29/03/2024 - Edição 540

Poder

Retirar ensino superior do MEC pode provocar quebra no atual sistema educacional

Publicado em 02/11/2018 12:00 -

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A anunciada retirada do ensino superior do MEC (Ministério da Educação), levando-o para a pasta de Ciência e Tecnologia na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PSL), representaria uma quebra no sistema educacional. Isso, na prática, pode dificultar em um primeiro momento a articulação com a educação básica e ações como a reformulação dos cursos de formação de professores.

O plano foi confirmado pela equipe de Bolsonaro. O objetivo seria abrir espaço para a atuação do MEC na educação básica, uma vez que o ensino superior, sobretudo a gestão das instituições federais, requer muita energia da pasta.

Não há detalhes ainda sobre o que de fato será transferido e o que continuará sob a alçada do MEC. Há indicação, no entanto, de que as pastas da Cultura e Esporte serão anexadas à Educação.

Essa mudança esvaziaria o orçamento da pasta. O ensino superior (incluindo instituições federais, hospitais universitários, ProUni e Fies) representou 64% do gasto primário em educação em 2017, segundo relatório do Tesouro Nacional. Bolsonaro e sua equipe já indicaram que não pretendem ampliar o orçamento da educação.

A ideia da transferência do ensino superior para a Ciência e Tecnologia não é nova. Essa proposta tem sido foi aventada  desde o governo Itamar Franco (1992-1994) e também apareceu nos governos seguintes, explica a educadora Maria Helena Guimarães de Castro.

Projeto de lei do senador Cristovam Buarque (PPS), de 2009, já prevê o mesmo, mas não avançou. Na curta passagem pelo MEC, no início do primeiro governo Lula, Cristovam defendia que o MEC aumentasse sua atuação na educação básica.

Para Castro, a estrutura do MEC é, de fato, "muito pesada e fragmentada". Mas a simples transferência do ensino superior para outro ministério traria dificuldades, por exemplo, na regulação do ensino superior privado e na articulação de políticas como a de formação de professores. Castro foi secretária-executiva do MEC no governo Michel Temer, presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) no governo Fernando Henrique Cardoso e secretária estadual de Educação de São Paulo.

Também há dúvidas sobre impactos com relação às instituições federais de ensino caso a transferência não venha acompanhada de outra alteração: a autonomia financeira das federais.

"Ao passar as universidades do MEC [que são as federais] para a Ciência e Tecnologia continuaria sem resolver a questão da autonomia financeira, que é um tema importante. As instituições precisam definir uma série de coisas que dependem de uma autonomia", diz. Castro cita a experiência das universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp), que desde 1989 gerenciam seus orçamentos a partir de fatia fixa do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

Cabe ao MEC, hoje, responsabilidades que vão da educação infantil à pós-graduação. Isso confere, segundo especialistas, uma atuação sistêmica sobre a área. Essas competências são previstas na Lei 13.502, aprovada em 2017 pelo governo Michel Temer –que atualizou lei anterior, de 2003.

Um exemplo dessa atuação sistêmica, que pode ser dificultada com a mudança: a esperada reformulação dos cursos de formação de professores, por exemplo, depende da articulação entre as instituições de ensino superior e as políticas de educação básica, como a Base Nacional Comum Curricular (que prevê o que os alunos devem aprender).

A maior parte dos professores que atuam na educação básica se forma em instituições privadas de ensino superior. "Todo programa de formação está e precisa estar articulado com diversos órgãos do Ministério da Educação, em conversa com estados e municípios, onde estão os professores", diz Castro.

Há dúvidas também sobre o posicionamento de órgãos ligados ao MEC.

O FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) atua tanto na educação básica quanto na educação superior. Esse é responsável por transferências de recursos para escolas e redes como para o Fies (Financiamento Estudantil). A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) também tem atuação na educação básica.

As escolas de educação básica estão sob responsabilidade de municípios e estados. O MEC tem a função de induzir políticas educacionais, como, por exemplo, currículo de alunos e de formação de professores, distribuição de recursos.

Com exceção das universidades, a grande maioria das instituições de ensino superior não faz pesquisa, mas se dedicam ao ensino. Assim, especialistas também não veem sentido em vincular a etapa ao Ministério da Ciência e Tecnologia. 

Há ainda o caso dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. As unidades, espalhadas pelo Brasil, oferecem pesquisa, ensino superior e ensino médio. No ensino médio, as médias dos institutos no Enem, por exemplo, são mais altas que a média das escolas privadas.

A avaliação e regulação do ensino superior privado, por exemplo, também se articulam hoje entre diferentes secretarias do MEC, o Inep e a Capes (que avalia os programas de pós-graduação). "Tirar o ensino superior privado do MEC não me parece adequado".​

O Forum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular soltou comunicado para afirmar que espera a confirmação oficial para se posicionar. 

Após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), Temer chegou a acabar com o Ministério da Cultura, mas diante de pressões do setor cultural, voltou atrás.

Especialistas temem piora na gestão

As mudanças na estrutura do MEC em estudo pela equipe de Bolsonaro, podem piorar a gestão das políticas públicas educacionais, avaliam especialistas. Entre os prejuízos esperados, estão o desequilíbrio na divisão de recursos entre ensino básico e superior e a perda de foco da pasta, sem que isso traga a contrapartida de melhorar a eficiência e reduzir os custos.

"O MEC é um ministério com muitas especificidades, com orçamento e folha de pagamento enormes. Com as medidas em estudo, você vai criar uma estrutura com pouca identidade e não necessariamente resolver alguns problemas, como os cargos comissionados", afirma Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do tema.

Este modelo ainda traria complicações por causa da complexidade de atuação das universidades e dos papéis desempenhados pelas autarquias e fundos de recursos ligados aos MEC. Cássio cita alguns exemplos: "As universidades não fazem só pesquisa, fazem extensão, ensino e também formam professores; a educação é avaliada pelo Inep, que é uma autarquia do MEC; uma série de programas, da educação básica ao ensino superior, são induzidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), outra uma autarquia do MEC; o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) também atua como fonte de financiamento para as duas etapas do ensino e está dentro do MEC", afirma.

Uma das ideias debatidas pela equipe de Bolsonaro foi a de migrar para a Ciência e Tecnologia apenas as universidades com programas de pesquisa e pós-graduação, funções desempenhadas predominantemente pelas instituições públicas.

Pela formatação atual do ensino brasileiro, os Estados e municípios são responsáveis pela educação básica. Cabe à União e, portanto, o MEC, apenas a indução de políticas públicas, além da redistribuição de recursos. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), por exemplo, repassa recursos federais aos municípios que não conseguem o mínimo para investir em educação. 

Para Priscila Cruz, fundadora e presidente do movimento "Todos Pela Educação", a migração do ensino superior para outra pasta não é, em essência, ruim. Mas a questão é como ficará a divisão de recursos entre os ciclos de ensino, uma vez que a União deve destinar uma mesma verba (18% da arrecadação de impostos) para todas as etapas da educação.

"O problema é como fazer isso. Se você tem uma quebra de ministérios, é mais difícil fazer a calibragem do dinheiro. Será preciso pensar em mecanismos para isso", afirma Priscila.

Nesta cisão ministerial, ela diz que o risco é, novamente, deixar a educação básica de lado e priorizar só o ensino superior. "A pauta do MEC é completamente tomada pelo ensino superior e a educação básica acaba, governo após governo, ficando alijada", diz.

Já Elizabeth Guedes, vice-presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), diz que a educação básica deve ser prioridade do próximo governo e descarta risco de desequilíbrio no custeio do ensino básico. Elizabeth é irmã de Paulo Guedes, futuro ministro da Economia no governo de Bolsonaro. 

Elizabeth destaca que os recursos da educação básica vêm do FNDE. Já o dinheiro destinado ao ensino superior é proveniente do orçamento da União, cuja quantia já está definida para 2019. "Só haverá mudança de órgão executor que sai do MEC e passaria para a Ciência e Tecnologia", disse Elizabeth. Do orçamento para educação de R$ 117,2 bilhões em 2017, R$ 75,4 bilhões foram para o ensino superior e R$ 34,6 bilhões para a educação básica, segundo dados do Tesouro Nacional.

A vice-presidente da Anup pontua ainda que as secretarias de educação básica e ensino superior são totalmente separadas e não existe nenhum tipo de integração. Em sua visão, órgãos como FNDE e Inep, ligados exclusivamente ao MEC, poderiam atender as duas pastas.  Elizabeth vê como positiva a possibilidade de o ensino superior ficar mais próxima da Capes caso haja mesmo uma transferência para a Ciência e Tecnologia.  

Para Cássio, da UFABC, a origem dessas movimentações está no programa de governo de Bolsonaro, que sugere uma oposição entre os gastos na educação básica e ensino superior. "Nas entrelinhas, o plano quer dizer que o gasto com ensino superior é muito elevado e o com educação básica, muito baixo, mas essa é uma suposição falsa", diz.

Em sua avaliação, o gasto com educação básica precisa, sim, ser elevado, mas não em detrimento da redução no custeio do ensino superior. "Não devemos comparar os dois gastos como se fossem concorrentes entre si. Na verdade, o gasto com educação básica é que está muito aquém do desejado, mas a estratégia desse governo parece querer legitimar uma depressão orçamentária no ensino superior", afirma.


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