27/04/2024 - Edição 540

Poder

Qual a eficácia das propostas de Bolsonaro para a educação?

Publicado em 16/11/2018 12:00 -

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A cobrança de mensalidade nas universidades federais e a transferência de recursos do ensino superior para o ensino básico são algumas das propostas defendidas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e sua equipe para a educação. Um estudo publicado pela Câmara dos Deputados concluiu, porém, que essas medidas não solucionam os gargalos da educação no país. A análise foi feita pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara, cujas publicações têm por objetivo informar os deputados federais sobre temas específicos.

A proposta de acabar com a gratuidade das universidades públicas para os estudantes que podem pagar pelo ensino foi apresentada pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, em entrevistas durante a campanha eleitoral. Para levar adiante a ideia, seria necessária uma mudança na Constituição, o que depende de apoio elevado na Câmara e no Senado.

Defensores do projeto dizem que a cobrança de mensalidade teria um efeito de justiça social, pois os recursos ajudariam a bancar os estudos da população mais pobre. Mas, de acordo com o estudo da Consultoria, a medida traria pouco resultado.

Por outro lado, a política de cotas, que já vigora há anos nas universidades, tornou mais equilibrado o perfil socioeconômico do estudante universitário – refletindo melhor a população do país. Isso significa, também, que o número de potenciais pagadores pelos cursos nas universidades públicas caiu.

Além disso, há o custo político para se aprovar uma medida como essa – que altera a Constituição e não resolve o problema de financiamento da educação superior, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

"Se o governo quer realmente acabar com os privilégios, tem que acabar com a possibilidade de se abater no Imposto de Renda os gastos com a educação privada. Além disso, a cobrança de mensalidade poderia piorar o clima dentro das universidades, com conflitos entre cotistas, estudantes que pagam e os que não pagam pelo ensino", diz.

É difícil saber exatamente quanto poderia ser arrecadado com eventuais mensalidades. Isso depende dos critérios que seriam escolhidos para definir quem paga e quem não paga – e quanto seria cobrado. Mas uma simulação feita com base num projeto semelhante que tramita no Senado mostra que a cobrança bancaria apenas 3,5% das despesas das instituições federais de ensino superior, excluindo os hospitais universitários.

"As mensalidades não seriam suficientes para financiar o ensino superior, que vai continuar dependendo de recursos públicos para funcionar, sobretudo em áreas que requerem maiores investimentos de infraestrutura e laboratórios", opina Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (Iets).

No seu programa de governo, Bolsonaro ressalta que os gastos com educação no Brasil são comparáveis aos de países desenvolvidos, mas os resultados estão entre os piores do mundo. E propõe uma "reversão da pirâmide" de despesas para priorizar a educação básica.

Para os consultores de Orçamento da Câmara, como o cenário é de aperto nas despesas, a simples transferência de recursos destinados aos 1,2 milhão de estudantes do ensino superior seria insuficiente para a melhora das condições de ensino de quase 40 milhões de estudantes da educação básica, sem falar nos prejuízos à qualificada rede federal de educação superior.

Segundo Cara, o Brasil, considerando os gastos de municípios, estados e União, já investe bem mais em educação básica. O orçamento do governo federal, contudo, é mais direcionado às universidades porque o ensino superior e profissional é de responsabilidade da União, de acordo com a Constituição.

"Somos um país federado. A União, claro, poderia contribuir mais e ajudar estados e municípios com a educação básica. Mas não se pode fazer isso em detrimento do ensino superior, da ciência e da tecnologia, ou iremos para uma depressão econômica ainda mais grave", analisa o especialista em financiamento educacional.

De acordo com o Ministério da Fazenda, o Brasil gasta em educação pública cerca de 6% do Produto Interno Bruto (PIB), valor superior à média de 5,5% nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), além de Argentina (5,3%), Chile (4,8%) e Estados Unidos (5,4%).

Mas a análise da Câmara também considerou outro aspecto: o gasto por aluno. Nessa comparação, o Brasil investe menos que os Estados Unidos e os países da OCDE – tanto na educação básica como no ensino superior.

"O gasto por aluno ainda é muito reduzido na educação básica, e há sérias desigualdades regionais. Isso implica baixa remuneração de professores, o que torna a carreira pouco atrativa, além de infraestrutura inadequada em várias redes de ensino. Apesar do discurso recorrente da necessidade de melhoria de gestão, o que envolve toda a administração pública, as carências de financiamento ainda são graves na educação básica", disse Cláudio Tanno, consultor responsável pelo estudo da Câmara dos Deputados.

Desde 2015, o orçamento do Ministério da Educação se reduz diante do quadro de aperto fiscal. Contudo, subiram nesse período os gastos com pessoal e custos administrativos, enquanto que as despesas de custeio – segurança, energia, bolsas de estudo – e, principalmente, os investimentos – equipamentos, ampliação de salas e laboratórios – caíram.

Para Schwartzman, existe muito espaço, especialmente para o governo federal, melhorar a qualidade do gasto, adotando, por exemplo, políticas para evitar que tantos alunos abandonem cursos de graduação, além de uma reavaliação de programas federais para o ensino fundamental, cujos resultados precisam ser analisados.

Educação, o primeiro ‘front’ da guerra cultural do Governo Bolsonaro

Antes mesmo de ganhar a eleição, Bolsonaro já aparecia em vídeos convocando pais e alunos a delatar professores que promovam, segundo suas palavras, “doutrinação ideológica”. Agora, políticos do PSL incentivam o patrulhamento contra “o comunismo e a ideologia de gênero”. Eleita deputada estadual por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo criou um canal para denúncias contra professores. Nesta quinta-feira, a Vara da Infância e da Juventude acatou representação do Ministério Público Estadual e considerou ilegal o canal mantido por Campagnolo, determinando também a retirada do ar de vídeos em que ela aparece conclamando pais e alunos a denunciarem.

Não se trata de iniciativas isoladas, pelo contrário. A pregação contra a suposta sexualização de crianças nas escolas e a “doutrinação” de esquerda na educação são facetas centrais da campanha vitoriosa de Bolsonaro, que também estão presentes na estratégia de mobilização de forças conservadoras e de extrema direita pelo mundo, parte das chamadas “guerras culturais”. Uma semana após a votação, já há sinais de que a Educação será um dos primeiros fronts do bolsonarismo que chega ao poder.

Na Câmara dos Deputados, na euforia após a vitória do capitão reformado do Exército, o tema também se moveu. O projeto “Escola sem Partido”, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual” nas escolas, foi pautado para ser discutido em uma comissão especial. A votação acabou, no entanto, adiada. “Esse tema não é apenas do Parlamento. Ganhou as ruas. É um tema do Brasil. Pautaremos na próxima semana para debate democrático”, prometeu o deputado presidente da comissão, Marcos Rogério (DEM-RO).

Os efeitos já são sentidos em escolas e universidades pelo país, que registraram nos últimos dias episódios de denúncias a professores e rusgas entre apoiadores e detratores de Bolsonaro. Em Fortaleza, o professor de história Jam Silva Santos foi acusado de doutrinação após exibir o filme Batismo de Sangue, baseado em um livro de Frei Betto sobre a ditadura, a estudantes do ensino médio no colégio Santa Cecília. Um aluno gravou trecho do filme que parou nas redes sociais, onde Santos sofreu linchamento virtual sob a alegação de crítica velada a Bolsonaro. Na segunda-feira, ele foi recebido no colégio com aplausos dos estudantes, que consideraram injustas as críticas ao professor. Ele exibe o filme em suas aulas há cinco anos e nunca havia tido problemas semelhantes.

De acordo com o Sindicato dos Professores do Ceará (APEOC), os casos de denúncias por suposta “doutrinação ideológica” têm crescido no Estado este ano. Desde janeiro, pelo menos cinco professores, além de Jam Silva Santos, estiveram sob a mira de críticos nas redes sociais. Um deles é Euclides de Agrela, professor de história e sociologia da Escola Estadual Otávio Terceiro de Farias, em Fortaleza. Uma discussão entre ele e um aluno, expulso de sala depois de ofendê-lo, foi filmada e viralizou em páginas de apoio a Bolsonaro, que atrelaram a fala do professor sobre atitudes “nazifascistas” atribuídas ao ex-capitão à sua militância pelo PSOL, partido ao qual é filiado.

Agrela admite que se exaltou e teve reação descabida à confrontação do estudante bolsonarista, mas condena a divulgação fora de contexto dos vídeos em sala de aula, que lhe rendeu ameaças de morte. “Tive que sair de casa por alguns dias. Um clima de terror.” O vice-presidente da APEOC, Francisco Reginaldo Pinheiro, afirma que o sindicato criou um canal para prestar apoio a educadores vítimas de intimidação e patrulhamento nas escolas. “Defendemos a liberdade de ensino. Existem espaços adequados para queixas de pais e alunos. Expor o professor em rede social é perigoso, coloca sua segurança em risco. Infelizmente isso está se tornando recorrente por causa da polarização ideológica motivada pela política”, diz Pinheiro.

Paulo Freire e os grandes males

O plano de governo em educação é considerado vago em vários pontos como valorização do professor ou reforma do ensino médio, mas a equipe de Bolsonaro explicita bem suas prioridades. Aponta que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação” e promete “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, o patrono da educação brasileira, embora atualmente as bases curriculares tanto do ensino fundamental quanto do médio não façam referência aos métodos do educador. “A rejeição a Paulo Freire é uma estratégia narrativa”, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ex-candidato ao Senado pelo PSOL. “Porque ele simboliza o estímulo ao senso crítico e a própria pedagogia, que, na visão de Bolsonaro, significam doutrinação.”

Cara não está sozinho na avaliação. “O que Paulo Freire preconiza é aceito no mundo inteiro. Estive em Cingapura, primeiro lugar no (teste educacional) Pisa, e eles citaram Paulo Freire como alguém que inspira o país a buscar as aspirações educacionais que desejam”, disse à revista Nova Escola Cláudia Costin, coordenadora do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial.

Outro desejo do futuro Governo é, também, a reinserção no currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica, algo abolido após o fim da ditadura militar. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto, um dos designados por Bolsonaro para elaborar o plano de educação, chegou a questionar a teoria da evolução e defender o criacionismo no ensino de ciências. “Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa”, afirmou Souto.

Souto também prega uma revisão do período ditatorial nas aulas de história, exigindo que se conte “a verdade” sobre o regime. “É uma concepção autoritária da educação”, diz Luiz Carlos de Freitas, pesquisador e professor aposentado da Unicamp. “Enxergam qualquer pensamento diferente do deles como um risco, que deve ser combatido com disciplina e repressão. E, ao combaterem uma possível ideologia com a imposição de suas crenças, acabam caindo na contradição de promover doutrinação às avessas. É um retrocesso.” Atualmente, ao contrário do material didático adotado em colégios militares, que se referem ao golpe militar como “revolução de 1964”, os livros do MEC definem o regime como uma ditadura. O criacionismo consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já a  educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, já vem sendo atacada há anos e é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.

Os obstáculos para colocar as ideias em prática

Para colocar em prática as propostas direcionadas à área a partir do próximo ano, Bolsonaro terá de entrar em rota de colisão com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional Comum Curricular, além de apelar à influência no Congresso. As propostas de revisão de currículo nas escolas se chocam com determinações recentes do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. A reforma do ensino infantil e fundamental já está finalizada, enquanto a do ensino médio deve ser concluída até o fim do ano. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas.


Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, entre elas o revisionismo da ditadura, que, segundo o general Souto, passa pela eliminação de livros que “não tragam a verdade sobre 1964 [ano do golpe militar]”, criacionismo, ensino de moral e cívica e foco nas matérias de ciência, matemática e português, o novo governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo. “Bolsonaro já deu mostras de desprezo pelas regras do jogo democrático”, critica Daniel Cara. “O caminho para emplacar suas medidas na Base Curricular seria um rompimento institucional com o Conselho.”

Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação, lamenta que os planos para educação não tenham sido debatidos na campanha e critica a falta de profundidade dos projetos de Bolsonaro, cujo plano conclui dizendo que a educação precisa “evoluir para uma estratégia de integração” entre os governos federal, estadual e municipal, sem maiores detalhes. “Infelizmente, o debate sobre políticas educacionais não ocorreu nessas eleições. Há muitas propostas em discussão na esfera suprapartidária. Espero que o novo governo esteja disposto a ouvi-las para buscar avanços duradouros na área.”

Pagar por universidade pública depende de mudança na Constituição

No plano já ventilado por apoiadores de Bolsonaro, há propostas como a cobrança de mensalidade nas universidades que dependem de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público. Para revogar as cotas raciais, desejo antigo do presidente de extrema direita, que pretende manter apenas as cotas sociais, ele teria de mexer na lei de 2012 que reserva vagas para estudantes negros e indígenas nas instituições federais. As emendas dependeriam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado. Pelos acenos favoráveis a seu partido, que elegeu a segunda maior bancada de deputados, o governo não teria grandes entraves para aglutinar maioria em torno dos projetos, mas corre o risco de desperdiçar capital político previsto para reformas que lhe exigirão mais esforços, como a tributária e a da Previdência.

Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).


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