18/04/2024 - Edição 540

Poder

Saída de cubanos afeta também os centros urbanos

Publicado em 23/11/2018 12:00 -

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Os mais de 8 mil cubanos do Mais Médicos começaram a deixar o Brasil na segunda quinzena de novembro. A partida dos latino-americanos prejudicará a assistência à saúde em quase 1,5 mil municípios nas cinco regiões brasileiras. Segundo o Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde, 611 cidades correm o risco de ficar sem nenhuma equipe médica.

Os mais afetados serão os moradores dos rincões do país – aldeias indígenas, povoados nos sertões nordestinos, localidades na Amazônia, além de comunidades ribeirinhas e quilombolas, por exemplo. Mas populações dos grandes centros urbanos também ficarão desassistidas. De acordo com dados que vêm sendo divulgados pelas autoridades, diversos municípios, regiões metropolitanas e cidades de médio porte sofrerão baque considerável com o desmantelamento do Mais Médicos, programa criado em 2013 pelo governo federal.

Em Guarulhos, maior cidade do Estado de São Paulo depois da capital, mais da metade dos profissionais do Mais Médicos (28, de um total de 54) é formada por cubanos. Em outros dois grandes centros paulistas a proporção é semelhante: no ABC, dos 151 médicos do programa federal, 81 são do país caribenho. Em Campinas, são 46 cubanos de um total de 87 profissionais.

Ainda em São Paulo, na Baixada Santista a equipe do Mais Médicos será reduzida em 40%, com a partida dos 65 cubanos que atuam nos municípios daquela região metropolitana (de um total de 163 profissionais). Só em Santos, cidade do ex-ministro da Saúde (2012-2014) do governo Dilma Rousseff, o médico e professor Arthur Chioro, 26 cubanos estão se despedindo da rede básica. “É uma tragédia para a vida e a saúde de 30 milhões de brasileiros”, escreveu Chioro.
De outros Estados, os levantamentos mostram desfalques igualmente consideráveis. Ponta Grossa, no Paraná, está perdendo 60 dos 80 profissionais do Mais Médicos no município, com a partida dos cubanos. Em Londrina, dez, de um total de 40 médicos, são cubanos e deixam a rede de saúde local. Na vizinha Santa Catarina, em Joinville, a redução da equipe será em torno de 10% (11 cubanos de um total de 111 médicos), percentual semelhante ao de Porto Alegre – 14 cubanos deixam a capital gaúcha.

Apreensão nos municípios

No começo, até o idioma parecia um empecilho para que os médicos estrangeiros recém-chegados ao Brasil conseguissem se comunicar com a população das periferias e das cidades mais isoladas do país. Mas a exigência do período de três anos para atuar na mesma localidade incluída no convênio firmado com Cuba levou esses profissionais a criarem vínculos com as comunidades, que, segundo gestores municipais, repercutiram também em uma melhoria dos indicadores de saúde. Cidades que até então tinham cobertura praticamente nula na atenção básica —aquela considerada mais preventiva, pois faz o primeiro atendimento— passaram a multiplicar equipes e desafogar os atendimentos especializados e em hospitais, economizando verba pública. Segundo o Ministério da Saúde, o programa Mais Médicos, viabilizou que 700 cidades tivessem médicos pela primeira vez. A presença desses profissionais em mais localidades ampliou o acesso à saúde, as consultas e pré-natais e reduziu até índices de mortalidade infantil.

Em Embu-Guaçu, a 47 quilômetros de São Paulo, a rede de atenção básica era praticamente inexistente antes de 2013, quando chegaram os primeiros médicos cubanos em missão ao país. A secretária de saúde Maria Dalva dos Santos conta que eram escassas as inscrições de médicos brasileiros interessados em atuar na cidade de 67.000 habitantes. “A gente fazia os concursos, mas pouca gente participava”, diz. Segundo ela, o Mais Médicos foi fundamental para que o município pudesse estruturar toda a rede de atenção básica. “Nossa rede virou realidade pelo programa. De 2016 pra 2017, nós tivemos uma redução de mortalidade infantil de 14% para 6%”, afirma.

A saída desses médicos tem causado grande apreensão em diversos municípios, entre eles Embu-Guaçu. Todo o atendimento da rede básica da cidade é feita por médicos do programa federal. São 18 médicos, no total, apenas dois deles brasileiros, formados no exterior. Os outros 16 são cubanos e todos eles retornarão à Cuba, seis já em 25 de novembro. “Vamos perder quase 100% dos nossos médicos”, diz a secretária. “Estamos muito inseguros por não saber como vai ser. Ficaremos totalmente descobertos na atenção básica.”

Ela teme um grande retrocesso na assistência prestada na cidade caso o Ministério da Saúde não consiga preencher as 8.300 vagas ociosas pelo fim do convênio e atender aos 24 milhões de brasileiros que dependem desses profissionais. “A gente está muito preocupado porque não conseguimos candidatos em todas as nossas tentativas anteriores de contratar médicos. A gente espera que o Ministério tome uma atitude fidedigna e consiga repor essas vagas”, afirma.

A 53 quilômetros de Embu-Guaçu, também no Estado de São Paulo, o município de Mauá deve perder 33 dos 46 médicos que atuam no programa. A pesquisadora Melissa Spröesser Alonso (Sanitarista e Mestra em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO) acompanhou a implantação do programa na cidade que, se antes tinha dificuldade de contratar profissionais para a periferia, chegou a duplicar as equipes de saúde nos últimos anos e reduzir os índices de mortalidade infantil com o acompanhamento eficiente do pré-natal.

Antes da chegada dos médicos cubanos, Mauá tinha 40 equipes de saúde da família, mas havia uma dificuldade de fixar esses médicos na cidade e de garantir que tivessem a formação em saúde comunitária. De acordo com o Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde (Depreps), do Ministério da Saúde, os médicos cubanos têm 62% de permanência no programa enquanto os brasileiros têm 21% e os estrangeiros 17%. “Essa era a dificuldade de muitos municípios desde a criação do SUS. O Mais Médicos tinha esta característica de o profissional permanecer um tempo mínimo no local, o que permite o vínculo com a comunidade”, explica Melissa.

Em 2010 e 2011, a pesquisadora diz que Mauá chegou a oferecer salários mais altos aos médicos que os oferecidos pela capital São Paulo, mas ainda assim não conseguiu suprir a cobertura. “Com o Mais Médicos, conseguimos avançar até o final de 2016 para 85 equipes. Os médicos enfim ficaram nessas regiões onde o médico brasileiro ainda não chegava ou não se fixava. Mauá colocou médicos nas unidades que tinha e ainda ampliou as equipes. Com isso, conseguiu uma cobertura da atenção básica estratégica”, avalia.

Com os casos resolvidos diretamente na atenção básica, as internações hospitalares desnecessárias foram reduzidas. As consultas de urgência, por exemplo, caíram de 76.633 em 2013 para 29.547 em Mauá, em 2017. O aumento no número de consultas na unidade básica e da realização de pré-natal também repercutiu na redução da mortalidade infantil no município: caiu cinco pontos percentuais em três anos (16% para 11%). A cobertura na atenção primária que era de 60,49% em 2012 chegou a 75% no ano passado com o reforço dos especialistas cubanos. “Quando as equipes foram ampliadas, Mauá mudou o perfil do médico. Não se trata só de conseguir médicos com o programa, mas também da formação desse médico. Eles [cubanos] são focados na atenção básica. O fato de a formação deles já ser em saúde da família fez a diferença”, analisa a pesquisadora.

Vazio assistencial

Os governadores dos estados da região Nordeste, única região em que o presidente eleito foi derrotado por Fernando Haddad (PT), realizaram uma reunião no último dia 21 para definir os assuntos prioritários como demanda para o próximo governo. Um pedido de audiência no Palácio do Planalto em 2019, já no governo Bolsonaro, foi formalizado pelos gestores, e um dos temas prementes fala em “vazio assistencial” depois da crise no programa Mais Médicos.

A reunião dos governadores com Bolsonaro foi fechada e realizada durante a manhã, em Brasília, para definir os temas prioritários reunidos em carta (veja a íntegra e as assinaturas). O documento tem alguns pontos em comum com o que foi produzido na reunião de 19 governadores eleitos e reeleitos, realizado na semana passada.

O documento, dirigido a Bolsonaro, será entregue ao futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, na reunião do Fórum dos Governadores, marcada para o dia 12 de dezembro. Ainda não há previsão de que Bolsonaro participe da reunião dos governadores no próximo mês.

Foco nas capitais

"O médico formado no Brasil, com o CRM do país, normalmente quer estar mais perto de um grande centro, onde pode também ir pra iniciativa privada com propostas melhores", explica ela. Segundo dados da Democracia Médica no Brasil 2018, uma pesquisa do professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Mário Scheffer, 84% dos recém-formados em medicina têm nas condições de trabalho o principal fator determinante para fixação em uma instituição ou cidade após a graduação ou residência. A segunda condição mais apontada foi a qualidade de vida, seguida pela remuneração. Por isso, as vagas em locais mais distantes do país ou municípios menores, geralmente com estrutura mais precária, costumam interessar menos estes profissionais.

Dos dez primeiros médicos brasileiros que se inscreveram na quarta-feira (21) para as 8.517 vagas deixadas pelos cubanos, cinco deles escolheram atuar em capitais e municípios de regiões metropolitanas.  Apenas um município escolhido é considerado de extrema pobreza. Outro está em área vulnerável e um terceiro em uma cidade com até 50 mil habitantes. O Ministério da Saúde recebeu mais de 1 milhão de acessos simultâneos no momento da abertura das inscrições. Segundo a pasta, o número representa mais do que o dobro de médicos em atuação no país e pode ser considerado ataque cibernético.

Ao se retirar do Programa Mais Médicos, Cuba forçou o Brasil a lidar com uma encrenca que fora enviada à UTI em 2013 e vinha sendo mantida desde então em coma induzido. De repente, o país foi forçado a lembrar que faltam médicos nos fundões miseráveis do mapa e nas beiradas empobrecidas das regiões metropolitanas. Ao ordenar aos seus doutores que façam as malas, a ditadura de Havana ofereceu aos similares nacionais a oportunidade de informar à opinião pública brasileira se fazem parte da solução ou se integram o problema.

“O Brasil conta com médicos formados no país em número suficiente para atender às demandas da população”, apressou-se em informar o Conselho Federal de Medicina em nota oficial divulgada na semana passada. Há cinco anos, quando os cubanos começaram a desembarcar no Brasil, a mesma entidade reagiu com o fígado: ''Não admitimos uma medicina de segunda para os mais carentes. Até porque quem está no governo, quando adoece, vai para hospitais de primeira linha.''

Faltou dizer que, numa cidade sem médico, não há medicina de segunda nem de primeira linha. Em localidades assim, o que há são doentes desassistidos, tratados como seres humanos de última linha. Ninguém se lembra. Mas nessa mesma época em que a corporação pegou em bisturis para defender sua reserva de mercado, o médico cubano Juan Delgado, recebido com vaias no aeroporto de Fortaleza, iluminou com poucas palavras a falta de nexo da revolta dos jalecos nacionais.

“Vamos ocupar lugares onde eles não vão”, disse Juan na ocasião. “Impressionou-me a manifestação. Diziam que somos escravos, que fôssemos embora do Brasil. Não sei por que diziam isso, não vamos tirar seus postos de trabalho. Isso não é certo. Seremos escravos da saúde, dos pacientes doentes, de quem estaremos ao lado todo o tempo necessário. Os médicos brasileiros deveriam fazer o mesmo que nós: ir aos lugares mais pobres prestar assistência.''

No dia 20, o Diário Oficial da União publicou um edital oferecendo a médicos brasileiros cerca de 8,5 mil vagas ocupadas por cubanos. A novidade foi anunciada na véspera pelo ministro Gilberto Occhi (Saúde), num encontro com prefeitos. No mesmo evento, Michel Temer declarou que nenhum município ficará “desprovido” de assistência médica. Acredita quem quer. Duvida quem tem juízo.

No início do ano, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) divulgou estudo chamado “Demografia Médica 2018”. Pode ser lido aqui. Revelou a existência de uma quantidade recorde de médicos no Brasil: 452 mil profissionais. Em teoria, isso garantiria 2,18 médicos para cada mil habitantes. Algo muito próximo da taxa registrada em países desenvolvidos como o Canadá (2,7 médicos por mil habitantes) ou Reino Unido (2,8).

O problema é que 63,8% dos médicos brasileiros estão no Sudeste (41,9%), no Sul (14,3%) e no centro-oeste (7,6%). Mais da metade (55,1%) encontra-se nas capitais. O Ministério da Saúde informa que os médicos cubanos distribuíram-se em 2.885 cidades, das quais 1.575 não dispunham de um mísero doutor verde-amarelo. A grossa maioria dos profissionais enviados por Havana foi para áreas paupérrimas do Norte e do Nordeste. Outra parte ficou em áreas periféricas de centros urbanos. A saída dos cubanos deixará sem médico 28 milhões de potenciais pacientes.

A pergunta que se impõe é: quantos profissionais brasileiros toparão ocupar as vagas dos “escravos” cubanos? A julgar pela nota do Conselho Federal de Medicina, as 8,5 mil vagas oferecidas pelo Ministério da Saúde não serão preenchidas facilmente. A entidade condiciona o deslocamento dos médicos a uma inexistente “carreira de Estado”, ao provimento de improvável “suporte” logístico e “remuneração adequada”.

Afora o salário de R$ 11,5 mil mensais, não há garantias quanto ao resto. Em vídeo divulgado no inicio do mês, o conselho dos médicos expôs o modelo de saúde pública que espera ver implantado com a posse dos governantes e legisladores eleitores em outubro (assista abaixo). Se o deslocamento dos médicos para as áreas desassistidas depender do surgimento do mundo idealizado pelos doutores, os doentes miseráveis podem cair de joelhos e rezar por um milagre. Se Deus não ajudar, os médicos é que não socorrerão.


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