28/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Tucanos, liberais e libertários: um apelo para a direita libertária

Publicado em 09/10/2018 12:00 -

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Esta carta é escrita para os olhos dos brasileiros liberais, defensores do livre-mercado, do estado mínimo, das liberdades individuais e da iniciativa privada. Tem o objetivo de argumentar que, apesar do histórico sugerir o contrário, a aliança natural da direita libertária no segundo turno dessas eleições é com Fernando Haddad.

Esta é uma carta escrita com genuína empatia e solidariedade. A conjuntura política de nosso país não tem permitido, mas temos que partir do pressuposto que dividimos com nossos adversários políticos a mesma nação ao fim do embate democrático.  Se a camisa das equipes são de cores diferentes; são de interesse comum a manutenção do gramado, a estrutura do estádio, e a segurança do torcedor. Não há democracia sem essa controvérsia, e no passado tanto socialistas quanto liberais verteram lágrimas e derramaram sangue para conquistar o direito de debater livremente e decidir pelo voto suas divergências políticas.

O PSDB começou como um partido social-democrata; ideologia hoje melhor acoplada ao PT; análogo brasileiro aos social-democratas alemães, aos socialistas franceses ou aos trabalhistas ingleses. O movimento à direita, advindo das alianças com DEM e PMDB no governo de Fernando Henrique Cardoso, aproximou o PSDB do neo-liberalismo aos moldes de Thatcher/Reagan; conciliando uma agenda conservadora moral com o liberalismo econômico. A tradição liberal mais clássica; aquela de Rousseau, Locke e Smith; ficou sem um expoente claro no país. O NOVO tenta sanar esse buraco, mas a demanda da conjuntura tem dificultado a adoção do liberalismo moral e econômico de forma simultânea.

É provável que o liberalismo seja o grande derrotado desse primeiro turno. A votação obtida por Geraldo Alckmin, cacifado por dois mandatos de governador, um partido de grande porte, e o maior tempo de propaganda eleitoral, é sintomática da severa deterioração da base neoliberal. A avaliação do porquê cabe ao próprio grupo. Mas tomando como exemplo os republicanos tradicionais nos EUA, creio que teve algo a ver com a tentação oferecida pelo antipetismo populista.

Em face ao surgimento de um movimento direitista de rua, jovem e com capilaridade na internet, o PSDB e os neoliberais brasileiros sentiram-se aptos a cooptar esse apoio para enfrentar a carga tributária, o gasto público, a corrupção e o que viam como estatismo desnecessário dos governos do PT. Alimentaram as manifestações de camisa-amarela, buscaram arestas de influência dentro do MBL e Revoltados OnLine. Com isso, tiveram sucesso no impeachment e, com ele, obtiveram a aprovação de medidas liberais impopulares, como a contenção de gastos, a reforma trabalhista e a terceirização. Porém, assim como os republicanos dos EUA em relação ao Tea Party, não notaram a proporção que as coisas iriam tomar. Acabaram engolidos pela criatura que ajudaram a criar: Nos EUA, a ascensão Trumpista e o renascimento da alt-right. No Brasil, o fenômeno Bolsonaro.

Em nossas terras, o tucano que encabeçou esse oba-oba foi Aécio Neves. Embebido de um senso de predestinação, destoou do tom moderado de FHC, Serra e Alckmin, começando a sanha do ‘terceiro turno’ imediatamente após sua derrota eleitoral. Começaram aí as descabidas paranoias sobre a urna eletrônica, raiz das ameaças cotidianas sobre não se aceitar os resultados da eleição. Aécio chegou a declarar que sua principal proposta contra a corrupção era “tirar o PT”, plantando as sementes do antipetismo virulento que logo sairia de controle. Nessa ideologia ilógica, “tirar o PT” virou meta em si; valorizada acima de outras prioridades programáticas. O ideário de liberdade econômica ficou no banco de trás, refém de retóricas menos defensáveis.

Mas Aécio não é o liberal típico. Contraste-o com FHC, que protagonizou história ao passar a faixa presidencial a um opositor eleito democraticamente, ou Serra e Alckmin, que concorreram e reconheceram o resultado das eleições que perderam. Ambos foram governadores dentro da federação governada por outro partido e obtiveram uma medida de sucesso cooperando republicanamente com o nível federal. Meirelles, mesmo vários candidatos do NOVO, tem uma ideologia coerente e um programa previsível, implementável dentro do regime democrático. São interlocutores e oponentes legítimos e reconhecidos como tal por qualquer democrata. O mesmo não se pode dizer de Jair Bolsonaro.

Por suas paixões, a esquerda acaba por incorrer no pecado da hipérbole. Pela defesa de nobres causas, acabamos por ser altivos e arrogantes; pecado mortal em tempos onde a humildade e a didática são necessárias.  Hoje vejo nosso erro quando, nos debates, acabamos cunhando de fascistas nossos oponentes liberais. Chamamos de racistas e misóginos os defensores da igualdade formal laissez-faire e os oponentes das políticas estatais afirmativas.  É um debate ideológico legítimo. Mas como no uso de antibióticos, corre-se o risco dessensibilizar o público para a gravidade do problema. Gritamos “fascista” para FHC ou Alckmin quando usaram a PM para desocupar escolas ou debandar manifestações de professores. Mas, quando chegou Jair Bolsonaro, nossos alertas já estavam desacreditados. Com ele, o termo não é hipérbole. E a gravidade da ameaça é expoentes acima do que jamais sonharíamos encontrar numa democracia.

Esqueçamos, por um momento, a principal divergência sobre o papel do Estado nas relações econômicas. Como forma de estabelecer credenciais com o establishment econômico, Bolsonaro propagandeia uma versão extrema do Estado mínimo. Porém, isso é uma forma de desviar a atenção do foco principal de todo liberal e libertário: a liberdade e autonomia humanas. Liberais cunharam o conceito de direitos, delinearam os principais preceitos de equilíbrio e separação entre os poderes, laicidade do Estado, restrições à capacidade dos governos de interferir arbitrariamente na vida das pessoas. O verdadeiro projeto de Bolsonaro é atacar esses preceitos, tão caros a todos nós.

Haddad é economista, professor da USP. Pode ser mais keynesiano do que neoliberal, mas está longe de ser Castro ou Maduro. Agora fora da disputa do segundo turno, está na hora dos liberais reconhecerem que Venezuela e Cuba não são comparação hábil ao que foi feito pelo PT no Brasil. É um partido social-democrata, que reconhece que opera numa ordem mundial capitalista. Pode ser intervencionista, pode ter orçamentos inflados e alta carga tributária. Mas não é soviético, nem autoritário.

Eleito, Haddad deve manter o tripé macroeconômico e o estilo gradual de mudanças. É muito mais pragmático que Paulo Guedes, muito menos flegmático que Bolsonaro. O mercado terá previsibilidade e instituições fortalecidas, que com Bolsonaro estarão ameaçadas. O país continuará membro da ONU, continuará respeitando suas obrigações de tratados internacionais, inclusive aqueles vitais ao comércio internacional. E, fora do que for natural no processo de reforma política, ainda teremos certeza de que, no pior dos casos, em 2022 o resultado pode ser revertido por eleições livres, reconhecidas internacionalmente. Temos a mesma garantia com Bolsonaro?

Será amargo, e não sem um pouco de náusea. Mas o verdadeiro liberal prefere a economia estatista ao Estado opressor. Prefere um gestor com grau de doutor, poliglota e experiente em gestão pública, do que um paraquedista boquirroto. Pode discordar da forma de governar a economia, avaliar mal o partido e o candidato, mas não consegue desligar o botão de “lógica” e “memória” de seu cérebro iluminista.

Mais importante ainda: colocado em contexto da construção conjunta da democracia, o antipetismo não pode ter primazia sobre a defesa liberal de direitos e igualdade. Militarismo, preconceito, tortura e demagogia não podem ter a preferência de uma tradição intelectual que prima pela racionalidade e pela dignidade inerente do ser humano.

A derrota de Bolsonaro ajudará a reestabelecer um debate saudável entre estatistas e livre-mercadistas, entre libertários e conservadores, dentro de um núcleo democrático que aceita as premissas comuns e as regras do jogo. É o retorno da estabilidade para que o embate volte a ser entre esquerda e direita, e não entre civilização e barbárie, como passou a ser nesse segundo turno. A democracia pede essa união. Até porquê uma vitória de Bolsonaro cimentaria a marginalização dos liberais em prol dos autoritários; com mudança concomitante de retórica da esquerda.

É fácil se pautar pela rivalidade e votar 17 para ver o sistema ruir. Torcer o nariz e abster-se é confortável ideologicamente, mas terá o mesmo efeito. O voto branco ou nulo, nesse segundo turno, apenas diminuiu o número de votos válidos, base para o cálculo de vitória do primeiro colocado. É o mais confortável. Mas dessa vez será sinônimo de apoio ao autoritário. Assim, aos liberais e libertários, fica meu desafio para a nobreza do voto contrariado, calculado para ser útil, mesmo que desça como um remédio amargo. Estamos juntos na defesa da democracia e de uma sociedade livre.

Leo Nader é mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Oxford e doutorando em Direitos Humanos e Política Global pela Scuola Superiore Sant’anna


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