20/04/2024 - Edição 540

Brasil

Corte de bolsas pode enterrar a ciência no Brasil, diz um dos principais cientistas do país

Publicado em 03/08/2018 12:00 -

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Professor do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e pesquisador do Instituto D’Or, o neurocientista Stevens Rehen foi um dos líderes da ampla pesquisa que explicou a associação entre o vírus zika e a microcefalia — estudo de importância mundial, publicado em revistas científicas internacionais, e que, como lembra Rehen, colocou o Brasil na dianteira da pesquisa científica.

Na quinta-feira (2), ante a notícia do corte de bolsas pela Capes, o carioca disse estar "em choque".

“Isso pode enterrar a ciência no Brasil — afirma Rehen. — Se uma epidemia de zika acontecesse no início deste ano no Brasil, quando vínhamos de uma série de cortes de investimentos do governo, a ciência brasileira já não poderia responder em tempo recorde, como conseguiu antes. E isso por falta de material, de reagentes, por exemplo. A partir de agora, com essa expectativa de corte massivo de bolsas, não poderíamos responder por falta de pessoas”.

Um dos principais cientistas do país, Rehen coordena um laboratório de estudos sobre o cérebro e células-tronco em que trabalham 20 pesquisadores — 14 deles são bolsistas.

“Sem eles, a pesquisa não anda. Eu coordeno o laboratório, mas são eles que realizam os experimentos, entende? A Capes tem uma função estratégica dentro do Ministério da Educação, no que se refere à formação de profissionais. E essa função foi marcante no importante estudo sobre a zika, só para citar um exemplo recente. Mas o governo sofre de uma miopia para enxergar a ciência. Reduzir gastos fazendo corte de pesquisadores é jogar pelo ralo o que temos de mais precioso, milhares de pessoas”, completa.

Para Rehen, o impacto é imediato: "Afetará a auto estima dos pesquisadores e, em consequência, vai reduzir sua produtividade porque já vão começar a buscar outro trabalho".

“São profissionais superespecializados que ou vão buscar outros empregos ou vão embora para outro país que invista em ciência. Não consigo imaginar um Ministério do Planejamento que joga fora nosso futuro, na educação e na ciência. Esse corte vai paralisar a pós-graduação e, como reflexo, afetar toda a malha de pesquisa científica no Brasil. E o mais desafiador é que não temos voz. A ciência e a política no Brasil são completamente dissociadas”.

Rehen repete que está "exaltado diante da gravidade" do anúncio. Afirma que a redução de recursos para a ciência "já se tornou algo previsível, mas o corte completo de bolsas ninguém poderia imaginar".

“Cortam o sonho de um futuro melhor para o país, cortam o sonho de milhares de pessoas dedicadas a esse futuro e matam o sonho de recuperação da crise. O Brasil volta a se posicionar naquele grupo de países subdesenvolvidos, em que não há espaço para a pesquisa científica. No mínimo, metade da força de trabalho da pesquisa brasileira está sendo perdida. Estamos cortando quem de fato executa o trabalho. Por exemplo: eu sou docente, recebo pela universidade, coordeno o laboratório, mas quem faz a pesquisa acontecer é o bolsista. É como ter um time de futebol só com o técnico, entende? Tenho certeza de que pelo menos cem mil pessoas neste momento estão se perguntando: ‘O que vou fazer da minha vida?’"

Cortes

O presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Abilio Baeta Neves, enviou na quarta-feira (1) um ofício ao ministro da Educação, Rossieli Soares, informando que, caso não haja mudanças no orçamento para 2019, o órgão terá que suspender o pagamento, a partir de agosto do próximo ano, de quase 200 mil bolsas de estudo e pesquisa.

A medida afetaria todos os bolsistas de mestrado, doutorado e pós-doutorado. Segundo a Capes, 93 mil pessoas se enquadram nessa situação.

De acordo com o ofício, também sofreriam com os cortes 105 mil bolsistas de três programas destinados a formado de professores: Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), Programa de Residência Pedagógica e Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor).

Segundo o Capes, serão paralisados também o Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) e os mestrados profissionais do Programa de Mestrado Profissional para Qualificação de Professores da Rede Pública de Educação Básica (ProEB). Nesses programas, estão inseridas mais de 245 mil pessoas, que deverão ser afetadas pelo corte.

Além disso, praticamente todos os programas de fomento da Capes no exterior seriam afetados.

Na carta, Abilio Baeta Neves afirma que "foi repassado à Capes um teto limitando seu orçamento para 2019 que representa um corte significativo em relação ao próprio orçamento de 2018". O texto diz que, se o teto for mantido, "os impactos serão graves para os Programas de Fomento da Agência".

O presidente do órgão faz questão de ressaltar, no entanto, o empenho de Rossieli Soares em "viabilizar a integridade orçamentária" do ministério, mas reclama do teto repassado à Capes.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) aprovada pelo Congresso prevê que o orçamento do Ministério da Educação mantenha em 2019 o mesmo valor deste ano, corrigido pela inflação. A LDO funciona como uma diretriz de parâmetros para o Orçamento do ano que vem, que tem de ser enviado para o Legislativo até agosto.

Em 2018, o orçamento da Capes é de R$ 3,9 bilhões. Os valores estão em queda desde 2015, quando foram executados R$ 7 bilhões. No ano passado, foram gastos R$ 4,6 bilhões.

Em nota, a Capes informou que o ofício trata apenas do orçamento de 2019, e que nenhum dos programas será afetado ao longo de 2018.

Os ministérios da Educação e do Planejamento divulgaram uma nota conjunta, informando que os "recursos enviados ao Ministério da Educação estão acima do mínimo constitucional em 2018 e os referenciais monetários para 2019 também preveem recursos acima do limite constitucional". Os dois ministros terão uma reunião na sexta-feira para "para continuar o diálogo que já vinha acontecendo em busca de uma solução".

De acordo com o texto, a Lei Orçamentária Anual 2018 para o MEC é de R$ 23,6 bilhões, e esse montante, para 2019, deverá cair a R$ 20,8 bilhões, "em razão das restrições fiscais". “O limite foi repassado proporcionalmente para a Capes”, afirma o comunicado, mas “os valores podem sofrer alterações até o encaminhamento da Proposta de Lei Orçamentária, que deverá ocorrer até 31 de agosto”.

A nota diz que o Ministério do Planejamento "define o montante global de cada ministério para a confecção do Projeto de Lei Orçamentária", e que cabe aos ministérios definirem como os recursos serão distribuídos internamente. Além disso, a pasta "busca alternativas que permitam a redução de despesas obrigatórias que possam ampliar recursos para atividades prioritárias do governo".

Capes pede aprovação da lei de diretrizes orçamentárias

Segundo Luiz Davidovich, que é membro do Conselho Superior da Capes e presidente da Academia Brasileira de Ciências, o corte previsto no orçamento da agência para 2019 é de cerca de 15%, ainda sem considerar a inflação.

“A proibição de cortes na educação e na saúde na Lei de Diretrizes Orçamentárias foi definida pelo Congresso. Ali está estipulado que os orçamentos nessas duas áreas devem ser corrigidos no mínimo pela inflação. Só que o Ministério do Planejamento enviou uma planilha para o MEC com um corte e que, ainda por cima, não considera a inflação. É uma questão complicada, não é correto o Planejamento agir assim”, afirma ele, que é professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Este foi um dos aspectos que levou à reação do Conselho Superior da Capes, com o envio da carta ao Ministério da Educação, explica Davidovich.

“Estamos pedindo que se respeite a decisão do Congresso. A lei (de Diretrizes Orçamentárias) deve ser sancionada pelo presidente Michel Temer nos próximos dias. Uma vez que ela seja aprovada, esse tipo de manobra será ilegal. Houve uma reunião com o Temer em que tratamos disso. Ele mesmo disse que é muito importante que a vontade da população brasileira, expressa pelos parlamentares na lei, seja respeitada”.

A educação básica vai parar, diz especialista

Segundo o professor Adalberto Vieyra, diretor do Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências, a situação é extremamente grave.

“Na prática, esses cortes significam a paralisação do sistema de ciência e tecnologia, do sistema de produção de conhecimento, da formação nos mais diferentes níveis. O aperfeiçoamento dos professores da educação básica vai parar. Todos os níveis da educação serão mortalmente atingidos”, afirma ele.

Vieyra lamenta, ainda, que o mundo acadêmico não tenha força para fazer com que o governo federal mude de postura:

“É uma pena que não tenhamos a mesma força dos artistas. Quando houve o anúncio do fim do Ministério da Cultura, eles conseguiram reverter. Ou a mesma força dos caminhoneiros, quando fizeram sua greve. “Infelizmente, o mundo acadêmico é muito frágil, tem um poder político e real pequeno. Só uma grande mobilização que junte a sociedade como um todo em torno disso pode reverter a situação.”

Em comentário publicado no Boletim da Adufrj — a Seção Sindical dos Docentes da UFRJ —, o professor da instituição Eduardo Raupp destacou que é preciso agir rapidamente, em duas frentes, para buscar reverter os cortes:

“De um lado, seguir a mobilização para que sejam revistos os orçamentos das agências de fomento. Mas este movimento esbarra na Emenda do teto de gastos. Por isso é importante atuar na direção de derrubar esta emenda”, disse Raupp, ao Boletim.

Ano passado, CNPQ também teve ameaça de cortes

O cenário da pesquisa no Brasil vem passando por sérias dificuldades nos últimos anos. Em julho de 2017, outra agência de fomento do pais, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), também anunciou a impossibilidade de pagar suas bolsas. Na mesma época, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) chegou a divulgar uma carta na qual dizia que as bolsas de pós-graduação do CNPq seriam suspensas na instituição, por falta de dinheiro.

Após a polêmica, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, liberou a verba necessária. Na ocasião, foram mantidas cerca de 100 mil bolsas.

O que são CAPES e CNPQ

O CNPq é uma agência do Ministério da Ciência e Tecnologia destinada ao fomento da pesquisa no país. Já a Capes é uma fundação do Ministério da Educação. As duas instituições concedem bolsas de estudo e pesquisa, porém a Capes também é responsável pelo Sistema Nacional de Pós-Graduação e realiza a avaliação dos cursos de mestrado e doutorado no país. Além disso, em 2007, passou a investir na formação de professores da educação básica.


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