18/04/2024 - Edição 540

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Declarações de Paulo Guedes sobre Mercosul surpreendem membros do bloco e assustam CNI

Publicado em 02/11/2018 12:00 -

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As declarações do futuro ministro da área econômica do governo do presidente eleito Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, geraram surpresa e desconcerto nos membros do Mercosul.

Guedes disse que a Argentina e o Mercosul "não são prioridade" para o futura gestão do Brasil. O economista afirmou ainda que o Mercosul é "muito restritivo, que o Brasil ficou prisioneiro de alianças ideológicas e isso é ruim para a economia". Ele também disse que o bloco, formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, só negociava com quem tinha "inclinações bolivarianas", mas que isto não ocorreria mais a partir da presidência de Bolsonaro.

Quando a correspondente do jornal argentino Clarín, Eleonora Gosman, perguntou se o Mercosul seria então "desmontado", Guedes respondeu: "Sua pergunta está mal feita. A pergunta é se vamos comercializar somente com a Argentina? Não. Somente com Venezuela, Bolívia e Argentina? Não. Vamos negociar com o mundo".

"O Mercosul não é prioridade. Não, não é prioridade. Tá certo? É isso que você quer ouvir? Queria ouvir isso? Você tá vendo que tem um estilo que combina com o do presidente, né? Porque a gente fala a verdade, a gente não tá preocupado em te agradar", acrescentou.

As afirmações tiveram forte impacto principalmente na Argentina, segundo maior país do Mercosul depois do Brasil, de acordo analistas e diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil.

O diretor do mestrado de relações comerciais internacionais da Universidade Tres de Febrero (Untref), Félix Peña, disse que o assunto é "tão sério" que preferia opinar somente se o futuro presidente ou o futuro ministro das Relações Exteriores do Brasil falarem sobre o tema.

"Que um dos países do bloco diga que não dará prioridade ao Mercosul é algo tão sério que deve ser dito pelo máximo escalão do país e das Relações Exteriores", disse Peña.

Ele afirmou ainda que o Brasil está formalmente e legalmente comprometido com o Mercosul, pelos acordos assinados.

Preocupação e surpresa

O ex-embaixador da Argentina no Brasil Juan Pablo Lohlé disse que as palavras de Guedes geraram "preocupação e surpresa". Mas que as declarações do futuro ministro de Bolsonaro serviram, na sua visão, "de alerta" para a Argentina.

O país presidido por Mauricio Macri, afirmou o ex-embaixador no Brasil, não deveria continuar dependente do mercado brasileiro como é atualmente. O Brasil é um dos principais destinos das exportações da Argentina, do Uruguai e do Paraguai.

"A Argentina não tem plano B. A Argentina acha que, se o Brasil vai bem, ela vai bem também. É preciso resolver isso. Colocar mais energia nisso, procurar novos mercados nos próprios Estados brasileiros e em outros países", disse Lohlé.

Para ele, a Argentina precisa resolver seus problemas domésticos, como a inflação, para tentar decolar e não continuar vivendo em função também do comportamento da economia brasileira.

Ele também acha que não é simples o Brasil sair do Mercosul, pelos compromissos que assinou desde a fundação do bloco, em 1991. Ele interpreta que a intenção de Guedes poderia ser "flexibilizar" o esquema tarifário em vigor hoje no bloco.

As declarações de que a Argentina e o Mercosul não são prioridade estiveram entre as principais noticias da Argentina, do Uruguai e do Paraguai. "O Mercosul não será prioridade para governo Bolsonaro", publicou o La Nación, de Buenos Aires. "Será que Bolsonaro ratificará o que disse Guedes?", perguntou um comunicador da rádio Ciudad, da capital argentina.

Entrevistado pela rádio La Red, de Buenos Aires, o embaixador argentino no Brasil, Carlos Magariños, disse que "não imagino o fim do Mercosul com a chegada de Bolsonaro, mas sabemos que algumas coisas serão avaliadas.".

No Uruguai, a rádio Oriental, de Montevidéu, entrevistou especialistas no país que analisaram a afirmação do futuro ministro, chamado por Bolsonaro de "posto Ipiranga" – ou seja, alguém a quem recorreria com frequência. "Sempre juntos. Em busca da ordem e do progresso", escreveu Bolsonaro no Twitter durante a campanha eleitoral, com uma foto ao lado de Guedes.

Esperar para ver

"Quando ele (Guedes) diz que o Brasil sairá ao mundo, então acabou esta relação econômica que temos (atualmente) de negociar em conjunto. E deveremos analisar como vamos administrar isso, porque temos muitos temas juntos com a infraestrutura conjunta planejada (para o bloco)", disse o ex-embaixador uruguaio Sergio Abreu à rádio uruguaia.

Numa entrevista coletiva nesta segunda-feira na Presidência do Uruguai, quando perguntado sobre as afirmações do futuro ministro brasileiro, o presidente Tabaré Vázquez respondeu: "A experiência me ensinou que é oportuno esperar e ver que atitude terá o novo governo em relação ao Mercosul. Não arrisco fazer futurismo com esse assunto porque é muito importante para todos os países que integramos o Mercosul."

O próprio Tabaré já tinha sugerido, em seu governo anterior (2005-2010), que o bloco fosse "flexibilizado" para que fossem permitidos acordos comerciais bilaterais. E voltou a falar no assunto em outras ocasiões.

Na primeira vez em que falou em "flexibilização", foi criticado por outros membros. Recentemente, a palavra "flexibilização" do Mercosul teria feito parte de conversas entre os presidentes Tabaré e Mauricio Macri, da Argentina, segundo a imprensa uruguaia. "Por isso, acho que a fala de Guedes não causou surpresas aqui no Uruguai. Já se esperava", disse um editor do El País, de Montevidéu.

No Paraguai, a reação foi menos evidente, sem declarações públicas das autoridades locais. Procurada, a assessoria de imprensa da Presidência não respondeu aos contatos feitos pela BBC News Brasil.

Negociadores brasileiros que falaram sob a condição do anonimato disseram que é preciso esperar para ver o que dirá "o chefe do Guedes", pois Bolsonaro já amenizou declarações feitas pelo economista anteriormente, por exemplo na questão do que poderá ser privatizado no próximo governo.

O ex-embaixador brasileiro José Alfredo Graça Lima, do Centro Brasileiro de Relaçōes Internacionais (Cebri), acha que pode ter ocorrido uma confusão quando Guedes citou a Bolívia e Venezuela ao falar sobre o Mercosul.

Os dois países não integram o bloco, mas sim a Unasul (União de Nações Sul-Americanas). Mas Graça Lima concordou com o que o futuro ministro disse sobre a "ideologia" na política externa, o que na sua visão ocorreu durante um período do governo Lula.

"Acho que aquela ideologia não deu resultados para o Brasil. Mas devemos reconhecer que o Mercosul é principalmente um sucesso político, porém um fracasso comercial", afirmou ele, que foi negociador do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC).

O "sucesso político" é referência ao histórico do bloco que surgiu a partir de um acordo inicial entre os governos de José Sarney e do argentino Raúl Alfonsín (1927-2009), ainda nos anos 1980, quando os dois países desconfiavam um do outro principalmente por seus projetos na área nuclear e quando acabavam de sair de ditaduras militares.

Segundo historiadores, o entendimento entre os dois governos acabou virando a semente para a criação do Mercosul.

Na opinião de Graça Lima, porém, o Mercosul "virou uma camisa de força" na área comercial, e ele acredita que o sistema de tarifas comuns deveria ser flexibilizado.

"Se for feita uma reforma tarifária, o Brasil não precisará sair do bloco. Mas hoje a união aduaneira deixa o bloco engessado", afirmou. Para ele, hoje, o bloco tem efeitos limitados para a área comercial e que prejudicam o Brasil.

CNI pede prioridade ao Mercosul

A Confederação Nacional da Indústria ( CNI ) divulgou uma nota destacando a importância do Mercosul para o comércio brasileiro e pedindo a continuidade da agenda de negociações em curso. A entidade alertou que, se o governo não der a devida atenção ao bloco, quem sairá ganhando são os exportadores chineses.

"Se o governo brasileiro não der prioridade ao Mercosul, ou ainda pior, se se reduzir a Tarifa Externa Comum (formada por alíquotas praticadas pelo Mercosul com mercados que não fazem parte do bloco) de forma unilateral, o único ganhador é a China, que já vem tomando o mercado brasileiro em toda a América do Sul. Pequenas e médias empresas, que exportam mais para esses países, serão as mais afetadas", advertiu a CNI.

Na avaliação da entidade, o Mercosul é um complemento do mercado doméstico brasileiro e é o destino de exportação no qual a indústria tem maior participação. Por isso, o Brasil precisa fortalecer sua posição nos mercados do Mercosul.

"A Argentina e o Uruguai, por exemplo, são grandes parceiros do Brasil. A Argentina, em particular, é um dos mercados mais importantes para as exportações e os investimentos brasileiros no exterior, em especial para as pequenas e médias empresas. É para onde o Brasil exporta produtos de alto valor agregado e onde possui diversas multinacionais. Além disso, o setor automotivo brasileiro é integrado em cadeia de valor com o setor automotivo argentino".

Ainda em uma demonstração de que está preocupada com o futuro do Mercosul, a CNI chegou a citar o artigo 4º da Constituição, que estabelece os princípios de atuação do Brasil nas relações internacionais e determina a integração econômica com países da América Latina como um desses princípios.

No comunicado, a CNI lembra que o Mercosul ficou uma década sem avançar na agenda econômica. Somente em 2017 as negociações foram retomadas concretamente, com a introdução de dois novos acordos: compras públicas e de cooperação e facilitação de investimentos.

"Ainda existem barreiras a serem eliminadas no Mercosul – técnicas, sanitárias e fitossanitárias, regulatórias e no setor de serviços – e o momento, agora, é de avançar na agenda econômica do bloco".

Na nota, a entidade não menciona a declaração de Paulo Guedes. Também não cita a proposta, ventilada há várias semanas por Bolsonaro e auxiliares, de que é preciso "retirar as amarras" do Mercosul, em uma sinalização de que os países poderão ser liberados a negociarem em separado, acordos de livre comércio com outros países.


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