19/04/2024 - Edição 540

Povos da Terra

Asfaltando a memória indígena

Publicado em 06/05/2022 12:00 - Lázaro Thor Borges - Piauí

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Moradores de municípios do lado mato-grossense do Vale do Araguaia costumam se referir à região como “Vale dos Esquecidos” – e municípios como Ribeirão Cascalheira (a aproximadamente 800 km de Cuiabá), onde cerca de 33% da população vive abaixo da linha da pobreza, ajudam a entender o apelido. Nessa área onde falta quase tudo, o projeto de ampliação da rodovia BR-080 vem sendo apresentado pelo governo Bolsonaro como caminho para o desenvolvimento. A nova BR passará perto de uma área que abriga a mais antiga aldeia xavante da região, a Sõrepré, obra é alvo de investigação do Ministério Público Federal na tentativa de evitar que se repita lá o que aconteceu durante a duplicação da BR-158, em maio de 2017, quando sete sítios arqueológicos na região da terra indígena Marãiwatsédé foram destruídos.

Uma das áreas atingidas em 2017, o sítio arqueológico São Marcos abrigava cerâmicas pré-coloniais e ferramentas de pedra utilizadas pelos primeiros habitantes da região. A empresa responsável pela obra, Ecoplan Engenharia, ignorou a determinação de retirada dos bens arqueológicos feita pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Sem ter como recuperar o patrimônio perdido, o Iphan prepara desde o início deste ano a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e a Ecoplan para que os responsáveis pelo empreendimento recadastrem 361 sítios arqueológicos em Mato Grosso.

O TAC determina que a empresa terá que contratar consultoria especializada em arqueologia para cadastrar no sistema do Iphan dados referentes à localização, delimitação, georreferenciamento e caracterização dos sítios arqueológicos que estão desatualizados no Cadastro Nacional dos Sítios Arqueológicos (CNSA). A Ecoplan informou que qualquer manifestação sobre a construção da rodovia deve ser solicitada ao órgão responsável pela construção da BR-158. “A Ecoplan Engenharia presta serviços para o DNIT dentro do escopo de trabalho contratado e não possui autoridade para responder qualquer assunto referente ao desenvolvimento e implicações do empreendimento”, diz nota enviada pela empresa.

A nova frente de batalha para impedir a destruição de sítios arqueológicos agora é a BR-080, com 623 km, que vai de Brasília a São Miguel do Araguaia, no lado goiano do rio de mesmo nome. Nos últimos anos, o governo federal decidiu ampliar em 201 km a rodovia para transformá-la numa rota de escoamento da produção de soja do Vale dos Esquecidos, que cresce em ritmo acelerado. Em municípios como Ribeirão Cascalheira a produção saltou de 50 mil toneladas de soja colhidas em 2010 para 280 mil toneladas em 2020. A prefeita de Ribeirão Cascalheira, Luzia Brandão (Solidariedade), diz que o empreendimento é essencial para a cidade. Para ela, o crescimento econômico da região exige celeridade nas obras da nova estrada. “Estamos esbarrando na parte burocrática. O governo quer fazer, até porque o Vale do Araguaia deixou de ser o Vale dos Esquecidos”, afirma Brandão. “Mato Grosso é uma das áreas mais ricas, todos queremos fazer, tem vontade, mas o problema maior é essa parte burocrática”, afirma Luzia. 

Mesmo sem ter concluído o licenciamento do trecho de 141 km dentro de Mato Grosso, o governo Bolsonaro já iniciou a construção da ponte sobre o Rio Araguaia. Em vídeo publicado em sua rede social em janeiro deste ano, o presidente Bolsonaro comemora a evolução das obras da ponte, localizada no distrito de Luiz Alves, que fica no município de São Miguel do Araguaia. Na data da publicação do vídeo, o governo Bolsonaro já sabia que o Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (Cerd, na sigla em inglês) havia feito uma série de recomendações sobre a construção da estrada. Enviada em abril de 2021 para a Fundação Nacional do Índio (Funai), a recomendação do Cerd denunciou a ausência de consulta aos povos indígenas sobre a obra e alertou para a necessidade de preservar o local onde antes existia a Sõrepré, considerada a última aldeia Xavante antes da diáspora provocada pelo contato com os brancos na década de 1940. A rodovia passará a 16 km do que restou da Sõrepré. Construída às margens do Rio São João, a aldeia tinha 300 metros de diâmetro, espaço onde viviam aproximadamente 6 mil xavantes. O território, que hoje está em uma propriedade particular, é reivindicado pela comunidade da Terra Indígena Pimentel Barbosa, uma das nove terras indígenas Xavante espalhadas pela região do Vale do Araguaia.

Um dos responsáveis pela denúncia na ONU que gerou a recomendação ao governo brasileiro foi o líder xavante Hiparidi Toptiro, que foi até Genebra, na Suíça, entregar pessoalmente o documento. Hiparidi diz que nenhum xavante foi consultado sobre a construção da rodovia. “A aldeia antiga Sõrepré é de todo povo Xavante, mas a consulta não foi feita, eles querem apagar nossa memória, se alguém falar que houve consulta está mentindo”, diz Hiparidi, conselheiro político da Associação Xavante Warã. “Sõrepré é a memória do povo, é o berço da história do povo Xavante”, completa. 

A recomendação do comitê da ONU recebeu respostas evasivas do Conselho Nacional de Arqueologia (CNA), órgão técnico responsável pela análise do documento. Um parecer produzido pelo CNA em junho de 2021 negou a possibilidade de efeitos negativos da obra. “Não se vislumbra, até o presente momento, impacto a bens arqueológicos relacionados aos Xavante”, diz trecho do documento

O arquiteto e professor da Universidade de Brasília (UnB) Paulo Tavares, autor de um mapeamento das aldeias ancestrais do povo xavante, entre elas a Sõrepré, diz que é incorreto dizer que não se pode determinar que os bens arqueológicos não possuem relação com o povo Xavante, como relatou o CNA. Ele afirma que a região é marcada pela enorme memória indígena e que a rodovia destruirá áreas que deveriam ser preservadas. 

Contratado pelo Ministério Público Federal (MPF), Tavares identificou vestígios de aldeias antigas a partir dos relatos dos anciãos e de imagens de satélite produzidas nos anos 1960, quando membros da etnia xavante foram obrigados a deixar o Vale do Araguaia para viver no Xingu. O professor da UnB ficou encantado com o fato de que “evidências botânicas” permaneciam nos locais das aldeias antigas: árvores enormes com centenas de anos formavam bosques nos solos férteis onde outrora as aldeias estavam. Tavares deu ao fenômeno o nome de “Memória da Terra” e agora prepara a publicação de uma plataforma com a localização geográfica e mapas que indicam onde os Xavante viviam antes do contato com os brancos.

Com base no trabalho de Tavares e depois de ser acionado pelos indígenas, o procurador Everton Pereira Aguiar Araújo, da Procuradoria da República de Barra do Garças, abriu investigação em fevereiro deste ano para apurar a ausência de consulta aos Xavante e o descaso com os sítios arqueológicos indígenas e pré-coloniais próximos do traçado da rodovia. O procurador Araújo disse à reportagem que todos os envolvidos na destruição da aldeia serão responsabilizados. “Estamos levantando os dados em relação à aldeia ancestral Sõrepré, todos os envolvidos em sua destruição serão responsabilizados”, afirmou.

O procurador já havia recomendado em 2019 um estudo mais detalhado sobre os impactos da rodovia. Naquele ano, os líderes TI Pimentel Barbosa contaram ao procurador que os estudos de impacto na área do traçado da estrada ignoravam a Sõrepré e outras aldeias antigas. Segundo Jurandir Siridiwê, líder da TI Pimentel Barbosa, antes do governo Bolsonaro a relação entre povos indígenas e fazendeiros era um pouco menos violenta. Com alguma dificuldade, os Xavante conseguiam visitar as aldeias ancestrais e caçar nas áreas que antes pertenciam ao povo. Depois de 2018 muitos proprietários passaram a mudar o tom com os indígenas. Segundo Siridiwê, em dezembro de 2018, logo após a eleição de Bolsonaro, parte do bosque que existia sobre a antiga Sõrepré foi desmatado para dar lugar à lavoura de soja. O restante da derrubada foi concluído em junho de 2019.

O fazendeiro Claudenor Zopone Júnior é dono da Fazenda Campo Alto, onde estão localizados os vestígios da Sõrepré, segundo dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) analisados pela piauí. A Fazenda Campo Alto, 4.605 hectares, foi uma das áreas que Paulo Tavares não conseguiu visitar. “Nosso trabalho era analisar as imagens de satélite e ir até o local com os anciãos, em alguns lugares a entrada deles era permitida, mas lá nós não recebemos permissão”, falou. “O que posso dizer é que todos os fazendeiros da região sabem quando possuem em sua propriedade alguma aldeia antiga porque os índios visitam esses locais, pedem para caçar nesses lugares”, concluiu. 

Além da forte atuação como pecuarista e sojicultor, Zopone Júnior é empresário e sócio no Consórcio Norte, grupo que venceu leilões de linhas de transmissão de energia no Acre em dezembro de 2019. Por meio de nota, o Grupo Zopone, que administra a Fazenda Campo Alto, informou que a propriedade foi adquirida em maio de 1997 e que os proprietários não tinham qualquer informação de que na região havia vestígios de uma aldeia indígena Xavante. “A Fazenda Campo Alto desconhece qualquer existência de vestígio indígena ou bosque em sua área. Bem como desconhecia até a presente data a existência do livro Memória da Terra”, afirma a nota. O Grupo Zopone também pontuou que a área indicada como sendo da Sõrepré não estava na área de reserva legal da fazenda. 

Durante o licenciamento da rodovia, iniciado em 2013, foram encontrados seis sítios arqueológicos pré-coloniais, entre eles o sítio arqueológico Barreira, que contém vestígios da presença dos primeiros habitantes da região da Serra do Roncador. Hoje o sítio Barreiras está dentro da Fazenda Campo Grande, em Ribeirão Cascalheira, que também pertence à família Zopone. Outro ponto identificado em 2013 foi o sítio rupestre Pedra Alta, conhecido na região como Pedra do Letreiro. O local é um exemplo visual do que se conhece por sítio arqueológico. Com desenhos geométricos feitos com pigmentação de óxido de ferro e sangue, a Pedra do Letreiro está a cerca de 5 km da rodovia, no que é considerado área de impacto indireto do empreendimento, o sítio fica dentro da fazenda Pedra Alta, também em Ribeirão Cascalheira. Mais tarde, em 2019, mais dois sítios pré-coloniais foram localizados. 

Segundo o historiador e geógrafo Wilson Ferreira de Oliveira, membro da Associação Araguaia de Antropologia e Meio Ambiente (Asama), o licenciamento da rodovia ignorou outro sítio arqueológico, um abrigo rochoso com gravuras geométricas avermelhadas. O abrigo fica a poucos quilômetros do sítio Pedra do Letreiro. “O Vale do Araguaia é rico em sítios arqueológicos, rico em ferramentas líticas, essa região nossa é extremamente rica em registros, não sei dizer a idade exata desses sítios, mas se for novinho tem com certeza mais de 5 mil anos”, comentou Oliveira. 

O debate sobre a relação entre sítios arqueológicos pré-coloniais e o legado Xavante no Vale do Araguaia colocou em lados opostos o CNA e a Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de Mato Grosso. Na mesma manifestação em que negou a possibilidade de impacto ao patrimônio Xavante, o Conselho Nacional de Arqueologia também negou que os sítios arqueológicos pré-coloniais encontrados tivessem ligação com as populações indígenas. O arqueólogo do Iphan responsável por analisar o licenciamento da BR-080, Francisco Stuchi, criticou a decisão do CNA de tentar distanciar os sítios encontrados da presença indígena na região. Para Stuchi, seriam necessários estudos multidisciplinares mais aprofundados para definir a questão. Em resposta, o CNA afirmou que mesmo estudos maiores não poderiam dar certeza sobre a relação entre indígenas e os sítios encontrados. 

A manifestação do CNA citou trechos de um artigo do pesquisador Jorge Eremites Oliveira para defender a tese de distanciamento entre os sítios e os indígenas. No trecho citado, Eremites alega que não se pode fazer uso de “analogias históricas” para debater o assunto. Reconhecido entre os arqueólogos brasileiros pela vasta experiência de mais de trinta anos com povos indígenas, Eremites questionou a forma como é citado no parecer do CNA. “Para quem não conhece a minha trajetória intelectual, pode ficar a impressão de que seria favorável à não realização de pesquisas etnoarqueológicas para o licenciamento ambiental de empreendimentos que afetam direta e/ou indiretamente povos e comunidades tradicionais. Penso exatamente o contrário”, afirmou à piauí

O Iphan está na mira do presidente Bolsonaro desde o início de seu mandato. Em agosto de 2019, por exemplo, ele afirmou que “qualquer cocozinho petrificado de índio” barra empreendimentos. Em nova manifestação de maio de 2020, voltou a usar a mesma expressão para comentar a construção da loja da Havan, de Luciano Hang, que foi suspensa pelo Iphan no Rio Grande do Sul.

A atuação do CNA tem recebido críticas de outros especialistas, como a pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Cláudia Plens, estudiosa do povo Xavante. “A superintendência de Mato Grosso do Iphan alertou que não adianta fazer apenas estudos arqueológicos na região, é preciso incluir a população indígena na discussão, mas neste momento político que estamos vivendo eles estão passando por cima de tudo isso”, comentou. “O que tenho ouvido de vários arqueólogos, e eu tive a mesma impressão, é que eles estão liberando tudo sem uma preocupação real do ponto de vista arqueológico, eles estão submetidos a essa pressão política para liberar as obras, e isso é um problema porque o Iphan sempre teve profissionais tentando fazer algo pela proteção do patrimônio”, conclui. 

Por e-mail, o Iphan afirmou que ainda não foi notificado pelo MPF sobre as investigações que envolvem a construção da BR-080. Disse ainda que encaminhou a manifestação da ONU à coordenadoria de Contenciosos Internacionais de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Segundo o Iphan, o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT) foi informado sobre a destruição dos sítios arqueológicos na BR-158. A análise do TAC está neste momento sob responsabilidade do CNA.

A assessoria de imprensa do DNIT informou que técnicos da Fundação Nacional do Índio (Funai) solicitaram novos ajustes no estudo do componente indígena do licenciamento da rodovia. Para definir estes ajustes, segundo informou o DNIT, a Funai realizaria encontros com a comunidade indígena, com o MPF e com o próprio DNIT, mas estas reuniões ainda não foram marcadas. Procurada, a assessoria de imprensa da Funai não respondeu.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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