28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

A literatura em Mato Grosso do Sul está em sua melhor fase

Publicado em 17/07/2014 12:00 -

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O advogado e escritor Samuel Xavier Medeiros preside a União Brasileira dos Escritores em Mato Grosso do Sul (UBE-MS) pelo terceiro mandato consecutivo. Entidade que congrega a produção literária no estado e a incentiva com eventos como a já tradicional Noite Nacional da Poesia (em sua 26ª edição). Apesar dos índices numericamente rasteiros de leitores e livrarias em Mato Grosso do Sul, Samuel Medeiros é um otimista, e aponta uma boa fase da literatura no Estado. Confira a entrevista.

 

Por Victor Barone

A quantas anda a qualidade da literatura produzida em Mato Grosso do Sul?

Nunca esteve em sua melhor forma. Afirmo isso, ao contrário da academia formal porque esta é elitista, e pratica uma literatura fechada sem as aberturas que os novos tempos anunciam. Não vamos querer que todos sejamos “manuéis de barros”, mas há bons jovens poetas aparecendo e as publicações se multiplicando. Só desconhece a literatura sul-mato-grossense quem quer, e isto tem sido uma constante de queixas até de professores das escolas de nível médio que, por não pesquisarem, não se atualizarem, preferem continuar recomendando a seus alunos os antigos simbolistas brasileiros e a poesia parnasiana, isto só falando em literatura nacional.

Que autores têm se destacado neste cenário?

Para distinguirmos os autores que se destacam, há o chamado “gosto literário”; a uns, o livro é excelente e a outros, aberração. É difícil se chegar a um ponto comum e, para isso, vejo-me como leitor observador. Aprendi, ao abrir um novo livro, constatar a qualidade do texto, seja verificando os lugares-comuns, o abusivo uso de adjetivos e gerúndios, etc.

Segue-se daí, que tenho observado novos autores e, sem menosprezar ou esquecer de muitos, cito exemplos como Reginaldo Costa de Albuquerque, poeta, mas que se destaca em contos trabalhados com requisitos estruturais fruto de observação e leitura; Elias Borges, que primeiro publicou os minicontos, Ileides Muller e Rubenio Marcelo com inventividades poéticas que nos tem surpreendido e André Luiz Alves que dá o tom em seus romances do que se pode chamar de estilo do escritor sul-mato-grossense.

Não se deve esquecer, também, da vasta publicação a cargo do Instituto Histórico e Geográfico de MS. Nos últimos anos, o Instituto editou centenas de livros de autores do Estado há muito fora do catálogo, referência obrigatória para pesquisadores, historiadores e simplesmente aos que gostam de leitura. Sob responsabilidade deles, foram publicadas as obras completas de Hélio Serejo, o mais significativo prosador da literatura sul-mato-grossense.

Como fazer literatura em um Estado onde quase não há livrarias e o índice de leitores é tão baixo?

As boas livrarias estão concentradas na Capital e, assim mesmo, sobrevivem à custa de adereços como filmes, jogos, discos, papelaria etc. Quando o leitor deseja um título pouco comum, tem de se valer da Internet, pagar um frete e aguardar a paciência dos correios. Mas assim mesmo, compensa fazer literatura em nosso Estado e acho que o número de leitores não está tão baixo assim. Tirando um exemplo próprio, publiquei duas edições de meu “Senhorinha Barbosa Lopes – uma história da resistência feminina na Guerra do Paraguai”, a primeira em 2007 e a segunda em 2012 e ambas edições de mil exemplares cada uma estão esgotadas. Sinal de que há sim, leitores. Precisamos mudar nosso discurso e não nos conformarmos com as pesquisas que indicam baixo índice de leitores. Sou um lutador animado e persigo os bons títulos locais recomendando-os sempre que possível.

Uma política séria de abertura de bibliotecas ajudaria a incentivar a leitura?

Não creio. As bibliotecas são templos estáticos onde se reverenciam livros. Nunca me vali muito de bibliotecas, porque não se atualizam e me serviram apenas para pesquisas, hoje quase superadas pela Internet. Como a maioria são públicas, não há uma verba específica para a aquisição de lançamentos importantes e, as únicas iniciativas dentro das bibliotecas estaduais são promoções de eventos literários para o público infanto-juvenil. Bem. Quem sabe estão apostando nas novas gerações. No entanto, se houver a que você chama de “política séria”, mais investimento e a abertura das bibliotecas aos domingos, por exemplo, seriam mecanismos importantes e necessários para o incentivo à leitura não só dos autores de nosso Estado, como a boa literatura nacional e estrangeira.

As bibliotecas são templos estáticos onde se reverenciam livros. Nunca me vali muito de bibliotecas, porque não se atualizam.

Como o poder público pode intervir no hábito da leitura?

As tentativas estão sendo feitas pelo Governo do Estado como agente da produção cultural pública, com o crescente apoio à publicação de livros pelo Fundo de Investimento Cultural. Os títulos são variados e muita coisa boa tem surgido, mas poderiam aparecer novas iniciativas além do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL) e sua ramificação estadual. No âmbito municipal, temos uma conquista, o 1% do orçamento municipal para a cultura que derivou da participação da comunidade cultural. Participei dos debates e acompanhei junto com o Fórum Municipal de Cultura essa luta. Com esse dinheiro, resta aos produtores culturais produzirem ações que justifiquem o aporte e, na nossa área, a literatura, tenhamos produção crescente.

O senhor preside foi reeleito para seu terceiro mandato como presidente da UBE. Qual o papel da entidade?

Estou sendo reeleito na presidência da União Brasileira de Escritores por três mandatos, agora, para mais um que terminará em 2016. A UBE é uma entidade que congrega escritores do Estado, e tem entre suas finalidades a defesa dos direitos do escritor, o cuidado com os direitos autorais e o apoio mútuo à criação literária. Por paradoxal que seja, ao se constituir em classe, um grupo tem motivação também para criação individual. Outro papel é o de incentivador da criação literária e da leitura e, para isso, realizamos com o apoio financeiro da Prefeitura de Campo Grande, o concurso literário “Noite Nacional da Poesia”, que já está no seu 26º ano. Na noite de premiação dos ganhadores, são convidados autores de destaque nacional, como este último, em junho, Cristovão Tezza, que está no “top” dos escritores brasileiros, reconhecido internacionalmente por sua obra “O filho eterno”. O público que prestigiou o evento foi variado, incluindo pessoas de outras cidades, como Aquidauana, Dourados e Jardim. As repercussões à palestra de Tezza foram as mais estimulantes possíveis; também achei interessante que todos os livros que a Editora dele mandou, foram vendidos naquela noite, sinal que se lê, sim, em MS. Também foi animador verificar que no concurso 26ª Noite Nacional da Poesia, embora em nível nacional, tivemos o primeiro lugar ocupado por poeta de Campo Grande. E olha que o júri foi qualificado: dois professores da UEMS e uma da UFMS (todos professores-doutores). É o trabalho da UBE como entidade cultural, apolítica e dirigida essencialmente a esta manifestação das artes, a literatura.

Que espaços os novos autores tem para tentar emplacar sua produção literária no MS?

As organizações literárias, como a UBE e a Academia Sul-mato-grossense de Letras tem sido um caminho onde novos autores têm procurado para incentivar suas publicações; quando o novo escritor procura se unir aos que já produzem, é sinal que ele está entendendo que seu livro, cuja criação é um ato solitário, unilateral, tem de possuir a alguma participação dos mais experientes para sua publicação; o novo escritor terá de se unir a outros para que torne seu trabalho conhecido. Não que queiramos, nós da UBE, dar paternidade à criação alheia, mas é salutar verificar quando o novo autor nos procura, não só para ler seu trabalho, como para opinar, acrescer, retirar parte do texto, etc. É desanimador quando tomamos um livro e verificamos que o mesmo só tem a opinião do autor: ele mesmo fez o prefácio, a orelha e tudo mais. De vez em quando sou surpreendido ao ler uma matéria no caderno de cultura do jornal sobre o lançamento de um livro, vou apurar e vejo que não tem significância literária alguma. A literatura tem seu ritual e deve ser tratada no seu meio. Um livro, a não ser que seja um livro de receitas, não pode ser encarado como simples mercadoria. Se é bom, se carrega os tons da boa literatura, terá sim, boa distribuição.

Quanto a “espaços”, essa é uma questão que discutimos muito na UBE. Diversas livrarias da Capital não aceitam os livros de autores regionais ou, se aceitam, além da alta porcentagem de ganhos, requerem Nota Fiscal que custa burocracia e dinheiro ao autor. Daí escondem os livros numa prateleira lá no fundo, em pé ao lado dos livros de autoajuda. O aeroporto de Campo Grande possui uma banca bem organizada e atraente, mas os livros que lá constam são apenas os encontrados nas livrarias dos grandes aeroportos brasileiros. Não aceitam a literatura regional, não querem ser os transmissores de uma cultura que não conhecem.

No entanto, se salvam a Casa do Artesão, que permanentemente expõe os livros dos autores de nosso Estado em estante bem visível e, por isso vendem, e os sebos. Já vi meus livros nos sebos e não fui eu quem os levou para lá.

Temos no MS um nome de peso da poesia brasileira, Manoel de Barros. Ele é uma exceção ou há boa poesia sendo feita sem ser percebida?

O Manoel de Barros é uma unanimidade, convenhamos. Por isso me referi no início desta entrevista que não é necessário que nos tornemos iguais. No entanto, tenho observado que sua poética tem influenciado nossos autores de forma cada vez mais acentuada. Quando vemos algum poeta usar das metáforas que ele usa, da exemplificação regional e recursos linguísticos, é a tal influência, às vezes involuntária, que surge. Recentemente tivemos a publicação de um excelente livro “Universos – experimentações poéticas à luz das realidades inventadas”, de Raphael Lugo Sanches, campo-grandense e professor da UEMS. A temática de seus poemas remete à inventividade que se reserva a Manoel de Barros, mas guarda sua personalidade. Como ele, talvez nem se perceba, mas há autores que acabam como produtos de uma temática anteriormente inventada que veio à luz somente com Manoel de Barros, quando uma palavra suscita a outra, uma imagem a outra. Este livro, de Raphael, é uma das exceções à boa poesia que se pratica em nosso Estado.

Há autores que acabam como produtos de uma temática anteriormente inventada que veio à luz somente com Manoel de Barros.

A exemplo de Parati (no Rio de Janeiro), Mato Grosso do Sul poderia abrigar um festival de Literatura de peso usando o apelo de Bonito e do Pantanal como cenário. Isso já foi aventado?

Sim, mas as tentativas fracassaram. Primeiro, que não temos um clima apropriado a tais festivais. Quando falo em “clima”, estou me refindo a Editoras. Não possuímos editoras em nosso Estado que invistam nos escritores para um trabalho efetivo como bancar a impressão e distribuição do livro e as editoras de fora, quando aqui vem, vem trazer o restolho. Exemplo disso foi, acho que no ano de 2009 ou 2010, uma feira de livros no Armazém Cultural, com livros a R$ 5. Muito bem. Na mixórdia de títulos, em fenomenais estoques das livrarias de São Paulo, não consegui achar nada melhor que uma velha edição de Os Maias, de Eça, que pude adquirir. O resto, ou era literatura infantil desconhecida e aparentemente de péssima qualidade, ou livros técnicos, dicionários e restos do estoque que não conseguiram vender e trouxeram para “desovar” em Campo Grande. Outra feira, foi tentada com excelente produção pelo SESC, mas não vi respostas do público. Talvez com ampla publicidade, unindo-se as belezas de Bonito com bons investimentos, quem sabe seria uma boa tentativa literária.

É possível viver sem literatura?

Sim. É claro essa resposta é afirmativa e paradoxalmente contrária ao que represento; vivo vinte e quatro horas pensando em livros, em atividades literárias, e não me considero exceção, como eu, há muitos. Mas, muitos mais são os que não se importam, ou não avaliam a importância dos livros e vivem sem eles, em suas casas não os possuem; consideram a leitura um mundo distante do seu, por isso vivem sem a literatura. Aí fica a pergunta: se eu acho tão primordial viver a cultura, as artes, o cinema, a literatura, porque existem pessoas que preenchem seu tempo, seu lazer com outras coisas? Fico imaginando o ócio de tais pessoas, como deve ser…

Daí volto à questão e respondo: aos que já experimentaram o prazer de um bom livro, jamais poderão voltar atrás. Mesmo os que não produzem literariamente, serão bons leitores e os que não se engajarem nas atividades literárias, serão bom público. De qualquer forma a literatura está aí, se impondo, e não poderemos nunca, prescindir dela seja em forma de livro impresso, quanto na Internet. Aliás, essa é a discussão atual: a Internet deve acabar com o livro. Será? A conferir.


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