29/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Os conservadores e o HIV

Publicado em 28/11/2018 12:00 -

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Em 2010, quando ainda não falava em concorrer ao Planalto, o então deputado Jair Bolsonaro fez um comentário que causou algum escândalo. Ao programa CQC, disse que discordava do programa brasileiro de combate ao HIV/aids. Segundo ele, as pessoas infectadas pelo vírus não deveriam ter o tratamento com antirretrovirais custeado pelo Estado: “O pessoal vive na vida mundana e depois vem querer cobrar do poder público um tratamento que é caro”, afirmou, no seu tom belicoso característico.

De lá para cá, Bolsonaro foi de deputado federal a presidente eleito. E suas manifestações mais inflamadas deixaram de causar escândalo para provocar preocupação. Hoje, entidades e especialistas que acompanham o esforço brasileiro no combate ao HIV temem que as opiniões do presidente antecipem mudanças nos programas do Ministério da Saúde nesse campo. “Nosso temor é de que o governo deixe de fazer política baseada em evidências científicas para fazer políticas baseadas em valores morais”, disse-me o sociólogo Alexandre Grangeiro, pesquisador da USP e conselheiro da Associação Brasileira de Interdisciplinaridade de Aids (Abia).

A confirmação do deputado federal Luiz Mandetta (DEM) como ministro da Saúde não acalmou os ânimos. Ao Globo, dias antes de ser apontado como titular da pasta, Mandetta disse descrer da eficiência de campanhas de prevenção contra HIV realizadas em escolas e Unidades Básicas de Saúde: “Sexualidade é uma questão para tratar dentro de casa”, disse quando perguntei sobre estratégias de prevenção. “É como segurança pública. Onde você aprendeu que não pode roubar? Em casa.”

Por ora, os membros do futuro governo ainda não falam, de maneira contundente, em descontinuar programas ou alterar políticas de combate ao HIV. Mas os temores de Grangeiro e seus colegas quanto aos efeitos de uma possível guinada conservadora são justificados pelo passado recente.

Segundo um estudo encomendado pelo Ministério da Saúde e publicado em maio na revista científica Medicine, a ascensão de vozes conservadoras no Congresso nacional já comprometeu a efetividade do combate à epidemia de aids nos últimos anos. Interferiu, sobretudo, na realização de ações direcionadas a públicos específicos, como homens que fazem sexo com homens — a parcela da população que, hoje, concentra a maior parte dos novos casos de HIV.

Quem melhor narra essa história é o professor Dirceu Greco. Infectologista, ele esteve à frente do Departamento de Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde até 2013, quando foi exonerado. O motivo? Uma campanha de prevenção voltada a profissionais do sexo.

Com o mote “Sou feliz sendo prostituta”, a campanha buscava dialogar com essa população, incentivar o uso de preservativos e a realização de testes rápidos de HIV e combater o estigma de que essas mulheres são alvo. A estratégia foi elogiada por especialistas em saúde pública. Mas desagradou parlamentares. “A pressão da bancada da Bíblia sobre o governo foi imensa”, contou Greco, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Depois de muito barulho, a campanha foi tirada do site e das redes sociais do Ministério da Saúde, e Greco foi apeado do cargo.

O professor narra essa história em um artigo publicado no começo de 2016 na revista científica Ciência e Saúde Coletiva. Conta que, ao saber da campanha, o então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, se apressou em negar que aquela mensagem fora autorizada pela pasta: “O ministro da Saúde afirmou que ninguém o convenceria que a fala da personagem [uma mulher que diz ser feliz sendo prostituta] teria a ver com o Ministério. Não sei em que mundo ele vivia, quando a vulnerabilidade desta e de outras populações está direta e intrinsecamente ligada à sua saúde. A dificuldade real para chegar aos serviços de saúde e o modo como são (des)tratadas pode ser contrabalaçado por reforço nos seus direitos e autoestima”, escreveu Greco.

A decisão de tirar a campanha das redes foi elogiada por nomes como Anthony Garotinho e Marco Feliciano. Passou para a história como um exemplo de situação em que convicções morais se sobrepuseram a evidências científicas. Há receio de que ocorrências assim se tornem lugar-comum: “Até ali, tínhamos uma bancada conservadora pressionando um governo que se dizia progressista”, disse Greco. “A partir do ano que vem, teremos um governo conservador.”

Na manhã do último dia 27, o Ministério da Saúde divulgou os dados mais recentes sobre a incidência de HIV no país. Segundo o boletim epidemiológico, 70% dos novos casos de infecção em 2017 aconteceram entre homens jovens, entre 15 e 39 anos. Trata-se, em grande parte, de uma população que iniciou a vida sexual depois do período mais crítico da epidemia — quando avanços da ciência e as políticas de distribuição de antirretrovirais permitiram que as pessoas convivessem com o vírus e alcançassem uma expectativa de vida semelhante a de indivíduos não infectados.

Conter a escalada desses números, disse Greco, vai exigir que os mais jovens tenham acesso a informação de qualidade e de maneira contínua, de modo que se convençam da importância de se proteger. Vai exigir que se discuta sexualidade em sala de aula, inclusive: “As campanhas publicitárias, feitas pelo ministério durante o Carnaval por exemplo, são importantes”, disse Greco. “Mas o que causa efeito, realmente, são as ações de educação continuada.” É importante que o novo governo compreenda isso e permita que suas ações sejam guiadas pela ciência, e não por moralismos.


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