28/03/2024 - Edição 540

Povos da Terra

Comitiva de parlamentares ouviu de lideranças indígenas que pessoas têm ‘alvo nas costas’

Publicado em 07/07/2022 12:00 - Rubens Valente, José Medeiros – Agência Pública

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Parlamentares de duas comissões externas do Congresso Nacional – uma do Senado e outra da Câmara dos Deputados – ouviram nesta quinta-feira (30) de lideranças indígenas do Vale do Javari que defensores da terra indígena, entre indígenas e servidores da Funai, estão ameaçados, “com um alvo nas costas”, e que órgãos federais como o Exército, a Marinha, a Polícia Federal, o Ibama e o Incra são ausentes da região.

Dez parlamentares, dos quais quatro senadores e seis deputados federais, se reuniram com os indígenas nesta quinta-feira (30) na sede da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) na cidade de Atalaia do Norte (AM). Eles representam comissões externas criadas nas duas Casas para investigar o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, ocorrido no último dia 5, e as causas do abandono do governo federal na região. As comissões são presididas pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e pelo deputado federal José Ricardo (PT-AM).

Presente ao evento e com lugar à mesa dos convidados, o general comandante da 16ª Brigada de Infantaria de Selva do Exército, Marcius (não informou seu sobrenome, provavelmente o general de Exército Marcius Cardoso Netto), disse à Agência Pública que não comentaria as críticas e denúncias apresentadas pelos indígenas. “Você procure o Ministério da Defesa. […] Procure o Centro de Comunicação do Exército”, respondeu o general ao jornalista.

Instantes depois da tentativa de entrevista, um militar começou a fotografar o jornalista da Agência Pública e, pelas costas, a tela do notebook utilizado por ele na cobertura do encontro. Indagado sobre as fotos, ele disse que não poderia dar “informação nenhuma”.

Dezenas de indígenas de diversos povos do Vale do Javari foram à sede da Univaja receber os parlamentares. As lideranças disseram que as ameaças contra indígenas e servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) ocorrem porque os invasores procuram roubar as riquezas naturais dentro da terra indígena já que os recursos, como peixes e tracajás, estão escassos do lado de fora do limite da demarcação, já foram depredados e exauridos por caçadores e pescadores ao longo dos anos. Indígenas e servidores que se contrapõem a esse avanço passam a ser alvos de ameaças.

Em sua fala ao microfone, a liderança indígena Jaime Mayoruna, secretário municipal de assuntos indígenas da prefeitura de Atalaia do Norte, pediu providências do general Marcius sobre uma denúncia de que peixes grandes, como o pirarucu, cuja pesca é ilegal, estão sendo estocados numa casa em Palmeiras do Javari, onde funciona um pelotão especial do Exército dentro da terra indígena Vale do Javari habitado por militares e não indígenas.

Mayoruna lembrou que há dois pelotões do Exército na terra indígena – Palmeiras do Javari e Estirão do Equador. Isso não impede que a terra seja atravessada por “pessoas armadas, de máscara, que ninguém sabe quem são”, disse.

“O senador Randolfe perguntou se tem alguém ameaçado, então a gente é ameaçado direto nesse sentido. […] Às vezes eu me pergunto por que – o comandante do Exército está aqui – não tem nenhum tipo de fiscalização, não tem barco, são regiões de fronteira. E quando precisamos da ajuda do Exército, muitas vezes – eles ajudam quando tem barco –, outras vezes eles dizem que não têm barco, não têm gasolina. Então esses poderes que têm armas, que poderiam fazer isso [fiscalização], não têm. A própria Marinha, que poderia existir nessas regiões de fronteira, não existe, Ibama também nunca mais a gente vê falar. Polícia Federal muito menos.”

Jader Marubo, ex-coordenador da Univaja, amigo do indigenista Bruno Pereira e funcionário da Funai, disse que o órgão indigenista “está sucateado”. Segundo Marubo, Bruno ajudou a organizar o movimento indígena no Vale do Javari a partir de sua chegada à região pela Funai, nos anos de 2010. As ameaças, segundo ele, começaram ali.

“O Bruno colocou um alvo nas costas dele, não foi em 2019, foi em 2012, mexemos com os brios políticos da região. Naquele momento fomos ameaçados. Porque nós iríamos fazer justiça aos povos indígenas, conseguimos eleger seis vereadores. Ali começou o alvo nas costas dos funcionários da Funai e das lideranças indígenas. […] Todos nós temos um alvo nas nossas costas”, disse Jader Marubo.

O ex-coordenador da Univaja disse que há dois postos do Exército dentro da terra indígena, “enquanto que os funcionários [da Funai] encontraram colombianos armados com fuzis, pistolas”. Segundo Jader, uma decisão da coordenação regional da Funai tomada por um militar da reserva nomeado durante o governo Bolsonaro retirou “todas as armas que tinha dentro das bases de fiscalização” da Funai. Jader também se dirigiu ao general do Exército presente na reunião.

“O que um agente público pode fazer nessa situação? Nada. Só balançar a cabeça e sair do local, eles podiam ser fuzilados. A Funai não tem uma arma sequer para fazer a fiscalização. […] Como protege uma terra indígena sem armas, lutando com caçadores, madeireiros, fazendeiros, que usam armas de grosso calibre? Senhor general, como que se luta, como que se defende uma terra? Não tem como. Você está ali tapando o sol com a peneira. É isso que a Funai nesse local está fazendo.”

Jader Marubo acrescentou: “Se quiserem me demitir amanhã, tanto faz. Todos os funcionários têm um alvo nas suas costas”. Outro que tem “alvo nas costas”, segundo Jader, é o atual coordenador da Univaja, Paulo Marubo.

A cacica Sandra Mayoruna, que teve a fala traduzida por Jaime, disse que “a gente está sendo ameaçada no meio do rio”. “Eu queria falar para vocês que são homens das leis, que mudam as leis, escrevem as leis, então por que vocês não escrevem para que nossa terra seja protegida?”, indagou Sandra, dirigindo-se aos parlamentares. “Estamos sofrendo demais com a morte de Bruno e do jornalista, foi um impacto muito grande, está muito complicado. […] Nós temos a terra demarcada, mas parece que aqui está abandonado.”

Estrutura adequada

Um dos indígenas que participaram do movimento pela demarcação da terra indígena Vale do Javari nos anos 90, Darcy Marubo disse que também naquela época houve diversas ameaças de morte vindas do narcotráfico e ele teve que ficar “um mês sem sair de casa”.

“A Funai precisa de uma estrutura adequada, os funcionários, para que possam desenvolver essa área. Não temos nenhum técnico de primeiro setor na Funai, não temos setor jurídico, não temos antropólogo, sociólogo. Esse desmonte faz com que as pessoas queiram se aproveitar, aliciando jovens com drogas, aliciando os trabalhadores indígenas com retirada de madeira, pesca e caça.”

Um grupo de indígenas Matís entregou uma carta ao grupo de parlamentares na qual pediram, entre outros pontos, o “fortalecimento das políticas públicas”, a garantia da “integridade física dos servidores da Funai em todas as bases de proteção” e na sede em Atalaia do Norte e “a presença das Forças Armadas nas bases de proteção etnoambiental” da Funai dentro do território.

A Univaja também entregou uma carta aberta aos parlamentares na qual solicita, entre outros itens, a “presença ostensiva e permanente da Polícia Ambiental nas quatros bases de proteção da Funai”, para atuar junto com a Univaja e a Funai, a criação de uma base no rio Jutaí “ de forma a impedir a entrada de balsas de garimpo”, o “fortalecimento de instituições federais”, a criação “de um posto avançado de segurança”, a reabertura do escritório do Ibama na região e “a regulamentação do poder de polícia administrativa da Funai”.

Após os discursos dos indígenas, o senador Fabiano Contarato (PT-ES), relator da comissão externa no Senado, disse que vai recomendar que a comissão externa da Casa requisite “o imediato afastamento” do presidente da Funai, o delegado da PF Marcelo Xavier. Os indígenas aplaudiram. O senador disse que havia “uma tragédia anunciada” e citou o “desmonte, desde o início deste governo [Bolsonaro], da pauta ambiental”.

O senador disse que não é possível “compactuar” com a denúncia de que há pessoas como “alvos”, ameaçados de morte, na região do Javari.

“Esse alvo que está nas costas dessas pessoas, como disse o colega, que me emocionou, nós não podemos compactuar com isso. Essa comissão pode cautelarmente pedir, recomendar, o afastamento do presidente da Funai.” Além disso, Contarato disse que vai pedir que seja oficiado ao Ministério das Relações Exteriores“ para fortalecer os postos de fiscalização do Peru e da Colômbia”.

Por fim, o senador vai pedir que a comissão requisite “ao Ministério da Justiça o fortalecimento da Funai, dos funcionários e a força-tarefa para que ela seja acompanhada, se fazendo presente, para dar segurança a toda a população, em especial aos funcionários que estão aqui pagando com a própria vida.”

O defensor público federal Renan Vinícius Sotto Mayor de Oliveira disse que “é um momento muito triste” e que Bruno Pereira relatou o clima de insegurança reinante na região em 2019, depois do assassinato do colaborador da Funai na região, Maxciel Pereira.

“O que a gente percebe é uma omissão estrutural do Estado brasileiro, o que foi muito reforçado pelos parentes [indígenas] aqui. Em 2019, eu vi isso, nós fomos até a base do rio Ituí e vimos a situação dramática em que se encontravam os servidores da Funai. Eles não foram, na época, procurados pela presidência da Funai, o que a gente acha realmente revoltante.” Ele lembrou que, no ano passado, a DPU (Defensoria Pública da União) ajuizou uma ação para pedir o afastamento do presidente da Funai do cargo, mas “infelizmente não foi deferida a liminar”.

Minuto de silêncio

A deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), única parlamentar indígena do Congresso Nacional e vice-presidente da comissão externa, disse esperar que comissão possa “encaminhar boas recomendações, mas não somente recomendações, é cumprir nosso papel de parlamentar que é melhorar essa situação atual das terras indígenas”.

A deputada federal Vivi Reis (PSOL-PA), relatora da comissão, disse que iria permanecer mais um dia na região com outros deputados para colher mais subsídios para o trabalho da comissão. “Para mim, ficou muito evidente que esta comissão, se neste momento não tiver encaminhamentos efetivos, e justiça para Dom e Bruno, nós teremos novos casos como este. Porque em 2019 foi o Maxciel e, como não foi tomada providência efetiva sobre isso, nós temos agora o crime contra a vida de Dom e Bruno e não é isso que nós queremos para a Amazônia, para o Brasil.”

O senador Randolfe Rodrigues disse aos indígenas que a comissão “veio para apoiar vocês”. “Primeiro para saber como mataram Dom e Bruno, por que mataram e quem matou. Em segundo lugar, saber as causas do que ocorreu, não somente desse crime, mas de outros que tenham ocorrido em outro período, dos que defendem os povos indígenas do Vale do Javari.”

O encontro foi encerrado com um minuto de silêncio pedido pelo senador Randolfe em memória de Bruno e Dom. Também participaram da viagem os senadores Leila Barros (PDT-DF) e Eduardo Velloso (União-AC) e os deputados federais João Daniel (PT-SE), Erika Kokay (PT-DF) e Rodrigo Agostinho (PSB-SP).

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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