19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Congresso nunca aceitou nossos direitos, diz líder indígena Marcos Terena

Publicado em 12/09/2018 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Os primeiros povos do Brasil ficaram ausentes da Assembleia Constituinte que foi eleita para elaborar a Constituição Federal de 1988, já que os povos indígenas não conseguiram votos suficientes para incluir representantes entre os deputados federais eleitos em 1986. A solução encontrada foi criar um movimento político articulado a partir do gabinete do deputado Ulisses Guimarães, que presidiu os trabalhos encarregados de criar a nova Carta Magna do Brasil.

Um dos líderes responsáveis por esse movimento, Marcos Terena conta que a agitação daqueles dias levou a um importante avanço no reconhecimento dos povos originários como cidadãos e parte da sociedade brasileira. Trinta anos depois, no entanto, algumas questões, como a demarcação de terras, continuam distantes da pauta do dia. “Ultimamente, a ameaça maior vem da chamada bancada ruralista e do agronegócio, sempre tentando alterar alguns artigos [da Constituição] para nos prejudicar – e com falsas promessas de melhoria de vida”, diz Terena, que desde 2007 é diretor do Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.

A conquista dos direitos indígenas no Brasil é recente. A Constituição de 1824, nossa primeira carta, foi omissa no tema. O caráter assimilacionista percorreu todo o século XIX, com a ideia de que os povos tradicionais representavam um atraso à modernidade. Já no período republicano, a Constituição de 1891 também nada disse. Em 1934, a nova carta constitucional faria uma menção à incorporação dos “silvícolas” à nação – a de 1946 repetiria a intenção –, enquanto que as de 1937 e as duas outorgadas no período da ditadura militar (1964-1985) versariam brevemente sobre a posse de terras e o usufruto de seus recursos.

Somente a Constituição de 1988, promulgada em 5 de outubro daquele ano, trouxe um avanço para os povos indígenas. Pela primeira vez, foram reconhecidos direitos à organização social, línguas, crenças e costumes, distanciando-se, finalmente, da habitual ideia de tutela.

Na eleição deste ano, 130 candidatos se declararam indígenas, número superior ao de 2014. O mais expressivo deles, em função do cargo, é Sonia Guajajara, candidata a vice-presidência pelo PSOL. Na visão de Terena, contudo, a presença indígena no parlamento, uma das principais bandeiras levantadas no fim da década de 1980, ainda se mostra uma realidade distante. “Uma democracia onde mais uma vez o índio fica de fora dos acessos às instâncias de poder. É tempo de votar e ser votado, mas, mesmo com o direito de termos uma candidatura indígena, o sistema eleitoral viciado dificulta essa eleição”, diz.

Marcos, você foi um dos grandes nomes do movimento político responsável pela inserção dos direitos indígenas na Constituição de 1988. Como foram aqueles dias?

Tudo começou em 1986, quando tiveram início as campanhas políticas e eleitorais para que toda a sociedade brasileira elegesse seus representantes para a Assembleia Nacional Constituinte. Logicamente, nós, os indígenas, também nos preparamos para sermos eleitos como deputados federais. Éramos seis em todo o Brasil. Foi uma campanha maravilhosa e muito emocionante, mas ninguém foi eleito. Ao invés de ficarmos nos lamentando, no entanto, mostramos que aquela Assembleia Constituinte era como uma cadeira capenga, pois tinha todos os setores da sociedade, menos as Primeiras Nações, ou seja, nós, os índios. Tratamos, então, de nos organizarmos e montamos uma estratégia tipicamente indígena, tendo como elo principal o gabinete do então deputado Ulisses Guimarães, tanto no início dos trabalhos como no final, quando precisávamos da garantia dos votos necessários para a aprovação de nossos direitos.

Foi alcançado o que se desejava? O que mudou depois da Constituinte?

Creio que, para aquele momento, foi o suficiente, pois tínhamos a esperança de ampliar, com a regulamentação dos artigos 231 e 232 [na CF, “capítulo VIII – Dos índios”] e também com o cumprimento da recomendação constitucional de que em cinco anos todas as terras indígenas seriam demarcadas. Isso não aconteceu. Durante todos esses anos, o Congresso Nacional, em especial a ala mais conservadora, nunca aceitou a garantia desses direitos indígenas. Sempre ameaçou e continua a ameaçar a retirada dos direitos, que são básicos para nossas aldeias e comunidades. Ultimamente, a ameaça maior vem da chamada bancada ruralista e do agronegócio, sempre tentando mudar alguns artigos para nos prejudicar – e com falsas promessas de melhoria de vida.

Marcos, trinta anos depois, quais foram os avanços no que diz respeito ao indígena na sociedade brasileira? E quais foram os retrocessos?

Como eu disse, sempre usávamos algumas metáforas, como a cadeira de três pernas, para que todos os demais brasileiros enxergassem que, no fundo, nós nunca fomos tratados com respeito. Independente da regulamentação dos capítulos “dos índios” na Constituição, houve um avanço da superação da discriminação e do preconceito que sofremos. No entanto, se de um lado a nova geração de indígenas aproveitou e ampliou as conquistas que fizemos no passado, de outro o sistema governamental criou uma espécie de poder “fictício”, como os chamados Conselhos de Saúde Indígena, da Educação Indígena e até mesmo a Funai [Fundação Nacional do Índio]. Eram os chamados conselhos “chapa branca”. Isso fortaleceu o que chamamos de discriminação institucional, como termos indígenas nas instâncias de decisões, a presidência da Funai, o secretário de saúde indígena ou a criação de uma Universidade Indígena.

Em uma outra conversa nossa, você me disse que o indígena brasileiro custa R$ 1 ao Estado…

Fazendo uso das mesmas ferramentas com as quais nós garantimos no passado a Constituição, precisamos colocar em prática mecanismos que os mais jovens agora alcançam com mais facilidades, como as cotas, que eu ajudei a negociar no Senado Federal, junto com o movimento negro. Um dos mais graves é a total falta de responsabilidade do gestor público ao não trabalhar recursos compatíveis para as mais de 300 sociedades indígenas, como ocorre na Funai, onde aritmeticamente o índio custa em torno de R$ 1 ao ano, enquanto o preso vale quase R$ 3 mil ao mês. Na verdade, ninguém faz gestão a cada ano junto ao Congresso Nacional para assegurar recursos para a política indigenista oficial. E por que? Porque não existe um Censo de quantos realmente nós somos. Os dados oficiais que deveriam ser levantados pela Funai são projeções feitas pelo IBGE. Cálculos aproximados, como eles sempre justificam.

No ritmo em que estamos caminhamos para uma sociedade que vê o indígena como cidadão atuante e com poder de decisão?

Creio que uma nova consciência da sociedade brasileira sobre o índio e seus territórios depende também do que estamos chamando de “índio intelectual”, aquele que se forma na universidade, faz mestrado e até mesmo o doutorado. Percebi como mestre da Cátedra Indígena que esses valores intelectuais indígenas se encontram numa contradição devido a fricção de saberes. A universidade nunca treina ninguém para o desenvolvimento das práticas dos saberes [tradicionais], enquanto que nas aldeias sim. Para a universidade, basta o diploma. Para nós, indígenas, isso não é suficiente. Mas eu acredito numa vertente valiosa da sociedade indígena que é a Mulher Indígena, seja na formação acadêmica ou nos poderes de decisão. Pessoalmente tenho conversado com algumas a esse respeito, e, ao mesmo tempo, abrindo novos caminhos de afirmação cultural, intelectual e espiritual dos valores indígenas.

Temos alguma proposta de política indigenista forte? O tema é priorizado por algum partido?

Aprendi com um ex-ministro da Cultura de quem fui assessor que um povo indígena será forte quando ele tiver a cultura forte, mas também uma economia forte. Se temos direito a quase 15% do Brasil – nunca esquecendo que 100% do Brasil era nosso -, 330 sociedades indígenas e mais de 200 línguas faladas, temos que elencar nós mesmos sem qualquer intermediário do “especialista em índios” uma plataforma de metas para um governo sério e comprometido com os direitos indígenas e seu desenvolvimento sócio-econômico, ambiental e cultural. Em cada bioma do país há uma família indígena. Os partidos políticos quando chegam ao poder viram governos e sempre lembro e comento com outros irmãos indígenas, que, se o governo nos discrimina e não nos deixa acessar os poderes, tanto faz que seja de esquerda, centro ou de direita. Por isso, precisamos lutar sem a emoção partidária ou ideológica, e, sim, com uma proposta que tenha os caminhos, com início, meio e fim. Para isso, além das metas e objetivos, é preciso garantir recursos operacionais ao longo dos quatro anos pelo menos, sempre com diagnósticos estatísticos e em crescimento.

Hoje, na sua visão, quais são as principais lutas dos povos indígenas?

Primeiramente, demarcação das terras. Isso é prioridade para qualquer povo. Índio é Terra, era a campanha que fazíamos na Constituinte. Em seguida, vem o uso sustentável de seus recursos através de um direito internacional chamado Convenção da OIT [Organização Internacional do Trabalho] 169, onde se garante o direito do índio ser consultado de forma livre, prévia e informada. E o fortalecimento da Funai, que é o nosso único elo com o Governo Federal, inclusive seu status a nível ministerial, com poderes políticos e administrativos capazes de adequar a política indigenista às metas do novo milênio estabelecido pela ONU.

Como você avalia o cenário político atual?

Chegamos ao momento do exercício da democracia feita pelo “colonizador”. Uma democracia onde mais uma vez o índio fica de fora dos acessos às instâncias de poder. É tempo de votar e ser votado, mas, mesmo com o direito de termos uma candidatura indígena, o sistema eleitoral viciado dificulta essa eleição. Quando olhamos para nosso Brasil, vemos um país rico e soberano, mas que está contaminado por acordos entre Executivo, Judiciário e Legislativo, que produz vários partidos políticos e, com isso, inviabiliza a qualidade dessa representação. Em consequência, gera um sistema também corrompido e que não se organiza para representar a sociedade, mas, sim, para sobreviver como está. Infelizmente, a sociedade brasileira como um todo ainda não aprendeu que, para uma consciência eleitoral e política, precisamos de mudanças estruturais. Ela começa e é oportuna nas eleições livres, mas com candidatos capazes de representar essas mudanças. Mas onde eles estão?


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *