20/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Não é para principiantes

Publicado em 08/09/2021 12:00 - Idelber Avelar

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Um dos clichês mais insuportavelmente verdadeiros é o de que o Brasil não é para principiantes. PQP, como o ditame de Tom tem sido verdadeiro (nestes oito anos, especialmente!).

Eu nem me refiro ao recuo em si do minúsculo. Isso é parte do jogo de puxa-estica-puxa dele, próprio de todo populismo extremista como o bolsonarismo, que se refestela em produzir antagonistas em tempo integral com bravatas—que, exatamente por serem bravatas, precisam ser periodicamente recuadas. Se a bravata é, por definição, a subida de tom, ela não pode se manter enquanto tal indefinidamente. Ela necessita recuos. Um desses recuos gerou até uma capa da Veja que virou meme.

O que não é para principiantes, e cuja ironia passará despercebida até pelos comentaristas estrangeiros mais argutos, é o fato de Jair ter ido, depois de fazer de Alexandre de Moraes seu maior inimigo, atrás de MICHEL TEMER para aconselhar-se. A ironia é espetacular demais.

Para quem não acompanhou de perto as nomeações ao STF nas últimas décadas: Alexandre de Moraes está para a presidência Temer assim como Gilmar Mendes está para a Presidência FHC assim como Lula pensou que Toffoli estaria para as presidências do PT, a saber, o capangão qualificado que você coloca na Suprema Corte para blindar e proteger o seu naco do sistema político. No caso de Temer, claro, esse naco é a oligarquia do peemedebismo. Para protegê-la Alexandre de Moraes foi nomeado ao STF.

E agora Jair —- HAHAHA — basicamente assina uma nota ESCRITA POR TEMER! Ou alguém acha que Jair é capaz da frase “quero declarar que minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum”?!

Temer é tão a quintessência do sistema político brasileiro que, em uma mesma tacada, ele salva Bolsonaro e salva o petismo. Nós queremos o impeachment de Jair. A maioria da sociedade quer. O petismo não quer o impeachment, porque precisa de Jair candidato em 2022 para alavancar Lula. Jair, obviamente, também não quer. E o sistema político oligárquico do peemedebismo representado por Temer também não.

Como na votação da cassação da chapa no TSE em 2017, de novo coincidem os interesses do petismo e os interesses de Temer, mesmo depois do “golpe”. Como no primeiro turno de 2018, coincidem os interesses do petismo e do bolsonarismo.

Corre atrás pra entender essa, Glenn! Essa ficou difícil de explicar, né Chomsky & Perry Anderson? Chama-se saída à brasileira, ou a pactuação amnésica via oxímoros.

Enquanto isso, o gado bolsonarista chora suas dores de corno pela internet, o que é a parte divertida da história, também bastante própria do Brasil. O bolsonarismo é um fascismo inédito entre nós, mas a idolatria por político é um traço impressionante que nos atravessa.

Bem-feito, babacas. Pra aprender a não lamber bota de político.

MICARETA

Prefiro não especular se a micareta bolsonarista flopou ou bombou, inclusive porque é temerário fazê-lo de longe, no calor da hora, e desterrado por um furacão. Mas assisti, ouvi e li o suficiente para saber que, seja lá qual for sua leitura do (in)sucesso da micareta, é fato indiscutível que a palavra "impeachment" voltou a circular como não se via há meses.

Gente mais equipada que eu para falar do assunto já notou isso ontem, e o jurista Conrado Hubner reiterou o óbvio: não fazer o impeachment vai custar muito mais caro ao país.

Na sua newsletter "Refúgio do Ruído", atualizada agora há pouco, o jornalista João Villaverde foi na mesma linha: "Ele tentará novamente. Fará quantas vezes for possível. Achacar o país, plantar a discórdia e fomentar o caos é tudo o que ele sabe fazer […] Se ele não for impedido de continuar na Presidência, ele continuará a agir como sempre. Um impeachment parece improvável, mas não é impossível."

Como se faz? Uai, pressão popular no Congresso, pressão popular na Suprema Corte. Dá pra fazer, há chances? Uai, alguém achou que a sequência de coisas que aconteceram no Brasil nos últimos oito anos era possível? Não, né? Então tentemos.

Essa é, e sempre foi, a minha posição, como sabe quem passa por aqui, e hoje me alegrei de ler o tuíte do Conrado Hubner e a newsletter do João Villaverde.

#ForaBolsonaro #ImpeachmentBolsonaro

ÍNDIOS E MARCO TEMPORAL

Sobre os índios e o marco temporal, Demétrio Magnoli cometeu ontem (4), na Folha, um texto em que todas as frases estão erradas. Não deixo de reconhecer a beleza disso quando acontece. Coloco o link ao texto dele no comentários. Incluo também um link do Instituto Socioambiental, que sabe do que fala. A ilustração que acompanha o post é do ISA também.

Faço questão de comentar o artigo, inclusive porque andei elogiando textos do Magnoli em anos recentes e é sempre bom responder não só a ele, mas também aos malucos de internet que acham “incoerente” elogiar o autor P quando ele escreve sobre o tema X e criticá-lo quando ele escreve sobre o tema Z.

Magnoli já começa sofismando e dizendo que “Numa nota do Painel da Folha, aparecem como sinônimos as expressões 'terras indígenas' e 'terras contestadas.'” Isso é falso, basta ler a nota para ver que não é isso o que ela diz. Tudo o que ela diz é que a aprovação do chamado marco temporal pode levar a uma onda de contestações judiciais de terras já demarcadas, o que é uma obviedade. Pois se terra indígena no Brasil, mesmo as já demarcadas, costuma ser ameaçada de tudo quanto é forma ilegal ou paralegal, o que se dirá das ameaças legais possibilitadas por um instrumento como esse, a premissa de uma equivalência entre “tradicionalmente ocupadas” e “ocupadas em 1988”? ESSA é a premissa de equivalência que o STF vai decidir, não o fantasma que está na cabeça de Magnoli, o de que o STF, caso negue o marco temporal, produziria “emendas à Constituição, substituindo o Congresso”.

Magnoli erra de novo ao dizer que “O STF voltou ao tema em 2009, no julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol”. É outra incrível frase em que todas as palavras estão erradas. Não existe “julgamento de terra indígena” porque a demarcação de TIs é prerrogativa do Executivo, através do Ministério da Justiça. O STF julgou ações CONTRÁRIAS a demarcações já ocorridas, o que é coisa bem distinta. E o STF não “voltou” ali ao tema do marco temporal. Um Ministro do STF inventou a gambiarra do marco temporal para safar-se de um problema político criado pelos arrozeiros de Roraima, essa é a verdade. Da mesma forma como Ministros do STF inventaram gambiarras para tentar resolver inúmeros problemas políticos nos últimos tempos.

Um pouquinho de memória: a demarcação da TI Raposa Serra do Sol foi homologada pelo Presidente Lula no dia 15 de abril de 2005. Naquela ocasião, o PLENÁRIO do STF extinguiu as ações contrárias à demarcação, sem que a expressão “marco temporal” aparecesse nem uma única vez.

Insuspeito de ser lulista ou petista, eu sempre reconheci que a demarcação da TI Raposa Serra do Sol foi um ato de coragem do governo Lula, e a prova dos nove é clara ao se ver o custo. O petismo nunca mais foi competitivo nem em eleição para síndico de prédio em Roraima, e a razão é uma só: Raposa Serra do Sol. Como se sabe, no Brasil, hostilizar índio dá voto.

Esqueça as piruetas a que juristas recorrem quando querem defender os interesses dos poderosos e confira comigo no replay, você que é falante nativo da língua portuguesa. Diz a CF, em seu artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

Agora me digam: em que planeta em que se fale a língua portuguesa a frase “eu tradicionalmente sou atleticano” significa que comecei a ser atleticano no momento em que enuncio a frase? Essa é a DEMÊNCIA chamada marco temporal, pura gambiarra daquelas que vimos à mancheia no sistema jurídico brasileiro nas últimas décadas.

Como se o legislador tivesse previsto que apareceria um Magnoli para ler errado, o § 1º do artigo 231 deixa a coisa clara mais uma vez: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

Não há ambiguidade. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios estas (“as habitadas em caráter permanente”), essas (“as utilizadas para suas atividades produtivas”) E TAMBÉM aquelas outras (“as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar”).

Trocando em miúdos: se em 1988 os Guarani Kaiowá estavam sendo caçados a bala de suas terras no Mato Grosso do Sul, como podem provar que estavam ocupando-as em 1988? Com um pedaço de papel?

Quem está querendo emendar a Constituição não são os índios, são os agropecuaristas, o Bolsonaro e o Magnoli.

O que os índios exigem é que se cumpra o que está nela e o que sempre foi entendimento óbvio do que significa “tradicionalmente”, pacificado desde 1988, até que no final dos anos 2000 (lembremos, com Raposa Serra do Sol já demarcada havia vários anos), inventou-se o pepino do marco temporal, que agora o STF tem a obrigação de enterrar, inclusive para ser coerente com sua própria jurisprudência. Quem criou essa bagunça aí não foram os índios.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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