19/04/2024 - Edição 540

Poder

Para Bolsonaro, políticas afirmativas para negros e índios reforçam coitadismo

Publicado em 26/10/2018 12:00 -

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Jair Bolsonaro chamou de ''coitadismo'' as políticas de cotas em entrevista à TV Cidade Verde, do Piauí, na terça (23). Na sua opinião, ações afirmativas – instituídas para compensar desigualdades estruturais de determinados grupos sociais – reafirmam o preconceito e dividem a sociedade. Disse que a maioria dos negros que entram na universidade estão ''bem de vida'', portanto, a política estaria equivocada.

“Isso não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso.”

Não é a primeira vez que ele critica as cotas. Em julho, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, por exemplo, afirmou que elas dividem o Brasil entre brancos e negros. Na ocasião, questionado sobre a forma que pretendia reparar a dívida histórica da escravidão, respondeu: “Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida”.

Não sou contra que competência e experiência individuais sejam parâmetros de avaliação. Uma coisa é o mérito em si. Outra, um sistema de poder que utiliza um discurso deturpado sobre o mérito para manter a desigualdade social como o elemento que nos define como nação. Pois as pessoas não têm acesso aos mesmos subsídios e direitos para começarem suas caminhadas individuais e, portanto, partem de lugares diferentes. Uns tendo tudo desde sempre, comida e livros. Outros tendo que escolher entre comprar comida ou um livro. E outros levando enquadro da polícia, que acha que eles roubaram o livro de alguém simplesmente por serem negros, após terem feito a escolha de comprá-lo ao invés da comida.

Os três podem chegar ao ''topo''. Mas se o primeiro caso alcança o cume mais vezes, o segundo é um em cada 100 mil e o terceiro um em cada milhão. Por isso, ''histórias de superação'' são contadas e recontadas à exaustão: porque são úteis para convencer os outros que se um consegue, todos podem. Dependeria apenas de cada um e de sua força de vontade e dedicação. Ao assumirmos essa mentira como verdade, jogamos a responsabilidade de crimes históricos como a escravidão nos descendentes daqueles que, uma vez libertos, não foram inseridos na sociedade. Nem tiveram acesso a direitos para que pudessem ser donos de suas próprias vidas.

Há muita gente contrária a encontrar formas de equalizar as condições historicamente desproporcionais. Acreditam que a única maneira de garantir Justiça é tratar desiguais como iguais e aguardar que as forças do universo façam o resto.

E esse discurso é tão bem ensinado que, não raro, encontra-se apoiado por pessoas que, apesar de largarem em desvantagem, conseguiram ''chegar lá''. E ouvimos coisas como: ''Tive uma infância muito pobre e venci mesmo assim. Se eu consegui, todos conseguem''. Parabéns. Mas ao invés de pensar que todos têm que comer o pão que o diabo amassou como você, não seria melhor pensar que um mundo melhor seria aquele em que isso não fosse preciso?

Como não é possível acabar com o direito a qualquer herança (o que, hipoteticamente levaria cada geração a começar do zero, mas destruiria/transformaria a sociedade como a conhecemos), o jeito é continuar apoiando medidas compensatórias e que tratam diferentes de forma diferente.

E seguir demonstrando muito amor e paciência com quem acha que ''quem não vence por conta própria é vagabundo''.

Há quem não se indigna diante do fato da mulher negra ganhar, em média, muito menos que o homem branco para uma mesma função. Indigna-se com quem diz que racismo existe.

Não fica revoltado diante da morte de jovens pobres e negros. Revolta-se com a filha negra da empregada se sentar no mesmo banco de faculdade que eles.

Não acha preconceito dar porrada no sujeito que foi acusado de roubar o próprio carro no estacionamento de um supermercado por ser negro. Para ele, preconceito são cotas.

Seria cômico se não fosse trágico o perigo representado por um grupo branco (com direitos assegurados) que se manifesta de forma organizada – e, por vezes, violenta – diante da luta de outros grupos por sua dignidade, historicamente negada.

Lembrando que ''maioria'' e ''minoria'' não são uma questão numérica, mas dizem respeito ao nível de efetivação da cidadania: o grupo hegemônico reivindica a manutenção de privilégios, garantindo, dessa forma, o espaço que já é seu – conquistado, muitas vezes, por violência, a ferro e fogo.

Ir contra a programação que tivemos a vida inteira, através da família, de amigos, da escola, da mídia, de algumas igrejas (em que pastores pregam que ''africanos são amaldiçoados por Deus'') e de lideranças políticas é um processo longo pelo qual todos nós temos que passar. Mas necessário.

Todos nós, nascidos neste caldo social de sociedades de herança escravista, como os Estados Unido e o Brasil, somos preconceituosos a menos que tenhamos sido devidamente educados para o contrário. Pois os que ofendem uma pessoa negra ou gay no transporte público, só fazem isso por estarem à vontade com o anonimato e se sentirem respaldados por parte da sociedade.

Toda a vez que alguém trata da questão da desigualdade social e do preconceito que negros e negras sofrem no Brasil (herança cotidianamente reafirmada de um 13 de maio de 1888 que não permitiu criar bases para a autonomia real dos trabalhadores africanos e seus descendentes), é linchado em redes sociais.

Pois, como todos sabemos, não há tratamento diferenciado para quem é negro, gay, nordestino no Brasil. ''Isso é coisa de negro recalcado.'' Ou exploração sexual de crianças e adolescentes. ''As meninas é que pedem e depois a culpa é dos homens?'' O machismo? Uma mentira ''criada por feminazis para roubar nossos direitos''. E a homofobia, uma invenção ''daquela bicha do Jean Wyllys''. Não há assassinatos relacionados a questões étnicas. ''Eles é que estão no lugar errado e na hora errada, pois os 'homens de bem' seguem a lei e nada acontece com eles.''

Bolsonaro ignora tudo isso ao chamar a luta por igualdade de direitos de ''coitadismo''.

Ah, coitados dos homens brancos e héteros que choram, sentindo-se injustiçados, sob o espólio tirado dos derrotados…


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