29/03/2024 - Edição 540

True Colors

Fiscalização resgata 31 travestis e transexuais do trabalho escravo sexual

Publicado em 24/03/2022 12:00 - Leonardo Sakamoto - UOL

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O grupo especial de fiscalização móvel resgatou 31 mulheres transexuais e travestis de condições análogas à escravidão, em Uberlândia (MG) e Criciúma (SC), em operação iniciada no último dia 15. Profissionais do sexo, elas eram forçadas a trabalhar com base em ameaças e fraudes e presas a dívidas contraídas até com o implante de silicone nos seios.

A ação faz parte da sexta fase da Operação Libertas, desencadeada pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público de Minas Gerais. E contou também com a participação da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Pública da União, da Polícia Militar (em Minas Gerais) e da Polícia Federal (em Santa Catarina).

A investigação do Gaeco mostrou que elas não atuavam como prostitutas com autonomia, mas eram violentamente exploradas por duas organizações criminosas parceiras e obrigadas a permanecer nesse vínculo.

De acordo com o auditor fiscal do trabalho Magno Riga, que coordenou a fiscalização, o endividamento ocorria, por exemplo, via financiamento de procedimentos estéticos. Um deles, o mais caro, era a colocação de próteses de silicone nos seios, muitas vezes sob condições sanitárias duvidosas. E, segundo ele, silicone industrial era utilizado para alterações em outras partes do corpo, colocando em risco a vida das vítimas.

"Elas se sujeitaram a isso como forma de financiar sua transformação corporal, ou seja, de estar bem com o seu próprio corpo. Se houvesse uma política pública realmente acessível, a maioria não recorreria à prostituição e não seria vítima de violência desde a adolescência", afirma Magno.

Vale lembrar que os procedimentos de readequação sexual são oferecidos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que não significa que estejam, de fato, acessíveis a todas.

As cafetinas responsáveis pelas organizações criminosas ordenavam que as vítimas ficassem alojadas em suas pensões, cobrando uma diária, o que também gerava uma dívida. Para poderem trabalhar como prostitutas, elas tinham que se sujeitar a pagar essa diária, mesmo que não usassem a estrutura. Como uma máfia que cobra pelo direito de poder trabalhar.

Segundo a fiscalização, multas eram aplicadas para quem infringisse as regras, como chegar fora do horário, com o objetivo de aumentar ainda mais o endividamento e garantir que elas não conseguissem sair daquela situação. Quanto mais ganhavam com os programas, maior era o valor dessas multas.

Terror como forma de manter o controle sobre as escravizadas

A auditora fiscal do trabalho Jamile Virgínio destaca o uso do medo como instrumento de controle por parte das empregadoras. Casos de violência e de agressão eram disseminados entre elas, garantindo um controle da vida pessoal e da prestação de serviços de uma maneira eficiente.

"Uma das histórias que circulavam entre elas era o de uma mulher que, por ter desobedecido, teve os implantes de silicone arrancados sem anestesia. Essas histórias geravam medo e mantinham a disciplina", afirma.

Esse tipo de terror atingiria em cheio qualquer pessoa, mas no caso de travestis e transexuais ganhavam um contorno ainda pior por conta de sua vulnerabilidade. Dado o preconceito, esse grupo sofre com a dificuldade de inserção na sociedade e no mercado de trabalho, sendo muitas vezes empurrado para a prostituição. É aproveitando-se desse contexto que agiam essas organizações criminosas.

"As regras eram tão abusivas que, na prática, elas chegavam a pagar para se prostituir. Trabalhavam em troca de teto, comida e o direito de poderem trabalhador", afirma Jamile.

Quando alguém não queria se vincular às organizações, era vítima de ameaças e agressões físicas. Há casos de vítimas que quase morreram, espancadas.

A ex-vereadora de Uberlândia Pâmela Volpi é apontada pelo Gaeco como uma das líderes da organização criminosa que explora travestis e mulheres trans. Ela está presa de forma preventiva, desde novembro do ano passado, por conta da tentativa de homicídio de uma travesti. Endereços visitados pela operação de fiscalização estavam em seu nome.

A coluna tentou contato com os advogados da ex-vereadora e trará sua posição tão logo seja possível.

Dívida contraída com a cobrança de produtos usados na prostituição

No sistema de "barracão" (truck system), os trabalhadores ficam presos a uma dívida contraída pela cobrança, a preços abusivos, de instrumentos de trabalho, alimentos e bebidas. Este caso não foge à regra, com a dívida sendo criada ilegalmente sobre elementos que seriam usados pelas profissionais do sexo em seu trabalho, como perucas, lingerie, perfumes, além do silicone já citado.

A fiscalização está calculando o valor devido pelas organizações às trabalhadoras, mas os fiscais do trabalho estimam que, se os empregadores tiverem que pagar todos os direitos e salários atrasados, o montante será de cerca de R$ 3,7 milhões.

Elas já foram cadastradas no seguro-desemprego concedido aos resgatados do trabalho escravo e receberão o benefício por três meses. Vale lembrar que a prostituição é atividade laboral prevista no Código Brasileiro de Ocupações. O que é ilegal é a exploração da prostituição por terceiros e, claro, o trabalho escravo.

Das 31 resgatadas, 19 estavam em Uberlândia e 12 em Criciúma. A origem da maioria delas é a própria região onde foram encontradas, mas também há vítimas de estados como Pará e Tocantins. E apesar de haver mulheres que estavam lá desde 2017, a maioria chegou no segundo semestre de 2021.

Trabalho escravo no Brasil hoje

Os grupos de fiscalização móvel para o combate à escravidão existem desde 1995 e são integrados por auditores fiscais do Ministério do Trabalho, procuradores do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal, agentes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil ou Militar e por membros da Defensoria Pública da União. Desde então, quase 57,6 mil pessoas foram resgatadas.

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

No caso de Uberlândia e Criciúma, auditores fiscais do trabalho identificaram que as vítimas estavam tanto em condição de servidão por dívida quanto de trabalho forçado.

Trabalhadores têm sido encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis.

Leia outros artigos da coluna: True Colors

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *