25/04/2024 - Edição 540

Poder

Estratégia de Bolsonaro põe Estado laico em risco

Publicado em 02/11/2018 12:00 -

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Logo após o TSE anunciar a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) como novo presidente do Brasil, o político foi para a frente de sua casa, onde um repórter representando um pool de emissoras da TV aberta e também de canais pagos mostraria a primeira declaração oficial do 38º presidente do país. Porém, antes de falar, o capitão reformado participou de uma roda de oração, puxada pelo senador Magno Malta.

Tudo foi transmitido ao vivo em rede nacional de televisão. “Os tentáculos da esquerda jamais seriam arrancados sem as mãos de Deus”, enfatizou Malta durante sua prece. Também citou o texto bíblico de João 8:32 – “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” – adotado como slogan de campanha por Bolsonaro.

A estratégia de candidatos que dialogam com o eleitorado religioso como o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) assumiu textura mais escorregadiça, o que torna a defesa do Estado laico um desafio crescente. É a constatação de Christina Vital, doutora em ciências sociais e docente na Universidade Federal Fluminense, segundo quem a agenda política nunca esteve tão permeada por valores religiosos. “Desde 2010, a gente só viu aumentarem os riscos à laicidade”, afirmou.

A estratégia adotada por candidatos, especialmente para o Executivo, que precisam dialogar com público expandido, é o que Vital chama de revelação e ocultação da confessionalização da política. 

Consiste em ativar a agenda religiosa para os grupos em que ela é um capital eleitoral e amainá-la ao tratar com grupos de interesse. Nestes casos, pautas setorizadas são abordadas, em especial a da segurança pública.

Bolsonaro evidencia o jogo. Ele chegou a arriscar a estratégia puramente confessional inicialmente.

Banhou-se no rio Jordão com a bênção do Pastor Everaldo (PSC), em 2016, um gesto explícito ao eleitorado evangélico. 

Não se converteu, contudo, nem religiosa nem politicamente. Define-se católico, mas sensível ao eleitorado que representa 30% do Brasil. É o que Vital chama de ADE, amigo de evangélicos. Ajuda-o o casamento com uma fiel da Igreja Batista.

Sem a identidade evangélica fincada, manteve prestígio entre o público avesso ao fervor de uma fé em particular. E para isso, como é notório, usa do passado militar para alavancar sua associação com a pauta da segurança. 

O próprio Pastor Everaldo provou do fracasso que a estratégia puramente confessional até hoje resultou no Brasil. Sua candidatura à Presidência em 2014 não recebeu 1% dos votos. “A anunciação religiosa traz muitos limites. Com a revelação e ocultação, é possível atingir um eleitorado mais amplo”, resumiu Vital.

Nesse cenário, as noções de laicidade estão sob ameaça, entende a pesquisadora. “Essa confessionalização implícita esvaziou o argumento do ativismo pela laicidade do Estado. São candidatos que se apresentam como outros quaisquer, mas que também têm uma religião.”

Vital vê a laicidade perdendo espaço no Brasil, seja na concepção francesa, seja na americana. Na primeira, o espaço estatal não deve acolher qualquer símbolo religioso. 

Na segunda, a religião pode ser representada na esfera pública, porque a liberdade de crença e de expressão estão garantidas. No entanto, a divisória é clara: a religião não norteia a política.

“No Brasil, a agenda religiosa afeta políticas públicas universais, em torno de argumentos inscritos em uma fé”, disse Vital. A Igreja Católica, por exemplo, fez lobby contra um material do Ministério da Saúde para reduzir a Aids, e correntes evangélicas militaram contra o programa Escola sem Homofobia, o kit gay.

Em outra frente, grupo de pesquisa da UFF acompanha o fortalecimento de associações de magistrados religiosos, os católicos, os evangélicos e os espíritas. Eles ocupam postos destacados no Judiciário e no Ministério Público, segundo os docentes.

No livro “Religião e Política”, de Vital, Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui, Pastor Everaldo já revelava que o objetivo era “assumir a cabeça”, em referência à Presidência da República, para nomear ministros do Supremo Tribunal Federal pertencentes ao segmento.

O agora ex-juiz Wilson Witzel (PSC), que venceu a disputa pelo governo do Rio, explicitou uma combinação que resultou no sucesso da estratégia da revelação e ocultação da confessionalização da política em 2018.

Segundo Christina Vital, é ao associar a amizade com o eleitorado evangélico a uma identidade laboral que candidatos obtiveram respostas positivas das urnas.

Witzel, por exemplo, colocou a magistratura como cartão de visitas, em momento em que o Judiciário, associado à Lava Jato, goza de credibilidade entre parte expressiva da população. No Legislativo, multiplicaram-se os candidatos juízes, policiais, professores, policiais, notou Vital. 

Não à toa, o presidenciável derrotado Fernando Haddad (PT), no segundo turno, reforçou sua apresentação como professor e passou a mencionar Deus e religião.

Universal usou sua máquina para exaltar Bolsonaro e atacar Haddad

“Tenho certeza que um certo candidato deve estar amargamente arrependido agora de ter ofendido milhões de evangélicos”, diz o bispo Renato Cardoso, apontado como um dos potenciais herdeiros do sogro Edir Macedo, 73, na liderança da Igreja Universal do Reino de Deus.

Marido de Cristiane, a primogênita de Macedo, ele estava no ar na Rede Aleluia, com rádios da Universal. Não especifica quem seria o “certo candidato”.

A oito dias do primeiro turno, o dono da igreja revelou sua predileção de forma simples e direta: um seguidor no Facebook cobrou “seu posicionamento” nesta eleição, e o bispo respondeu apenas “Bolsonaro”.

O PT —que Macedo satanizou em 1989 (foi de Collor) e ao qual se aliou em 2002 (com Lula) e 2010 (Dilma)— tomou isso como uma declaração de guerra.

No feriado de Nossa Senhora Aparecida (inexpressivo para evangélicos, que não veneram santos), o petista Fernando Haddad foi a uma missa e, na saída, disse que Jair Bolsonaro era “o casamento do neoliberalismo desalmado” e o “fundamentalismo charlatão” de Macedo. Mais: “Sabe o que está por trás dessa aliança? Chama em latim ‘auri sacra fames’. Fome de dinheiro”.

Macedo afirmou que o petista “zombou” dele com “atos difamatórios” e entrou com dois processos, criminal e civil. Num deles pede indenização de R$ 77 mil (promete doá-la para caridade).

A máquina da Universal entrou com tudo na campanha contra Haddad. No mesmo dia, a denominação divulgou em seu site uma nota de repúdio questionando por que, quando Macedo ficou ao lado do PT, “o apoio era muito bem-vindo”. Agora que seu candidato é outro, “o bispo deve ser ofendido de forma leviana?”.

O texto questiona o contexto escolhido para “incitar uma guerra religiosa” ao fustigar “uma das maiores lideranças evangélicas do país”, isso num “local sagrado a católicos, em pleno feriado católico”.

E que moral teria o PT? “Fome de dinheiro tem o partido que assalta os cofres públicos para sustentar uma estrutura que a Justiça definiu como ‘organização criminosa’”.

A assessoria de Haddad afirmou que ele está “convicto de que suas afirmações são verdadeiras e que os fatos e a história dos personagens envolvidos assim comprovam”.

Macedo passou 11 dias de 1992 na prisão, sob acusações de curandeirismo, charlatanismo e estelionato. À época, capitalizou em cima do episódio: convocou a imprensa e se deixou fotografar atrás das grades, de pernas cruzadas e mão no queixo estilo “O Pensador”. Trazia a Bíblia na mão. 

Na autobiografia “Nada a Perder”, ele se disse perseguido pelo “clero romano”, que teria sob influência de “políticos de prestígio” a “autoridades do Poder Judiciário”.

Na nota em que ataca Haddad, a Universal diz ter “mais de sete milhões de adeptos”. O Censo 2010 registrou 1,9 milhão, 227 mil a menos do que na sondagem de 2000.

Sejam quantos forem, a Record, sem ligação oficial com a Universal mas parte do conglomerado de Macedo, ajuda e muito a amplificar a mensagem anti-PT.

No primeiro turno, um Bolsonaro ainda se recuperando atentando a faca alegou motivos médicos para faltar ao último debate. Enquanto presidenciáveis discutiam, a emissora o entrevistou por 26 minutos.

Um papo dócil, acompanhado por Douglas Tavolaro, braço direito de Macedo e coautor de sua biografia.

Foi para a emissora que Bolsonaro deu a primeira entrevista exclusiva após ser eleito. “Eu que agradeço o jornalismo isento da Record”, disse já no começo.

Antes da eleição, jornalistas a serviço da emissora se diziam desconfortáveis com o tratamento acrítico ao candidato do PSL. Internamente, por exemplo, a chefia vetou uma reportagem sobre um mestre de capoeira simpático ao PT e assassinado por um homem supostamente bolsonarista.

Apresentado pelo bispo Renato no UniverVídeo, espécie de Netflix da Universal, o programa Entrelinhas não citou presidenciável x ou y, mas elencou prioridades da igreja na política. Numa rodada com bispos da casa, discutiram-se os “mais de 1.500 projetos de lei que não se enquadram nos valores e princípios cristãos”. 

No debate, temas como união poliafetiva (“três homens e uma mulher, pasmem, isso é realidade”) e o episódio da novela global “Malhação” em que uma aluna indaga por que uma mulher não pode amar outra (“inacreditável, mas passou numa rede de TV”).

No domingo de eleição, Macedo liderou um culto no Templo de Salomão —motivo, aliás, de impasse entre a Universal e a gestão do então prefeito Haddad, que chegou a cogitar demolir o espaço por pendências urbanísticas.

Ali o bispo criticou a “mendicância” de quem depende não só de pastores e padres, mas de Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida, duas vitrines petistas. 

O mestre em filosofia pela USP André Assi Barreto, um conservador antes entrevistado pela Rede Aleluia, diz que “o atual descrédito das classes letradas (artistas, intelectuais, jornalistas etc.) com as massas fez com que o grosso da população, evangélica ou não, não desse crédito para acusações estabanadas” de Bolsonaro, como definiu algumas de suas falas tidas como homofóbicas e racistas. 

Pelo endosso político, a Universal virou alvo: um templo no Chile foi pichado com os dizeres “Hitler = Bolsonaro”.

No programa “Inteligência e Fé”, da Rede Aleluia, o genro de Edir Macedo pediu que fiéis entendam a força política do segmento evangélico.

“Você, cristão, assuma a sua importância na sociedade. O candidato vencedor [Bolsonaro] venceu por cerca de 10 milhões de votos. É indiscutível que o voto evangélico fez a diferença.” O capitão reformado teve apoio de 70% (22 milhões de votos) do segmento, segundo projeção do Datafolha.

Disse o bispo Renato: “A oposição já fala em resistência. O presidente nem começou a governar. Olha, está escrito [na Bíblia]: não devemos resistir à autoridade, pois quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus”.


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