renda um pouco mais baixa, como o critério dois do Banco Mundial, mas tiver acesso à saúde e educação de qualidade e a perspectiva de que ela ou seus filhos poderão seguir numa carreira educacional que chegará até a universidade, isso talvez seja mais importante do que a renda em si. Obviamente o ganho de renda é fundamental para a redução das desigualdades, mas tentamos fugir do debate só de renda. Esse relatório está focando na questão da renda, particularmente, mas a Oxfam não definiu uma renda base nesse sentido porque muitas instituições já fazem isso.

Segundo o relatório, a proporção de pobres hoje no país voltou ao patamar de 2012. Esse foi, no período recente da história brasileira, o período em que a desigualdade havia sido maior?

Sem dúvida 2012 não foi o pior momento, mas recuamos cinco anos, em termos de redução das desigualdades, de 2017 para 2012. Isso acende a luz amarela. Quando falamos que houve um recuo na renda, os dados são frios, mas estamos falando de milhões de pessoas que voltaram a um nível de vida indigno. Para nós, importa pouco o patamar, embora choque muito quando se observa que houve um recuo em tão pouco tempo. O ideal é que o Brasil continue no ritmo de erradicação da pobreza. Mas esse recuo, mais do que voltar para patamares históricos, impressiona por conta da sua velocidade. O nosso aprendizado é que políticas sociais têm que ser estruturantes e não só conjunturais. Garantir renda e trabalho é importante, mas existe um papel que não pode ser deixado de lado, que é garantir a dignidade para momentos como este, de crise. A rapidez com que o Brasil recuou é icônico em relação a isso.

Como a desigualdade de renda se expressa entre diferentes grupos sociais, como negros, brancos, homens e mulheres? Quais são os exemplos que demonstram que a desigualdade aumentou entre esses grupos nos últimos dois anos?

Fizemos uma comparação de grupos na média geral e recortes no topo e na base dos 50%, e em todos os recortes houve recuos na equiparação de renda entre negros e brancos. Por exemplo, em geral negros ganhavam 57% do que ganham brancos e essa média caiu para 53%. Entre os mais pobres, os negros da metade mais pobre da população ganhavam 675 reais em média e passaram a ganhar 658 reais, ou seja, tiveram um decrescimento da renda. A população branca pobre teve um pequeno crescimento da renda, passando de 902 para 975 reais. Isso mostra que os negros, mesmo num momento de retomada muito lenta da economia, são sempre os últimos a ser incluídos. A relação entre brancos pobres e negros pobres, que era de 72%, ou seja, um negro pobre ganhava 72% do que ganhava um branco pobre, caiu para 68%. Quando se olha o topo da distribuição, houve um incremento geral, mas os brancos incrementaram suas rendas muito mais do que os negros. Houve um incremento para os brancos de cerca de 17% da renda, enquanto os negros mais ricos do topo tiveram um incremento de menos da metade disso, de 8%. Então, os negros são sempre deixados para trás.

Historicamente, desde 88, quais foram as políticas mais efetivas para a redução das desigualdades e que poderiam ser adotadas novamente?

É difícil fazer uma lista assertiva das políticas, porque é uma conjunção muito grande de fatores que leva a esse movimento de estagnação. Mas se for para assinalar algumas que tiveram um impacto forte na redução das desigualdades, sem querer esgotar o tema, diria que a decisão de universalizar serviços, que foi levada a cabo pela organização do SUS e pela oferta de educação pública, e a cobertura da Previdência no Brasil, que é algo único na América Latina, tiveram um impacto forte na redução das desigualdades. Em geral as pessoas mais velhas são as que têm as menores rendas e elas não conseguem mais gerar renda da mesma forma que os mais jovens que estão na faixa dos 30 a 50. Ou seja, a garantia de serviços serve para que a população possa reduzir gastos, porque se ela tem oferta de educação pública, aumenta sua renda para fazer outras coisas. Esse pacote que envolve os gastos sociais e a universalização dos direitos no país foi a principal política.

Também houve base para a criação de políticas trabalhistas importantes e a Constituição garantiu a existência do salário mínimo que é atualizado de tempos em tempos. A redução da desigualdade no período recente de 2000 a 2012 foi apoiada nessa conjunção de pleno emprego, com formalização e crescimento do salário mínimo. Ao mesmo tempo, a Constituição definiu políticas educacionais, proteção de minorias, inclusão dos outsiders, ou seja, as políticas incluídas na Constituição fizeram absoluta diferença para a redução da desigualdade historicamente.

De outro lado, o que a Constituição definiu e nunca foi feito, que seria um ganho espetacular de superação da desigualdade, foi um sistema tributário justo. O Brasil não tem um sistema tributário justo, porque ele é desequilibrado e, se tivéssemos que rever algum tipo de política, seria essa.

O novo governo sinaliza que no próximo ano continuará com políticas de ajuste fiscal, mas também há uma expectativa de que a economia melhore. Diante desse cenário, qual é a sua expectativa em relação ao enfrentamento das desigualdades?

O Brasil tem uma oportunidade de ouro para discutir a redistribuição no país. Estamos neste momento em que discutimos quem tem acesso ao orçamento público, quem tem privilégios, quem usufrui desses privilégios e quem são os excluídos do orçamento. Esse debate é muito difícil porque existe uma assimetria no acesso ao orçamento público: grupos organizados conseguem garantir o seu quinhão do orçamento público, enquanto a “saúde” e a “educação” não têm um lobby forte. Ao mesmo tempo, a sociedade vê o judiciário ajustando seus próprios salários, e a destinação de royalties do pré-sal para a educação é reduzida pela metade. Isso é muito simbólico e o que está acontecendo agora vai dar um pouco o tom da batalha que se avizinha.

A Oxfam é pessimista na análise e otimista na ação. A maioria dos brasileiros quer um Brasil menos desigual e o desafio será vencer algumas barreiras que deixam as águas turvas em algumas discussões. Além disso, existe uma certa urgência em recompor as contas públicas. Na discussão tributária existe bastante sintonia – não vou dizer concordância – entre as diferentes correntes de especialistas acerca do que seria uma reforma desejada. Essa é a nossa percepção na Oxfam. Há uma necessidade dos governos – estaduais e federal – de observar que existem princípios de reforma tributária que podem ser adotados e que são acordados. O que se pode dizer em relação ao que tem sido debatido é que alíquotas únicas são injustas e não deveriam ser propostas, porque essa proposta não está de acordo com a Constituição. Reduzir o papel da tributação sobre renda e patrimônio no total da carga tributária também seria um passo para trás, assim como estabelecer uma alíquota única seria um grande passo para trás. Então, o ideal seria redistribuir a carga tributária de forma que a renda e o patrimônio cresçam em termos de participação da carga tributária, e bens e consumo diminuam. Essa é a sintonia entre quem discute o tema. Se o governo vai adotar essas medidas ou não, só o tempo dirá.

Demoraria cerca de nove gerações para uma pessoa que é pobre chegar à renda média da população. Este é o desafio do Brasil: não só sair da pobreza, daquela linha baixa, mas se emancipar.

Então, entre as diversas reformas que são propostas, a primeira medida necessária para reduzir as desigualdades seria fazer a reforma tributária?

Existem duas vias: a reforma tributária, de forma que redistribua a carga de maneira justa; e a reforma da Previdência, que é uma necessidade. Agora, essa discussão tem que ser feita com cuidado, porque as propostas têm que considerar, primeiro, a diferença enorme entre o regime geral, que é redistributivo, e o regime próprio dos servidores públicos, que é concentrador, começando pelo concentrador. Ou seja, é preciso ter clareza de que existe uma parte da Previdência que é especialmente problemática.

Que é a dos privilégios do funcionalismo?

Exato. Existe também a necessidade de diferenciação do papel das mulheres. Equalizar a renda das mulheres até pode ser um ideal na cabeça de todos, de modo que elas tenham as mesmas condições de vida que os homens. Mas o fato que é elas não têm: elas ganham menos, são responsáveis pelo trabalho doméstico, cuidam do trabalho reprodutivo, dos idosos, têm tripla jornada. Ou seja, se isso não for considerado e se for ignorado, elas continuarão trabalhando mais. As aposentadorias rurais, por exemplo, também não podem ser vistas da mesma forma que os clássicos benefícios contributivos. As pessoas que trabalham no campo têm outras condições de vida: muitas pessoas ao redor delas dependem, em tempos de crise e de seca, da renda dos idosos, então existe uma redistribuição de renda interna dentro da própria família. Se nada disso for considerado, vai se fazer uma reforma da Previdência que será um desastre do ponto de vista social. Portanto essa é uma agenda prioritária, porque o Brasil precisa ganhar mais eficiência na questão previdenciária e mais progressividade no gasto, principalmente no público. Essas são as duas agendas principais.

A revogação do teto do gasto é uma condição não só para desenclausurar investimentos, mas retomar o desenvolvimento social. A população no país continua crescendo e está envelhecendo, e a estimativa é que a população idosa dobre. Portanto, soluções fiscais não podem ser puramente fiscais; elas têm que ser sociais e têm que trazer os benefícios sociais na equação. O Brasil, em 20 anos, reduziu pela metade a mortalidade infantil, aumentou de cinco para oito os anos de escolaridade, despencou o número de pessoas pobres, e isso não foi de graça, não foi só por austeridade. Isso aconteceu por conta de políticas sociais. Se for estabelecida uma política que tem por finalidade basicamente fechar a conta, esquecendo todos os demais benefícios, ela não estará de acordo com a Constituição e não será inteligente, porque no médio prazo a sociedade mais pobre, sem saúde e educação, vai cobrar essa conta.

No novo governo haverá espaço para austeridade com investimento social? Qual sua expectativa para que a agenda fiscal seja tratada no sentido de enfrentar as desigualdades?

O próximo governo não assumiu ainda e há muita especulação em torno do que será feito. Há muitas coisas no ar. Somente quando as propostas forem colocadas no papel e começarem a tramitar, teremos mais segurança para opinar. De todo modo, existem algumas sinalizações fortes da sociedade brasileira. A primeira é que ninguém quer abrir mão da ação estatal para reduzir as desigualdades. A grande maioria da sociedade ainda espera que o Estado seja o ator decisivo para a redistribuição de renda e oportunidades no país. Por outro lado, existe um sentimento antitributo quando se fala em tributação em geral, mas, ao mesmo tempo, existe uma aceitação a uma tributação mais progressiva que tribute mais os super-ricos. Então, existe lastro social para a adoção de medidas redistributivas que reduzam as desigualdades.

Esse debate vai acontecer em meio a uma crise fiscal, porque o Brasil tem um problema fiscal e o governo vai ter que solucioná-lo. O que a Oxfam defende é que soluções para crises fiscais coloquem na equação a sociedade e a maioria da população. Então, cortar gasto social e não mexer na tributação injusta do país são duas saídas que vão na contramão do que aprendemos em relação à redução das desigualdades. Vamos esperar para ver como vai ser.

Deseja comentar mais algum aspecto do relatório?

Há dois aspectos do relatório que sublinhamos e que valem destaque. O primeiro é que uma reforma tributária nos moldes de redistribuir a carga de modo a reduzir tributação sobre bens e serviços e aumentar sobre rendimentos e patrimônio poderia, só ela, a partir de uma simulação que fizemos, diminuiria desigualdades que o Brasil levou cinco anos para reduzir. Então, em uma tacada, em uma mudança legislativa que implique numa boa reforma tributária, seria possível ganhar cinco anos em termos de redução das desigualdades, considerando a média de redução desde a Constituição. O outro ponto é que o Brasil recuou muito em políticas sociais desde 2016, quando houve uma queda do espaço do orçamento público dedicado à saúde, à educação, à assistência e à Previdência. Hoje estamos trabalhando com um espaço orçamentário para gastos sociais de 17 anos atrás. Isso tem que ser revisto para que se retome a redução das desigualdades no país.


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