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Artigo da Semana

Manipulação do eleitor por grupos de WhatsApp deixará feridas na democracia

Publicado em 18/10/2018 12:00 -

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O Tribunal Superior Eleitoral prometeu, ao longo deste ano, que agiria de forma contundente para prevenir que as eleições brasileiras fossem influenciadas pela circulação de notícias falsas. Organizou eventos, trouxe especialistas, deu centenas de entrevistas, bateu no peito e garantiu que não haveria anormalidade. Disse até que as eleições poderiam ser canceladas se o vencedor usasse desse tipo de artifício.

Depois, quando o debate público passou a ser manipulado à luz do dia, com fraudes e distorções produzidas de forma amadora, ou através de cálculos sofisticados que usam coleta de dados e inteligência artificial para produzem mensagens personalizadas que podem estimular o desejo dos indivíduos, veio o silêncio. O TSE não tem sido capaz de defender o processo eleitoral e nem a si mesmo, sofrendo sucessivos e inaceitáveis ataques de Jair Bolsonaro e amigos, que acusam a urna eletrônica e os resultados eleitorais sem provas concretas.

Na quarta (17), o tribunal chamou uma reunião com representantes dos candidatos à Presidência da República para pedir compromisso contra as notícias falsas, a violência na campanha e em defesa das urnas. Esse tipo de encontro, em que todos concordam com tudo, tende a ser ineficiente. Melhor faria que os ministros apontassem publicamente os problemas de cada candidato e, atendendo ações, punissem com rigor. O que seria útil, inclusive, para mostrar à população a bobagem da falsa simetria – nestas eleições, nem todo mundo bate e apanha igual.

Pode ser que os ministros do TSE ou do Supremo Tribunal Federal não tenham dimensão real do que está acontecendo. Ou, tendo percebido que o monstro é maior do que eles, queiram permanecer quietos, sem a coragem necessária para enfrentá-lo. Ministros que, em condições normais, comentam até jogo de futebol da quarta divisão e penteado de Playmobil.

Em artigo publicado no jornal New York Times, de quarta (17), Cristina Tardáguila, da Agência Lupa, Fabrício Benevenuto, da UFMG, e Pablo Ortellado, da USP, trouxeram dados de um estudo realizado pelas três instituições sobre o impacto da desinformação compartilhada pelo WhatsApp nas eleições presidenciais. Com base na análise de 846.905 mensagens de 347 grupos de discussão política, verificou-se que das 50 imagens diferentes que circularam, entre 16 de agosto e 7 de outubro, apenas quatro eram verdadeiras ou não haviam sido manipuladas. Quatro.

Para reduzir o impacto de conteúdo com objetivo de manipular o debate público, eles sugerem que o WhatsApp reduza, no período eleitoral, a quantidade de vezes que uma mensagem pode ser replicada e também limitar o tamanho de grupos montados durante a eleição. Se o TSE tivesse gastado energia para além de discutir o que são notícias falsas, poderia ter ampliado o debate e obtido compromissos mais eficazes de vários setores da sociedade. Inclusive o de investigação policial célere e de protocolos para resposta mais rápida da Justiça Eleitoral em casos de campanhas de difamação on-line. Afinal, em menos de um dia um estrago já pode ter sido feito.

A somatória de todas as checagens de boatos feitas por agências especializadas e veículos de comunicação não conseguiu acompanhar o ritmo de notícias falsas, fraudes e distorções distribuídas por aplicativos de mensagens e rede sociais. E mesmo se conseguisse, não chegaria ao público como os boatos chegaram. Os smartphones de uma parcela considerável da população contam com planos em que apenas o acesso ao Facebook ou ao WhatsApp é ilimitado, devido a parcerias. Ou seja, quando o eleitor recebe uma notícia que desconfia ser falsa, não consegue clicar e ler o texto, muito menos procurar no Google uma checagem dessa informação, porque acabou seu plano de dados e está longe de um Wi-Fi.

No final, o WhatsApp foi o que avisamos que seria: não um aplicativo de mensagens, mas uma rede social anônima e, portanto, perfeita para a difusão de conteúdo com poucas chances de contestação.

Ao mesmo tempo, consultorias digitais usam bancos de dados, com 80 a 100 pontos de informação sobre cada pessoa, que ajudam a definir o comportamento de eleitores, juntá-los a grupos microssegmentados, e enviar mensagens a eles, empacotando-as em uma embalagem de notícia falsa. Daí, impulsionam esse pacote, com um cartão de crédito pré-pago internacional e acessando através de uma rede privada virtual sediada em outro país, tornando mais difícil a identificação, responsabilização e remediação do ato.

Essa parte invisível, que usava ''chipeiras'' com dezenas de cartões de celulares e agora opera com programas que criam números virtuais de fora do Brasil, acoplados a computadores abastecidos com megaplanilhas, atua com psicometria e inteligência artificial para manipulação em massa. Ela é muito, mas muito mais assustadora. Porque, ao produzir conteúdos para que mexam com nossos sentimentos baseados em bases de dados com informações que coletam, compram ou roubam sobre nós, acabam por induzir vontades e manipular nossa vida sem que percebamos. É a antiga mensagem subliminar da propaganda, mas extremamente mais poderosa e eficaz.

Uma das condições básicas da vida em sociedade é que seus membros concordam em tomar decisões racionais e coletivas baseadas em fatos. Mas quando fatos comprováveis passam a ser irrelevantes diante da emoção, abre-se a possibilidade da ascensão de quem sabe surfar sobre medos e preconceitos, elegendo um inimigo que ameaça a tudo e a todos o tempo inteiro. E, portanto, demanda mão amiga e braço forte.

A dez dias do segundo turno, é possível afirmar que o debate eleitoral foi manipulado com consequências que não podem ser ainda determinadas. E que o resultado da ''festa da democracia'' de 2018 é uma sociedade em que uma parcela considerável de seus membros tornou-se incapaz de separar ficção de realidade. E uma outra parte simplesmente não se importa com isso.


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