29/03/2024 - Edição 540

Ponte Aérea

A lei das Fake News brasileira não irá resolver os problemas de desinformação do país

Publicado em 30/09/2020 12:00 - Raphael Tsavkko

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O Brasil está lutando contra uma crise de desinformação. Para resolvê-la, o país deveria investir em educação e responsabilizar os financiadores das redes de fake news. Em vez disso, o Congresso Nacional brasileiro está considerando uma legislação que violaria a privacidade e a liberdade de expressão dos 137 milhões de internautas do país.

Vários membros e apoiadores do governo de extrema-direita do presidente Jair Bolsonaro estão sendo investigados por divulgarem notícias falsas durante as eleições. Esses indivíduos alegadamente mantiveram uma rede robusta para disseminar desinformação sobre rivais políticos e jornalistas. Algumas dessas desinformações levaram apoiadores do presidente a atacar fisicamente jornalistas e a tentar invadir o Congresso Nacional em junho.

Mas o projeto de lei das fake news (oficialmente a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet) é, a meu ver, a pior maneira possível de combater o problema. Poderia ser uma das leis mais restritivas da Internet no mundo.

O Brasil foi pioneiro na noção de direitos digitais quando aprovou o Marco Civil da Internet em 2014, criando uma ampla garantia de liberdade de expressão on-line. Entretanto, o novo projeto de lei de das fake news passaria por cima do MCI, permitindo aos legisladores criar um mecanismo que poderia ser usado para restringir a liberdade para milhões de brasileiros. O projeto de lei foi recentemente aprovado pelo Senado e será discutido na Câmara dos Deputados, embora nenhuma data tenha sido estabelecida.

Por que o projeto de lei não atingiria seu objetivo pretendido? Para começar, é vago sobre a questão do que é considerado fake news, que descreve como conteúdo falso ou enganoso compartilhado com o potencial de causar danos individuais ou coletivos. Esta ambigüidade deixa ao Estado a decisão sobre que tipo de conteúdo é considerado falso ou potencialmente prejudicial, e poderia permitir que aqueles no poder manipulem a definição para ganho político.

O projeto de lei também ignora o maior problema com notícias falsas, que não é o conteúdo em si, mas a rede de pessoas que as espalham. O projeto de lei toma várias medidas para desencorajar o uso de contas não autênticas, mas não toca no problema principal das contas reais que são as principais responsáveis por legitimar o conteúdo falso e disseminá-lo através de redes sociais.

Por exemplo, o projeto de lei torna ilegal a criação de contas automatizadas anônimas (ou bots), a menos que sua finalidade e proveniência sejam claramente indicadas. Isto pode ser um problema para qualquer pessoa que utilize um pseudônimo nas redes sociais para garantir sua liberdade expressão. Além disso, os usuários suspeitos de criar bots ou contas anônimas seriam obrigados a apresentar documento de identidade a empresas de tecnologia sem uma ordem judicial. As contas poderiam ser denuncias como suspeitas por uma grande variedade de razões — incluindo, em teoria, disputas políticas.

O projeto de lei também inclui aparentes medidas de segurança que eu considero Cavalos de Tróia porque permitiriam ao governo vigiar usuários. Por exemplo, estipula que as plataformas de mídia social devem manter registros de mensagens que são encaminhadas por pelo menos cinco usuários para mais de 1.000 outros usuários no prazo de 15 dias. O problema aqui é que os dados de qualquer usuário que encaminhar tal mensagem serão armazenados, mesmo que esse usuário não tenha a intenção de desinformar.

Outro problema é que a lei corre o risco de transformar o Brasil em uma ilha com suas próprias regras que “congelam” a tecnologia. Por exemplo, ela cria um padrão baseado no WhatsApp para aplicativos de mensagem, forçando outros desenvolvedores a se adaptarem ao modelo do WhatsApp para limitar como mensagens podem ser encaminhadas ou quantos participantes podem se juntar a grupos.

Talvez o pior do projeto de lei, no entanto, é que ele reverte um dos maiores avanços trazidos pelo Marco Civil. De acordo com o MCI, as plataformas não são responsáveis pelo conteúdo postado pelos usuários e devem remover tal conteúdo somente se uma ordem judicial especificar que crime ou ato ilegal foi cometido. Em contraste, o novo projeto de lei torna as plataformas sociais responsáveis por tudo o que é publicado nelas. Isto os levará a remover agressivamente o conteúdo que possa desagradar ao governo, e irão policiar os usuários por postagens impróprias.

Penso que empresas como YouTube, Facebook (e WhatsApp) e Twitter deveriam reconhecer sua responsabilidade pelo material publicado em suas plataformas e adotar regras mais claras contra a desinformação. No entanto, este projeto de lei não impediria a disseminação da desinformação. Em vez disso, daria às empresas de tecnologia um poderoso incentivo para limitar a liberdade de expressão dos brasileiros em um momento de agitação política.

Várias organizações já tentaram reduzir o escopo da nova lei, e alguns dispositivos preocupantes foram removidos. Mas o projeto de lei revisado ainda é profundamente problemático.

Uma abordagem melhor seria investigar aqueles que financiam redes de fake news e responsabilizá-los utilizando a legislação já existente. As plataformas de redes sociais também deveriam mudar suas métricas e programar seus algoritmos para deixar de recompensar a disseminação de conteúdo radical e sinalizar o que é claramente falso.

Não importa quantas contas falsas e bots existam, no entanto, notícias falsas tendem a se espalhar através de pessoas reais, como quando Donald Trump afirmou falsamente no Facebook que as crianças são “quase imunes” à covid-19, ou quando Bolsonaro fala sobre os benefícios cientificamente não comprovados da cloroquina. É por isso que a alfabetização na e sobre a Internet é fundamental para qualquer sociedade bem informada. Ensinar as pessoas a identificar o que é falso, fornecer ferramentas para ajudar os usuários a verificar o conteúdo e oferecer maneiras de relatar conteúdo falso deve ser parte da solução no Brasil.

O Marco Civil da Internet foi a resposta da sociedade à tentativas similares do governo de censurar a internet. Em muitos aspectos, este novo projeto de lei parece procurar não combater fake news, mas sim controlar os usuários. A restrição das liberdades civis e da liberdade de expressão não é uma solução aceitável. É impossível combater este problema com pressa — ou apenas pela força da lei.

*Texto originalmente publicado em inglês no MIT Technology Review.

Leia outros artigos da coluna: Ponte Aérea

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *