20/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Os gafanhotos de Pacaraima

Publicado em 15/08/2018 12:00 - Rodrigo Amém

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O ser humano é um animal racional da mesma maneira que uma galinha é um animal alado. A galinha tem asas e, em teoria, é capaz de voar. O homem tem um cérebro dotado de raciocínio lógico. Mas a grande maioria de membros de ambas as espécies só faz uso desses recursos em raras ocasiões, e sem muita destreza.

Nossa falta de intimidade com o raciocínio lógico é central à experiência humana. Boa parte das religiões do mundo giram em torno da nossa tendência de agir sem pensar. O que são os pecados senão a manifestação dos nossos desejos irracionais? Mesmo sob ameaça da danação eterna, o devoto segue pecando. Não é muito inteligente, não é, irmão?

E esse padrão se repete nas outras áreas da vida. Mesmo sob o risco de morte, bebemos e dirigimos, pilotamos sem capacete, transamos sem camisinha. Fumamos. A história do ser humano médio é uma trôpega acumulação de irracionalidades. Dizer que o homem é muito burro é injusto com o burro, que dificilmente se dedica a ações que comprometem seu próprio bem-estar. O ser humano é muito humano.

Menos racional que um ser humano, só um grupo de seres humanos. O fenômeno que a psicologia e a sociologia chamam de desindividuação, ou seja, quando perdemos nossa auto-consciência ao participar de grupos. Viramos uma massa irracional. Quando todos ao nosso redor são tão horríveis quanto eu, as amarras do julgamento social se desfazem. E eu ganho a autorização para ser horrível também.

Foi o que aconteceu em Roraima, na cidade de Pacaraima, onde um comerciante foi assaltado e agredido, transformando a população local numa nuvem de gafanhotos agressivos, destrutivos, irracionais. O que decidiu fazer essa turba, diante da violência sofrida por um dos seus? Atacar a prefeitura? Ir até a Capital e atear fogo na casa do governador? Afinal, se a revolta é com a falta de segurança, o racional seria atacar os responsáveis pelo problema, não é?

Pois os gafanhotos de Pacaraima decidiram atacar os refugiados venezuelanos que dormiam nas ruas da cidade. Porque, claro, a mentalidade de grupo potencializa a violência, mas a coragem permanece nula. Então é mais prudente atacar quem não tem como se defender, ou para onde ir. É mais satisfatório agredir quem não tem culpa. É mais fácil chutar quem já dorme no chão. E foi assim que 1,5 mil venezuelanos, fugidos da miséria, viraram alvo da turba verde-amarela.

E esta é a parte mais sórdida da condição humana: não somos apenas irracionais, apesar de inteligentes. Somos também covardes, apesar de espiritualizados.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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