29/03/2024 - Edição 540

Judiciário

Com nova lei, denúncia de crime sexual não precisa de consentimento da vítima

Publicado em 02/10/2018 12:00 -

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Com a nova lei 13718/18, todos os crimes contra a liberdade sexual passarão a ser denunciados por ação penal pública incondicionada. Isso significa, na prática, que a ação contra crimes como estupro e assédio sexual não dependerão mais da vontade da vítima para ocorrer.

Até a implementação dessa lei, sancionada na última segunda-feira (24/09) pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, que exercia a presidência da República na data, a denúncia contra crimes desse tipo era realizada por meio de ação penal pública condicionada.

Ou seja, era necessária a anuência da vítima, com exceção dos crimes contra vulneráveis (menores de 14 anos ou portadores de enfermidade ou deficiência mental), para que a ação fosse levada a cabo.

Esse entendimento passou a ser vigente no ordenamento jurídico brasileiro a partir de 2009, com a mudança proposta pela Lei de Crimes Sexuais.

Antes disso, a lei dispunha que ações de crimes contra a liberdade sexual só podiam ser feitas mediante queixa-crimes – quando a vítima entra com uma ação privada contra o agressor – por serem apenas contra os “costumes”.

A mudança garantida pela nova lei está sendo duramente criticada por advogados. Eles apontam que houve uma rapidez desnecessária em todo o processo legislativo somente com o intuito de agradar a opinião pública.

“Não foi discutido em sociedade o que as mulheres pensam disso. Se o problema era a impunidade por conta do prazo decadencial [a vítima, antes dessa lei, tinha seis meses para oferecer denúncia], que se alargasse esse prazo, que se tirasse a decadência”, afirma o criminalista Marcelo Feller, sócio do Feller e Pacífico Advogados.

Para ele, uma vítima que “não quer reviver um momento traumático de sua vida em um processo judicial não pode ser obrigada a isso”.

O advogado Gustavo Badaró, professor livre-docente em Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo (USP), segue a mesma linha. Segundo ele, a sociedade está diante de um Estado intervencionista e paternalista que desconsidera a opinião da própria vítima.

“Eu acho que foi um grande erro da lei. Estamos falando de crimes contra a liberdade sexual. Se o legislador reconhece que as pessoas, maiores e capazes, têm liberdade para dispor de seu corpo para práticas sexuais, é uma enorme contradição que ela não tenha liberdade suficiente para dizer se ela quer ou não ver processada a pessoa”, diz. “O crime não é contra a sociedade, é contra a pessoa que tem sua própria liberdade sexual violada.”

A advogada criminalista Anna Julia Menezes, sócia do Vilela, Silva Gomes & Miranda Advogados, lembra que, agora, não só a denúncia de crime de estupro será feita sem a representação da vítima, mas todos os crimes sexuais, como assédio sexual e atos obscenos.

“Houve extrapolação da lei nesse quesito. A vítima tem de ter liberdade de escolha para dizer se quer representar. Colocar todos os crimes nessa mesma seara é uma afronta à liberdade da pessoa de decidir se teve sua própria dignidade ofendida ou não”, afirma.

Promotores discordam

O debate muda de figura sob a ótica dos promotores. José Reinaldo Carneiro, Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), defende que a transformação do tipo de ação penal representou um avanço para o Direito Penal brasileiro.

“Vejo esse momento como uma libertação e afirmação da mulher no sentido de dar a ela independência. Se uma vítima não quiser que haja denúncia, basta que ela não comunique o fato às autoridades”, avalia. “O bem jurídico protegido da dignidade sexual da vítima do estupro é infinitamente superior, em razão de sua gravidade, à vontade individual das pessoas.”

Gabriela Mansur, promotora de Justiça no MPSP e coordenadora do Núcleo de Combate à Violência contra a Mulher, também afirma que a medida é positiva, uma vez que, por muitas vezes, mulheres – que são mais vitimadas por crimes desta natureza – deixam de denunciar por motivos alheios à sua vontade.

“Quando a mulher é estuprada ou sofre algum tipo de violação, ela demora pra se recompor, seja pela vergonha, medo e falta de credibilidade no sistema de justiça”, explica.

Para ela, a ação deve ser incondicionada em todos os crimes que dizem respeito à liberdade sexual:

“O ônus tem de sair do ombro da mulher e passar para o poder público, de competência exclusiva do Ministério Público. Quando há violação à dignidade sexual, a questão passa a ser de ordem e segurança pública”, afirma.

Silvia Chakian, também promotora de Justiça no MPSP, lembra que a lei Maria da Penha segue raciocínio semelhante, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no ano passado, que a denúncia contra crimes de lesão corporal no âmbito doméstico também deveria ser feita mediante ação penal pública incondicionada.

Ela ainda ressalta que, até a sanção da nova lei, o estupro era o único crime hediondo denunciado de forma condicionada. “Essa exigência tinha uma raiz profundamente discriminatória. Isso foi pensado, lá atrás, para que a mulher, se quisesse, pudesse ocultar sua própria ‘desonra’. Era a noção do escândalo do processo, e isso já foi superado”, afirma.

Como funciona em outros países

Muitos países adotam o antigo modelo praticado no Brasil. No Código Penal italiano, por exemplo, os crimes contra a liberdade sexual (art. 519 a 526) são denunciados mediante ação penal pública condicionada à representação da vítima, assim como na Argentina (CP, art. 132).

Em Portugal, os crimes sexuais, em regra, são perseguidos mediante queixa por ação privada do ofendido (CP, artigo 718.1), como também ocorre nos Estados Unidos, após construção jurisprudencial sobre o tema.

O Código Penal espanhol, por sua vez, afirma que os crimes de agressões sexuais (art. 178 a 180) e abusos sexuais (art. 183 a 183 ter) são perseguidos mediante denúncia da pessoa ofendida ou representação do Ministério Público. Se a vítima for menor de idade, ou pessoa incapaz, bastará a denúncia do MP (CP, art. 191).

“Na grande maioria dos países, os crimes sexuais são perseguidos mediante ação penal que depende, em alguma medida, da manifestação de vontade da vítima, seja como forma de representação, seja como hipótese de ação penal privada”, afirma Gustavo Badaró. “A lei inova, mas inova mal, mudando a natureza da ação penal.”

Importunação sexual

O projeto de lei também foi responsável pela criação do crime de importunação sexual, que consiste na prática de ato libidinoso – qualquer ato de satisfação de desejo sexual – na presença de alguém, sem que essa pessoa dê consentimento. Com a sanção, esses atos se tornam crimes sujeitos a punição de 1 a 5 anos de prisão.

Assim, podem ser enquadrados no crime, por exemplo, homens que se masturbarem ou ejacularem em mulheres em locais públicos. Antes da criação do novo crime, casos como esses costumavam ser tipificados como “importunação ofensiva ao pudor”, uma contravenção penal de baixa pena.

“Os tribunais tinham dificuldade de ser proporcionais. Existia apenas a tipificação de importunação ofensiva ao pudor, de um lado, e estupro, do outro. Agora, as condutas intermediárias estão melhor tipificadas”, afirma Feller, do Feller e Pacífico Advogados.

O criminalista Augusto Arruda Botelho, ex-presidente e conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), no entanto, argumenta que a criação dessa tipificação penal é casuísta e ineficaz.

“Trata-se de uma lei feita às pressas com a falsa expectativa de que vai resolver algo, ainda que eu entenda a gravidade dos últimos acontecimentos. Já há tipos penais que podem punir com maior ou menor gravidade as condutas recentes em transporte público”, diz. “Essa lei tem pena mínima de um ano. Se for réu primário, ele vai pagar uma multa. Não é em razão dessa lei que pessoas com desvio psicológico e de caráter vão deixar de praticar atos desse tipo.”

Vazamento de vídeos

A lei prevê ainda pena de um a cinco anos à divulgação, por qualquer meio, de vídeo e foto de cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, além da divulgação de cenas de estupro.

A pena será aumentada em até dois terços se o crime for praticado por pessoa que mantém ou tenha mantido relação íntima afetiva com a vítima.

Segundo os advogados e promotores ouvidos pela reportagem, apenas a construção jurisprudencial poderá afirmar o que constitui uma “relação íntima afetiva” e se a divulgação de vídeos pornográficos profissionais também será considerada crime.

A promotora Gabriela Mansur atenta para o fato de que a pornografia de revanche era vista apenas como difamação e denunciada, portanto, por meio de uma ação penal privada. Segundo ela, a pornografia de revanche ocorre quando um homem publica fotos sensuais sem consentimento da vítima como forma de vingar o término do relacionamento.

“A vítima tinha apenas seis meses para entrar com representação. Esse tempo é muito curto, já que a investigação para crimes digitais é dificílima”, afirma.

Aumento da pena para estupro coletivo

O texto da lei também ampliou o rigor das punições para casos de estupro coletivo.

Até então, o crime de estupro gerava pena de 6 a 10 anos de prisão. Com a nova lei, o estupro praticado por duas ou mais pessoas levará a um aumento das penas de um terço a dois terços, como qualificadora do crime.

O mesmo será aplicado para os casos do chamado estupro corretivo, praticado com a finalidade de controlar o comportamento da vítima.

“As pessoas não sabem o que significa o ‘estupro corretivo’, mas ele é muito grave porque diz respeito à orientação da pessoa, a aspectos de intolerância. É o estupro do ‘eu vou te dar uma lição’. Então, também foi importante a criação dessa qualificadora”, afirmou Gabriela.


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