19/04/2024 - Edição 540

Ágora Digital

Não há mais tempo para graça, mas a esperança é feroz

Publicado em 03/10/2018 12:00 - Victor Barone

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Esta coluna tem sido um espaço prazeroso, lúdico, uma brincadeira minha para com a seriedade da política brasileira. Nesta edição, porém, deixo de lado os gracejos. Ando com medo, medo de que, como poetou Chico, minha gente passe a andar de lado, olhando pro chão.  Medo do porvir em um país que embarca de olhos vendados no discurso da violência e da exclusão.

Pouco importa, agora, o resultado das urnas neste domingo. O fato de que quase 40% dos brasileiros coadunam com as ideias de um país armado, teocrático, militarizado, avesso a diferença é, por si só, apavorante. Perceber no outro, no vizinho, no colega de trabalho, no amigo e familiar o germe do fascismo, é estarrecedor.

O argumento em prol da civilidade esgotou-se. A impressão é de que toda a precariedade da educação no país, aliada a destruição paulatina dos valores democráticos – promovida pelo constante esfacelamento da crença popular nas instituições – desembocou no cenário atual, onde parte importante da sociedade aposta em um projeto de viés totalitário como se este fosse uma resposta adequada à mágoa que aflorou entre todos nós com a derrocada moral do PT.

Não se discute aqui as barbaridades argumentativas da ignorância institucionalizada, como a que classifica o PT como extrema esquerda, a que coloca todo pensamento de esquerda no saco de gatos da corrupção da política partidária e da nossa capenga democracia representativa, nem mesmo, na outra vertente, pode-se argumentar Bolsonaro como um fenômeno de uma direita ideológica que dá a sua resposta ao velho inimigo. Nada disso. Bolsonaro não é um fenômeno de direita. O que se discute aqui é a guinada totalitária que ele provoca.

Ora, a corrupção pode ser combatida com um Estado Democrático de Direito robusto e com uma população cidadã. Já o autoritarismo ataca a própria autoridade democrática do Estado Democrático de Direito. Bolsonaro tem feito isso há décadas.

– Você vai votar no Bolsonaro?
– Vou.
– Então você apoia a tortura, a limitação de direitos civis dos gays, a forma como ele pensa o papel da mulher na sociedade, o pouco caso que ele faz com os direitos humanos e a
democracia…
– Ele não é assim…
– Mas há inúmeros vídeos onde ele aparece fazendo justamente isso… você, ainda assim, vai votar nele?
– Vou.
– Mas então você pensa da mesma forma que ele sobre temas como tortura, direitos humanos, democracia, minorias…?
– O PT roubou, a esquerda quer dominar o mundo, bandido bom é bandido morto, feminazis, direitos dos manos, blá, blá, blá…
– Estou perguntando se você pensa como ele….
– O PT roubou, a esquerda quer dominar o mundo, bandido bom é bandido morto, feminazis, direitos dos manos, blá, blá, blá…
– Ok, já entendi como você pensa.

Tenho medo ao observar a construção do fascismo refletida nos seguidores de Bolsonaro que, em massa, – em um reflexo de sebastianismo abrasileirado – reproduzem um discurso de sociedade homogênea, de religiosidade enquadrada, de pensamento aquartelado, armada e pronta para o linchamento coletivo da diferença.

"'Uma das lições que a Era Hitler nos ensinou' escreviam há mais de meio século Adorno e Horkheimer 'é a de como é estúpido ser inteligente'. Pensavam nos bons europeus, modernos e civilizados, que durante uma década pavimentaram a ascensão do Terceiro Reich com argumentos de lógica impecável acerca da inviabilidade de tamanha aberração. Lembravam-se, por exemplo, de uma conversa com um brilhante economista que lhes demonstrara por a + b, com base nos interesses objetivos dos cervejeiros bávaros, que uma uniformização da Alemanha era impossível. 'Depois os inteligentes disseram que o fascismo era impossível no Ocidente. Os inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros, porque são de fato estúpidos. São os juízos bem informados e perspicazes, os prognósticos baseados na estatística e na experiência, as declarações começando com as palavras: 'Afinal de contas, disso eu entendo', são os statements conclusivos e sólidos que são falsos." – Paulo Arantes, "Apagão" In: Zero à esquerda, 2004 [2001], pp. 13-14.

Fascista não é uma palavra vazia, usada para ofender desafetos políticos. Fascismo é uma sombra, uma mácula na história da humanidade – assim como todos os totalitarismos, de direita ou esquerda. Sob o fascismo, o indivíduo é reduzido, a diferença suprimida, o pensamento controlado, a livre expressão vedada, a liberdade aniquilada. Fascistas proliferam no desespero, na incredulidade em relação aos valores democráticos, na xenofobia cega, na redução do outro a sub-humanidade, na ideia de que somos incapazes de reger nossos próprios destinos sem sermos guiados por salvadores da pátria e líderes messiânicos. Fascistas se utilizam das liberdades democráticas para subverter os próprios valores da democracia. Por isso mesmo não se deve cair na armadilha de permitir que eles usem do argumento da tolerância para serem tolerados. Contra o Fascismo, a história aponta, só há uma estratégia possível: o combate cerrado e contínuo. E isso custa caro.

Por isso, agarro-me a cada segundo a ideia de que não devo permitir que este medo que sinto me transforme em um “corpo medroso”, como bem lembra o amigo Emerson Merhy.

É preciso diferenciar este “medo saudável”, que nos equipa para enfrentar o que nos ameaça, daquele que leva à construção de um “corpo medroso”, um corpo tão dominado pelo pânico que se paralisa, se submete, que passa a aceitar o poder da ameaça a tal ponto que se desvitaliza.

É tempo de construir corpos outros, que não os dominados pelo medo do fascismo, pois os tempos que se aproximam, independente do resultado das eleições, serão bicudos. Reconstruir a ideia da civilidade e da diferença como valores básicos da democracia será um desafio e tanto.

Portanto, queridos, deixo-os hoje com um poema de esperança. Sigamos.

Na escuridão, amanhã, luz
Neste silêncio, amanhã, voz
No pavor, amanhã, audaz
Nesta loucura, amanhã, lucidez
Neste deserto, amanhã, semear
Na solidão, amanhã, nós

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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